O
Brasil passa por um momento importante em sua história recente. Trata-se de
colocar luz sobre uma série de fatos que vêm ocorrendo nos últimos anos, e que
agora começam a ser investigados de maneira conjunta e sistemática, apesar da
pressão em contrário. Junto com as investigações da CPI da Covid, destinada a
apurar as ações do governo federal e seus ministérios durante o combate à
sindemia, aceleram-se também as apurações sobre as notícias falsas, as fake news, que vinham e ainda vêm
infestando as mídias sociais. Esta perquirição já havia sido iniciada pelo
Judiciário há alguns meses, caminhava a passos lentos, mas agora tomou impulso,
dado o fato de parte das notícias falsas estarem ligadas ao tema da Covid.
Aos
poucos, começa-se a desenrolar o emaranhado de conexões entre os diversos
grupos que, sistematicamente, produzem e divulgam fatos inverídicos de todo o
tipo, com objetivos políticos e ideológicos característicos. Na grande
diversidade de invencionices elaboradas e propagadas por estes grupos,
destacam-se os ataques a partidos e a políticos de oposição ao governo, as difamações
de membros do Judiciário, a longa série de falsas obras atribuídas à atual
administração e – o mais grave –, todo tipo de desinformação relacionada à
sindemia da Covid. Inverdades sobre vacinas, medicamentos “milagrosos”,
recomendados por órgãos do governo e pelo próprio presidente, histórias
mirabolantes sobre supostos planos de dominação de outros países através de
vacinas, depoimentos de médicos, pastores e curandeiros, etc., etc., etc.
Enfim,
uma imensa cornucópia de relatos, reportagens, depoimentos, filmes, frases e
imagens, destinadas a ludibriar e desorientar parte da população. As vítimas de
tais ações são geralmente pessoas idosas ou de baixa formação, que se informam
principalmente através das redes sociais; o WhatsApp e o Facebook. Alguns
filmetes produzidos por estas facções chegam até a sugerir que as pessoas deixem
de utilizar outras mídias como a TV ou os jornais, com o argumento de que estes
veículos estariam disseminando notícias falsas, distorcendo e omitindo fatos. Trata-se
de uma maneira de manter parte da população – principalmente aquela que por
diversas razões não tem condições de buscar informações em outras fontes –
ignorante a respeito do que efetivamente ocorre no país, impingindo-lhe
inverdades. Em casos extremos, a informação errada em relação à Covid, no que
se refere a precauções e providências, pode até colocar em risco a vida destas
pessoas.
O
fenômeno das fake news é tão velho
quanto a humanidade. Alguns neurocientistas aventam a possibilidade de que a
linguagem de nossa espécie formou-se e evoluiu em ambientes sociais, onde a
conversação e, principalmente, o mexerico e a maledicência tinham um importante
papel nas interações sociais entre pessoas e grupos. Foi graças aos jogos de linguagem que se construíram
em interações sociais deste tipo, que nossa linguagem e nossa inteligência
evoluíram, segundo o psicólogo e antropólogo inglês Robin Dunbar, em seu livro Grooming, gossip and the evolution of
language (Aliciamento, mexericos e a evolução da linguagem, sem tradução no
Brasil).
Interessante fonte de informação sobre as fake news é o Center for Information Technology & Society - CITS (Centro para Informação Tecnologia e Sociedade https://www.cits.ucsb.edu/fake-news/brief-history), instituição americana sediada na Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia, que dispõe de um vasto arquivo digital relacionado ao tema. Em um dos artigos publicados pelo instituto em sua página na internet, A brief history of fake news (Uma breve história das notícias falsas), por exemplo, aprendemos que o fenômeno é antigo, mas passou a se caracterizar a partir da invenção da imprensa. Estratégia utilizada principalmente para aumentar as vendas de jornais e periódicos com notícias sensacionalistas, as falsas notícias começaram a se popularizar nos Estados Unidos, no final do século XIX. Relata o artigo que dois grandes editores de jornais concorrentes – Joseph Pulitzer e William Hearst – publicavam, entre outras coisas, várias notícias falsas e boatos de todo tipo, a fim de aumentarem as vendas de seus jornais. Este tipo de jornalismo, que nos Estados Unidos ficou conhecido como yellow journalism (jornalismo amarelo), no Brasil tomou o nome de “imprensa marrom”, expressão atualmente pouco utilizada – o que não quer dizer que não se veiculem mais notícias falsas ou boatos. Atualmente, talvez fosse mais aplicável o termo “mídia marrom”.
No início
do século XX houve um avanço da tecnologia, junto com os hábitos de consumo e a
sofisticação na maneira de manipular as massas, principalmente na sociedade
norte-americana. Com isso, grupos econômicos e políticos perceberam que
poderiam utilizar cada vez mais os meios de comunicação para influenciar os
cidadãos, para este ou aquele objetivo; seja na escolha de um eletrodoméstico
ou de um político. Assim, escritórios de marketing, contando com especialistas
de diversas áreas, passaram a ser contratados por grandes grupos empresariais,
partidos políticos e candidatos, com a tarefa de montarem campanhas de vendas para seus
produtos – a geladeira “top de linha” ou o candidato “comprovadamente honesto e
capaz”. Ao fim e ao cabo, tratava-se de convencer o comprador ou o eleitor de
que o produto ou postulante ao cargo eram dignos de escolha, por se
distinguirem dos demais.
Com
o aparecimento de novas tecnologias midiáticas na segunda metade do século XX –
os computadores, a internet e os celulares – a comunicação se tornou instantânea,
de alcance praticamente ilimitado. Ao longo dos últimos vinte anos esta
tecnologia se tornou cada vez mais sofisticada e, principalmente, acessível ao
grande público; ao cidadão comum, potencial consumidor da geladeira “top de
linha” e eleitor do candidato “honesto e capaz”.
O
passo seguinte foi relativamente simples: juntar a moderna tecnologia de
comunicação às velhas práticas do yellow
journalism americano. O bestseller,
Os engenheiros do caos: como as fake
news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para
disseminar ódio, medo e influenciar eleições, do jornalista italiano
Giuliano da Empoli, faz uma interessante análise do assunto. Relata como grupos
de direita e extrema-direita, em todo o mundo, utilizam as redes sociais para,
através de notícias falsas e teorias da conspiração, conquistarem mais
visibilidade e votos para seus candidatos e ideais político-ideológicos. A
receita, segundo o livro, foi utilizada em eleições na Europa e nos Estados
Unidos ao longo dos últimos anos.
Como não poderia deixar de ser, a estratégia também vem sendo usada no Brasil, desde antes das eleições de 2018, como demonstram as milhares de fake news que trafegam pelas redes sociais, principalmente nos grupos fechados de WhatsApp. Daí o confusão de opiniões, parte delas baseadas em pressupostos falsos mas dados como verdadeiros, que dão origem a acirradas discussões e desentendimentos entre pessoas e grupos. O que torna a situação ainda mais grave, é que parte da população não dispõe de conhecimentos suficientes para avaliar se uma determinada informação é falsa ou verdadeira. Aí tem grande peso a origem da postagem. Se é está sendo veiculada na bolha do WhatsApp a que pertence o receptor da mensagem, a notícia geralmente é aceita como verídica e repassada a outras pessoas.
Pelo teor prejudicial das mensagens sob diversos aspectos, finalmente o assunto começa a ser investigado com mais atenção pela Polícia Federal, a partir de solicitação do Poder Judiciário. Espera-se identificar os coordenadores de tais grupos de fake news, seus autores, distribuidores e, principalmente, os financiadores e seus objetivos. Trata-se de providência que já deveria ter sido tomada há mais tempo. As fake news distorcem o debate político, além de prejudicarem a democracia do país.
(Imagens: fotografias de Gerda Taro)
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