A reforma protestante e a sociedade moderna

domingo, 11 de setembro de 2011
"Lembro-me de ter vivido; lembro-me também de não ter vivido. Esta noite sonhei que estava morto e, coisa curiosa, era justamente o momento em que vivia feliz. Sonhar acordado é mais ou menos a mesma coisa  que sonhar adormecido. O sonho adormecido em geral é mais ousado, algumas vezes um pouco mais lógico."  -  Paul Gauguin  -  Antes e depois

A Revolução Protestante não tem só origens religiosas, mas também políticas e econômicas. Dentre os motivos mais comuns que provocaram o surgimento da Reforma Protestante está a decadência moral da Igreja Católica no final da Idade Média. É fato que grande número de clérigos vivia de maneira escandalosa para a época, sustentando esposas e filhos. Muitos padres não tinham preparo algum para exercer o cargo; alguns não tinham nenhum conhecimento de latim. Os abusos às regras e as exceções criadas pela Igreja eram as mais variadas e escandalizavam a maioria dos fiéis.
“Calcula-se que o papa Leão X fruía de renda anual de mais de um milhão de dólares, resultante da venda de mais de mil cargos eclesiásticos” (“...)” Uma segunda forma repelente de venalidade religiosa era a venda de dispensas. Uma dispensa podia ser definida como a isenção de qualquer lei da igreja ou de qualquer voto feito anteriormente. Nas vésperas da Reforma, as dispensas mais comumente vendidas eram as isenções de jejum ou das leis matrimoniais da igreja” ( Burns 1971, p. 452).
O movimento, no entanto, não ocorreu repentinamente. A Reforma Protestante teve seus precursores em vários pontos da Europa. No fim do século XIV, um professor de Oxford chamado John Wycliff já lançava ataques à Igreja, condenando a venda de indulgências, a ingerência da Igreja em assuntos temporais e negando vários dogmas da igreja, como a transubstanciação do pão e do vinho na missa. Wycliff também traduziu a Bíblia para o inglês e colocou esta a disposição dos crentes ingleses. As críticas de Wycliff foram disseminadas, chegando ao continente europeu, onde Johan Huss deu sequência a elas. Este, também foi professor na universidade de Praga, foi queimado na fogueira em 1415, como herege mas suas idéias ganharam muitos adeptos.
Além destes aspectos doutrinários, também havia motivos políticos e econômicos para o surgimento de uma separação entre Roma e os países da Europa setentrional. Em regiões, como a França e a Alemanha, já havia uma aversão – principalmente entre os nobres – quanto à ingerência do papa e da Igreja nos assuntos políticos da região. Outro aspecto é o fato de que a Igreja era detentora de grandes extensões territoriais ao norte dos Alpes, o que evidentemente despertava a cobiça dos nobres. Afora isto, as terras pertencentes à Igreja não podiam ser tributadas, o que por outro lado sobrecarregava de impostos os outros proprietários de terras. Era natural que, dadas estas circunstâncias, todos tivessem interesse em se apoderar das terras da Igreja. 
No início do século XVI estava formado o cenário e só faltava um ator principal. Escreve Burns: “Ao raiar do século XVI estava a Alemanha madura para a revolução religiosa. Só falta encontrar um líder capaz de unir os elementos descontentes e emprestar às suas reivindicações um verniz teológico aceitável.” (Burns, 1971, p. 462). Este líder foi Martinho Lutero, nascido em Eisleben, na Turíngia. O movimento da Reforma foi datado como tendo início especificamente em 1517 quando o agora já monge agostiniano, Martin Luther, afixou suas 95 teses na porta da catedral de Wittenberg. A partir daí, reagindo e defendendo suas idéias dos ataques da Igreja de Roma, Luther foi colocado em uma posição de confronto, da qual não pôde mais voltar. Explorando o uso da nascente imprensa e contando com o apoio da nobreza alemã, Luther traduziu a Bíblia para o alemão (assim como 200 anos havia feito Wycliff para o inglês) e estruturou a doutrina da nova crença.
Em termos culturais, se o humanismo e o Renascimento eram uma volta às origens, aos textos clássicos da literatura e filosofia greco-romana, o protestantismo também era uma volta às origens dos textos bíblicos, especificamente São Paulo e os Evangelhos, e à filosofia de Santo Agostinho. Escreve Edward McNall Burns:“Em suma, o que os reformadores queriam era a volta do cristianismo mais primitivo do que aquele predominava desde o século XIII. Inclinavam-se fortemente a rejeitar qualquer doutrina ou prática que não fosse expressamente sancionada pelas Escrituras, em especial pelas Epístolas Paulinas, ou que não fossem reconhecidas pelos Padres da Igreja” (Burns 1971, p. 455)
A Reforma Protestante foi se espalhando em toda a Europa e angariando novos membros, tanto entre o povo, os nobres e a intelectualidade. Zwinglio e Calvino, ambos na Suíça, iniciaram reformas semelhantes. Este último governou a cidade de Basiléia por dezenas de anos, instituindo um governo autocrático, de constante vigilância sobre a vida de todos os fiéis. Aqueles que não se portassem de acordo com a doutrina oficial eram punidos de diversas maneiras. Em sua obra máxima, “Instituições da religião cristã”, Calvino coloca os pontos principais de sua doutrina, que mais tarde iriam influenciar fortemente todo o desenvolvimento da sociedade européia não-católica. Suas idéias são bastante influenciadas pela doutrina de Agostinho, muito mais do que qualquer outro teólogo protestante. Escreve Calvino que Deus criou um universo para sua glória, onde qualquer coisa existia na dependência da divindade todo-poderosa. Através de Adão o pecado entrou na história humana, tornando os homens irremediavelmente condenados. Somente Deus, em sua infinita misericórdia, destina alguns seres humanos à salvação, enquanto que o resto da humanidade é condenado aos tormentos do inferno por toda a eternidade. Nada do que os homens façam pode salvá-los. Todavia, não é por isso que os homens ficarão de braços cruzados sem fazer nada. Deus incute em seus eleitos uma vontade de ajudar os maus, mesmo sabendo de que estes estão condenados. O fiel também terá forte atuação na sociedade através de atividades profissionais.
A Reforma Protestante, em suas várias vertentes teve diversos impactos sobre a nascente sociedade moderna, recém-saída do período medieval. Para facilitar sua explanação, podemos dividir estas influências em econômicas, políticas, sociais e culturais.
Sob o aspecto econômico a Reforma provoca inicialmente uma redistribuição de terras nas regiões ao norte dos Alpes. Na França, Holanda, Alemanha e Inglaterra as terras da Igreja são confiscadas e distribuídas entre os nobres. Os servos ligados à terra muitas vezes aproveitam a oportunidade e deslocam-se para a cidade, onde muitos se transformarão em artesãos e passarão a engrossar os exércitos dos primeiros operários trabalhando em manufaturas. A médio prazo a Reforma Protestante, principalmente na forma do calvinismo, influirá todo o desenvolvimento do mercantilismo – o capitalismo comercial – desde o século XVI até o início do XVIII. O protestantismo de Calvino era mais radical que o de Lutero. Este, ainda tinha muitas censuras em relação aos banqueiros, às finanças e ao lucro. Calvino, por sua vez, santificava a empresa do comerciante e do financista e valorizava as virtudes comerciais da economia e da diligência. Todas as correntes religiosas que contribuíram para o desenvolvimento do capitalismo – os huguenotes na França, os puritanos na Inglaterra, os presbiterianos na Escócia e os protestantes na Holanda – eram todos calvinistas. Defendiam e divulgavam os valores da burguesia (classe média) nascente: dedicação ao trabalho, aversão ao luxo (seja no vestir ou na moradia), prática da economia (e investimento do dinheiro no negócio), aversão aos divertimentos (festas, banquetes, bailes) e dedicação aos estudos e à pesquisa. Sob certos aspectos, o calvinismo estava praticando no mundo o mesmo ascetismo que os monges católicos da Idade Média praticavam nos mosteiros. Max Weber em “A ética protestante e o espírito do capitalismo”, escreve:
De fato, o summum bonum desta ética, o ganhar mais e mais dinheiro, combinado com o afastamento estrito de todo o prazer espontâneo de viver é, acima de tudo, completamente isento de qualquer mistura eudemonista, para não dizer hedonista: é pensado tão puramente como um fim em si mesmo, que do ponto de vista da felicidade ou da utilidade para o indivíduo parece algo transcendental e completamente irracional. O homem é dominado pela geração de dinheiro, pela aquisição como propósito final da vida. A aquisição econômica não está mais subordinada ao homem como um meio de satisfação de suas necessidades materiais. Esta inversão daquilo que chamamos de relação natural, tão irracional de um ponto de vista ingênuo, é evidentemente um princípio-guia do capitalismo, tanto quanto soa estranha para todas as pessoas que não estão sob influência capitalista” (Weber 2002, p.47). 
Sob o ponto de vista político a Reforma Protestante contribuiu indiretamente para a formação dos Estados e de monarquias absolutistas. A Reforma havia abolido a ingerência da Igreja nos assuntos de Estado, deixando ao soberano mais autonomia em suas decisões. Outro aspecto é que os vultosos recursos que eram carreados anualmente para Roma, a título de pagamentos de dispensas, indulgências, taxas de todos os tipos, permaneciam no país, possibilitando ao soberano arrecadar mais impostos. Além disso, a burguesia comercial, formada geralmente dentro da mentalidade protestante e/ou calvinista, tinha interesse em apoiar politicamente e financiar as iniciativas comercias do estado, já que estes empreendimentos poderiam lhes trazer lucros com o comércio. Exemplo típico é o caso das companhias inglesas criadas para explorar comercialmente os produtos do Novo Mundo (costa leste da América do Norte) e a Companhia das Índias Orientais, financiada por comerciantes holandeses e envolvida na principalmente da exploração do açúcar do Brasil e das Antilhas. Comerciantes huguenotes também estavam por trás das iniciativas francesas no Brasil, como a França Antártica, no Rio de Janeiro.        
entre os países dominados por ambas as correntes religiosas havia forte rivalidade, como por exemplo, a Espanha e a Inglaterra (se bem que a rivalidade religiosa fosse apenas um Sob o ponto de vista social a Reforma Protestante acabou criando “zonas de influência” em toda a Europa, ou seja, regiões onde o protestantismo, calvinismo ou outras correntes reformistas tinham influência, e outras regiões ainda sob o domínio do catolicismo. Mesmo subterfúgio para acobertar interesses econômicos e políticos). A rivalidade entre católicos e reformistas acabou gerando ocasionalmente conflitos armados, quase guerras civis, como aconteceu na França entre 1562 e 1589, nos Países Baixos em 1565 e na Inglaterra no século XVII.
Culturalmente a Reforma Protestante reforçou o movimento humanista, que já vinha se desenvolvendo desde o final da Idade Média. Este colocava o homem no centro do universo, tinha uma visão otimista e incentivava o estudo da natureza e da pesquisa, aliado ao estudo da tradição clássica. A Reforma, por sua vez, também pregava a liberdade do homem perante Deus, sem necessidade de intermediários, instituições ou dogmas. O homem, detentor de um espírito, poderia analisar as Escrituras e interpretá-las a seu modo, sem a necessidade de intérpretes. Apesar disso, o protestantismo, em geral, não tinha uma visão otimista do ser humano, considerando-o decaído e pecador, necessitando da misericórdia divina (“saco de imundícies, nascido entre as fezes e a urina”, dizia Lutero, referindo-se ao homem). Ponto positivo da reforma foi incentivar o individualismo, a autonomia e o espírito empreendedor, que darão origem a uma cultura mais voltada para o indivíduo (a filosofia de Descartes e John Locke; o desenvolvimento da ciência e do espírito empreendedor do capitalismo).
Bibliografia
BURNS, Edward M., História da civilização ocidental – Vol I. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo. Editora Claret: 2002, 224 p.
(imagens: Djanira da Mota e Silva)

1 comments:

Guilherme Goulart disse...
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