"O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando -se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua situação que se constituem em formas de loucura - loucura admitida, pelo consenso, loucura compartilhada, loucura disfarçada e digna, mas ainda assim loucura." - Ernest Becker - A negação da morte
Existem diversas interpretações sobre a origem e o
desenvolvimento da idéia dos direitos humanos. No entanto, dada a complexidade
do assunto e por ser difícil se traçar uma gênese das idéias e conceitos
filosóficos, apresentaremos a seguir um resumo do desenvolvimento mais provável
do conceito, de acordo com nossa visão.
Não resta duvida que o conceito dos direitos humanos muito
deve ao cristianismo. A religião cristã foi a primeira que em sua doutrina
estabelecia um relacionamento direto entre a criatura e o Criador; idéia esta
que fortalecia a noção da responsabilidade individual da criatura perante o
Criador. Tanto assim, que – segundo o que estabeleceu a tradição cristã no
Concílio de Nicéia em 325 – o próprio Deus fez-se homem e como este viveu,
sofreu e morreu. A idéia era revolucionária no universo religioso da época: não
mais os deuses egípcios ou da Babilônia, os gregos e romanos, que afastados dos
homens raramente se preocupavam com o indivíduo e desconheciam a realidade
humana sob ponto de vista do homem concreto e individual; homem “de carne,
sangue e ossos”, como escrevia o filósofo Miguel de Unamuno.
O cristianismo trouxe a noção de ser humano para um patamar
mais alto. Deus se (pre)ocupava com o fiel individualmente e a Igreja era união
de todos os fiéis, membros da comunidade de crentes. Muito diferente da
impassibilidade dos deuses antigos, que através de seus sacerdotes tratavam com
uma massa de servidores e cujo contato se baseava principalmente em sacrifícios
e oferendas, para aplacar a ira ou obter a simpatia de uma divindade instável.
No entanto, esta relação que existia entre o crente e a
divindade no início do movimento cristão foi sendo deturpada ao longo da
história da igreja católica. Esta se considerava a única detentora da verdade
cristã, da mensagem oficial do Cristo, e como toda instituição hegemônica criou
verdadeiras cadeias de comando entre o fiel e Deus, formada por sacerdotes,
bispos, arcebispos, cardeais e o pelo papa. A hierarquia católica era
responsável exclusiva pela manutenção e o ensino da doutrina, pela distribuição
dos sacramentos e, principalmente, pelo contato da Igreja (a totalidade de seus
membros; o “corpo dos fiéis”) com Deus.
No século XVI, eclodem mudanças que há muito tempo estavam
em gestação na sociedade medieval européia. Na economia, o sistema de produção
feudal entra em decadência, sendo gradualmente substituído por uma economia
baseada no mercantilismo. A consequência política dessa mudança é que os
senhores feudais perdem sua força, passando a ser comandados por um único rei,
que se torna o chefe da nação. No aspecto cultural o Renascimento, surgido na
Itália com a revalorização da cultura clássica grega e romana, difunde-se por
grande parte da Europa, formando uma nova classe de intelectuais, críticos de
muitos aspectos do cristianismo católico. Erasmo de Rotterdam, chamado de
"Príncipe dos Humanistas", foi o maior representante deste novo tipo
de intelectual, bastante crítico ao catolicismo. Um de seus textos diz, por
exemplo: "O cristianismo hoje, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no
esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua
doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos
pestilentos."
No aspecto religioso ocorre a Reforma protestante;
concretização de varias mudanças no cristianismo, tanto na doutrina quanto na
instituição, que já vinham sendo fomentadas desde o século XIV por toda a
Europa. Martinho Lutero, um monge agostiniano, que colocou em discussão
aspectos da doutrina católica e se rebelou contra uma hierarquia corrompida por
práticas desonestas, foi o líder desta verdadeira revolução. Em sua
interpretação do cristianismo, Lutero dizia que o aspecto mais importante da
vida do crente era a fé – sola fide. Somente por esta o homem poderia se salvar
e não através das obras - como enfatizava a doutrina católica, depois de ter
incorporado muitos aspectos da filosofia de Tomás de Aquino. A fé, no entanto,
era algo concedido por Deus ao homem; este só poderia aceitá-la e passar a
viver inspirado por ela.
A Reforma Protestante influenciou profundamente o pensamento
da civilização ocidental; sua filosofia e a maneira desta encarar a dignidade e
a liberdade do ser humano. Grandes filósofos, principalmente da escola alemã
como Leibniz, Kant, Schelling, Hegel, Feuerbach e Nietzsche levaram a
interpretação cristã do homem aos extremos. Nos anos 1960 a escola teológica da
"morte de Deus", fortemente influenciada pelos teólogos e filósofos
alemães do início do século XX, teorizava que o cristianismo necessariamente
levaria a uma completa imanência de Deus e à total secularização da sociedade.
Em relação a isto o filósofo Giuseppe Cantarano, pesquisador da Universidade da
Calábria, escreve em artigo no jornal L`Unità:
"Do céu do cristianismo, o sagrado - aquela dimensão do
divino inacessível e indiferenciada, temível e ao mesmo tempo atraente - teria
saído em êxodo. Emigrado para a terra. Já que, fazendo-se homem, Deus não perde
apenas a transcendência. Com ela, Ele também perde irremediavelmente a sua
sacralidade." (Cantarano, 2013)
No aspecto político, a gênese dos Direitos Humanos remonta
ao filósofo inglês, John Locke (1602-1704), considerado o precursor do
liberalismo político. Ponto importante de sua doutrina política é que:
a) Todos os homens ao nascerem têm direitos naturais;
direito à vida, à liberdade e à propriedade;
b) Para garantir estes direitos, os homens acordaram entre
si formarem governos, que garantiriam seus direitos naturais;
c) Esquecidos estes direitos inatos e este contrato social
originário, surgiram os reis por direito divino - situação que, segundo o
filósofo, absolutamente não existe e deve ser combatida.
O liberalismo de Locke influenciou a Revolução Gloriosa,
ocorrida na Inglaterra em 1688, abolindo o absolutismo e introduzindo a
monarquia parlamentarista. O pensamento político do inglês também foi
parcialmente absorvido por filósofos franceses, que colocaram as bases
ideológicas da Revolução Francesa (1789) como Voltaire, Rousseau, Diderot,
D`Alembert e muitos outros. Críticos dos reis absolutistas da França e de
outras nações, estes pensadores foram autores de obras que analisaram e
procuravam identificar as origens das monarquias autocráticas, apontando-lhes
os erros.
As ideias liberais inglesas também exerceram forte
influência sobre a elite econômica da mais importante colônia britânica, as
"Treze Colônias" da América do Norte.
Depois de uma guerra
revolucionária que se estendeu de 1775 a 1783, na qual a nascente nação também
recebeu apoio da França, Espanha e dos Países Baixos - inimigos históricos da
Inglaterra - os Estados Unidos se tornaram o primeiro país do mundo a dispor de
uma constituição embasada por princípios democráticos. A Declaração da
Independência, documento votado e ratificado pelo Congresso em 4 de julho de
1776, contêm uma das mais famosas frases da língua inglesa, que exerceria muita
influência sobre movimentos sociais ao longo da história desde então: "Consideramos
estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que
são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são
vida, liberdade e busca da felicidade."
Em 1948, passados os horrores da 2ª Guerra Mundial
(1938-1945) e criada a Organização das Nações Unidas - ONU (1945), os países
membro resolvem promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A
declaração começa em seu primeiro artigo com a seguinte declaração: "Todos
os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão
e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de
fraternidade".
Passados 65 anos desde sua promulgação, a Declaração Universal
dos Direitos Humanos exerceu muita influência na história. Seus princípios
foram incorporados às constituições de países, às instituições e,
consequentemente, à consciência dos cidadãos. A questão de que se estes
princípios são de inspiração divina, ou o simples coroamento de um processo
evolutivo da cultura que tem suas origens na biologia, pouco importa. O
importante é de que os princípios dos direitos humanos são considerados por
grande parcela da humanidade como conceitos fundamentais para a convivência e
para a condução de uma vida digna.
Nossa sociedade, no entanto, optou pelos direitos humanos,
seguindo a tradição deixada pelo cristianismo, pela filosofia liberal, pelas
lutas dos povos por liberdade e dignidade. Milhões de seres humanos que nos
antecederam na história, sacrificaram bens, saúde e a própria vida em nome
destes direitos.
É neste contexto que toma significado a frase de Sartre:
"O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós próprios faremos
com aquilo que fizeram de nós”. Para este filósofo a liberdade humana tem valor
absoluto. O ser humano, segundo Sartre, está "condenado a ser livre",
sendo responsável pela construção de sua vida e da sociedade em que vive.
"Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que
não é ele próprio, ou seja, em sua consciência está sempre fora de si; voltado
para fora de si mesmo. Disso resulta que na concepção de Sartre a consciência
do homem, o 'ser-para-si', é vazia, baseado no nada (melhor seria dizer no 'vazio'). Com isso, Sartre deduz que o homem não é determinado por uma essência
anterior, algum tipo de 'natureza humana', seja do tipo que for. Ao contrário,
como a consciência do 'ser-para-si' é vazia, e direcionada para o mundo, para
um 'ser que não é o que ele é', o homem é determinado por sua existência e só
cria uma essência a partir de seus projetos e de suas ações, de sua relação com
o mundo – o 'ser-no-mundo'.
É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode
ser efetivamente livre. Para Sartre, como para outros existencialistas, existir
é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a si próprio em direção
ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a consecução destes
objetivos, que o homem é livre. É através do transcender dos obstáculos que o
“ser-para-si”, com base no nada (vazio) de sua existência, é livre a cada
momento – já que Sartre nega o efeito de condicionamentos passados sobre a
consciência. Desta forma Sartre afirma que 'o homem é condicionado a ser
livre'; por sua própria condição ontológica. Mas a liberdade só se forma
através do confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de 'situação',
obstáculo. Por isso o filósofo afirma que 'só existe liberdade em situação e só
há situação por meio da liberdade'”. (Rose, 2011)
Assim, o homem é completamente livre para fazer de si o que
quiser, seguindo os ditames de sua consciência. Possa a sociedade brasileira, neste importante momento histórico, ter discernimento para realizar as reformas necessárias e tornar os princípios dos direitos humanos cada vez mais presentes.
Referências:
Declaração da independência dos Estados Unidos. Disponível
em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_da_Independ%C3%AAncia_dos_Estados_Unidos>.
Acesso em 21/06/2012.
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Declara%C3%A7%C3%A3o_dos_Direitos_do_Homem_e_do_Cidad%C3%A3o>.
Acesso em 21/6/2012.
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
<http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>.
Acesso em 21/6/2012.
Erasmo de Rotterdam. Disponível em:
<http://pensador.uol.com.br/autor/erasmo_de_rotterdam/>.
Acesso em 21/6/2013.
Galimberti e a religião do céu vazio. Disponível em:
<http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521063-galimberti-e-a-religiao-do-ceu-vazio>.
Acesso em 17/06/2013.
John Locke. Disponível em:
< http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke>.
Acesso em 21/06/2012
Sartre e a liberdade. Disponível em:
<http://ricardorose.blogspot.com.br/2011/01/sartre-e-liberdade.html>.
Acesso em 21/6/2013.
(Imagens: fotografias de Humphrey Spender)
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