Comentários sobre o texto “Reflexões sobre a Racionalidade Científica: problemas, apostas e propostas”

sábado, 5 de julho de 2014
"Ter senso histórico é superar de modo consequente a ingenuidade natural que nos leva a julgar o passado pelas medidas supostamente evidentes de nossa vida atual, adotando a perspectiva de nossas instituições , nossos valores e verdades adquiridos. Ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico coextensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo."  -  Hans-Georg Gadamer e Pierre Fruchon (org.)  -  O problema da consciência histórica

O texto "Reflexões sobre a Racionalidade Científica: problemas, apostas e propostas" é de autoria de Daniel Durante Pereira Alves, professor de filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Neste curto artigo comentaremos este trabalho, que analisa a atividade científica e a epistemologia.
No início de seu texto o autor afirma querer fazer uma crítica sobre alguns aspectos cognitivos da ciência, em seus pressupostos herdados de Descartes e defendidos pelo empirismo lógico. O texto também pretende apontar a conexão íntima existente entre certos problemas epistemológicos e éticos, considerando a extrema interrelação entre ambos. Em sua argumentação, o texto elabora uma crítica ética da ciência, dadas as “conseqüências muitas vezes nocivas do conhecimento científico”. Assim, para iniciar sua apresentação, o autor começa seu texto com uma explicação do que considera as características mais fundamentais da racionalidade científica hegemônica: o atomismo e o método axiomático.
O conhecimento científico é socialmente construído e não “temos nenhum motivo intransponível que nos impeça de procurarmos novas formas de fazer ciência”. A ciência é uma construção histórica e sua maneira de ser feita não se deve necessariamente à natureza ou a estrutura de nossa racionalidade (racionalismo). Esta visão da prática científica, baseada no construtivismo, não se fundamenta em nenhuma teoria sobre a realidade (ontologia), mas na prática do sujeito; em seu próprio ponto de vista. Assim, as diferentes interpretações da natureza são baseadas na interação do observador com o mundo; construções (constructos) que visam dar sentido aos seus projetos subjetivos. O conhecimento científico não é uma descrição exata da realidade; trata-se muito mais de uma teoria descritiva que na prática funciona.
Um dos fundamentos da teoria científica é baseado no atomismo de Demócrito: o átomo (ou outras partículas e subpartículas) como sendo as últimas partes constituintes da realidade. A epistemologia atomista leva a uma visão dualista da realidade, formada pela interação entre o sujeito (o que observa a realidade) e o objetivo (tudo o que é observado). Outro fundamento do pensamento científico é o método axiomático, herdado do geômetra Euclides e desenvolvido pelo pensador francês do século XVII René Descartes. Segundo esta metodologia de análise – mais tarde aplicada por Descartes também à geometria analítica – os problemas devem ser desmembrados em partes, de modo a facilitar sua apreensão. Desta forma, segundo o autor, pode-se ver a teoria científica como um conjunto de propostas (axiomas da antiga geometria euclidiana), organizados na forma de um todo harmônico, capaz de explicar certo fato científico.
No entanto, ao longo do desenvolvimento da ciência e da matemática durante os últimos 350 anos, foram aparecendo fatos que gradualmente colocaram em cheque a visão ortodoxa da racionalidade científica. O matemático Kurt Gödel (1906-1978) provou com seu Teorema da Incompletude, que resumidamente diz que em um sistema de axiomas auto-consistentes sempre existirão proposições que não poderão ser comprovadas pelo sistema, ou seja, o sistema é incompleto e incapaz de dar uma explicação total às questões que ele mesmo coloca. Outro exemplo é dado pela física de partículas, com o Princípio de Indeterminação, elaborado pelo físico Werner Heisenberg (1901-1976). Segundo este princípio, nunca será possível determinar a posição e a velocidade de um elétron. Isto porque, o fóton emitido pelo equipamento de medição já tira o elétron de sua posição original. O mesmo acontece se os cientistas tentarem medir o sentido de sua rotação (spin).
Na física quântica também ocorrem fenômenos que colocam em cheque muitos aspectos da suposta racionalidade da ciência: partículas que têm o mesmo comportamento como se formassem pares, mesmo que situadas a longas distâncias. Outras que têm um comportamento completamente aleatório, imprevisível. Isso tudo sem falar nos paradoxos (aparentes) da Teoria da Relatividade, segundo a qual objetos se deslocando a velocidades diferentes em relação a um mesmo ponto de referência, têm diferente percepção do desenrolar do tempo.
Em suma, a visão de que a realidade material pode ser explicada através de teorias simples, num encadeamento lógico que ganha em complexidade, não é mais possível. A matemática e a física têm levantado tantas questões, que a ciência convencional – e com ela a epistemologia – já não pode mais explicar a realidade.
Outro aspecto que o autor levanta é com relação à ética na ciência. O desenvolvimento científico, além de não resolver grande parte dos problemas sociais, acabou criando novos; como os impactos ambientais, as armas de destruição em massa ou o descontrole da prática científica (os perigos da nanotecnologia e da inteligência artificial sem limites). Além disso, aponta o artigo o problema da superespecialização de setores da ciência, gerando um conhecimento cada vez mais fragmentado, compartimentado, com profusão de teorias; situação característica do modelo axiomática de ciência.
O autor também coloca a questão sobre quais interesses estão por trás da prática científica. Além de sua função utilitária de fazer prognósticos, a quem servem estes prognósticos? Se a ciência reflete os projetos e interesses do observador, de que observador estamos falando? Recomenda o autor que a ciência não seja distante da ética e que seja mais responsável e reflexiva, considerando que há uma crescente desconfiança por parte da opinião pública em relação à prática científica.
Paralelamente desenvolvem-se novas visões do pensamento científico; mais abrangentes e englobando idéias como a transdisciplinaridade, o pensamento complexo, a holística, ultrapassando os paradigmas do atomismo e do método axiomático. Ao invés de “prognosticar para manipular e controlar” as novas correntes epistemológicas são orientadas para “mapear para equilibrar e dar autonomia”. A frase do autor conclui nosso texto: “Ainda que tenhamos nos concentrado neste ensaio apenas nos aspectos epistemológicos e éticos da ciência, ela é uma atividade coletiva e social, sendo este aspecto extremamente importante para qualquer consideração, pois a ciência só mudará quando os cientistas mudarem, quando nós, coletivamente, aceitarmos e praticarmos novas formas de cientificidade.”
(Imagens: fotografias de Ricardo E. Rose)

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