Dualismo e sentido da história (II)

sábado, 23 de junho de 2018
"Não é elegante abusar da má sorte; alguns indivíduos, como certos povos, se comprazem tanto nela que desonram a tragédia."   -   Emil Cioran   -   Silogismos da amargura

Ao longo da Média surgiram diversas interpretações, populares e intelectuais, deste processo que em pouco tempo, esperava-se, levaria à Parúsia, ao Final dos Tempos. Perto do ano 1000 a Europa passava por uma crise econômica e social bastante grave. A Igreja enfrentava problemas internos. Interpretações de partes da Bíblia pareciam predizer que na virada do primeiro milênio da história da cristandade - leia-se história ocidental - ocorreria a implantação do Reino de Deus, com todas as suas implicações. Assim, alguns anos antes da virada do milênio, espalharam-se os movimentos formados principalmente por camponeses, pobres e peregrinos, que defendiam uma volta à vida ascética dos Evangelhos e o arrependimento frente ao Julgamento Final iminente.

Intelectuais da Igreja mais tarde também incorporaram a ideia de que Deus era o "senhor da História", mas de uma forma bem mais sofisticada. Joaquim de Fiore (1135-1202), monge cisterciense italiano, criou, baseado no livro do Apocalipse, a teoria das Três Eras. Fiore dividia a história humana em três períodos distintos: o período do Pai, o do Filho e pregava a chegada (em sua época, no século XIII) do período (ou reino) do Espírito Santo. A Era do Pai correspondia ao período histórico relatado pelo Antigo Testamento, o período de obediência aos mandamentos de Deus. O período do Filho compreendia o tempo de aparecimento do Cristo até 1260, quando o homem havia se tornado filho de Deus. O terceiro tempo referia-se ao do Espírito Santo, o mais importante da história, seria aquele no qual a humanidade teria contato direto com Deus e quando a ordem eclesiástica seria substituído pela “ordem do justo”, que na época se pensava referia-se à ordem franciscana. Este terceiro período da história da humanidade seria de paz e nele a humanidade teria um contato diretor com a divindade, o que eliminaria a necessidade de uma estrutura eclesiástica. A doutrina de Fiore, evidentemente, foi condenada pela Igreja e pelos escritos de seus teólogos oficiais, como Tomás de Aquino. As ideias de Fiore, no entanto, continuaram presentes na ideologia de diversos movimentos milenaristas durante a Idade Média e o Renascimento. As ideia das “Três Eras Históricas” exerceram forte influência em pensadores posteriores, como o historiador Giambattista Vico (1668-1744) e o filósofo Georg F. Hegel (1770-1831).


A história, que para os gregos como para várias outras culturas (hindus, chineses, entre outros) era um processo cíclico, formada por fases que regularmente se repetiam, assumiu uma forma linear, tanto no Judaísmo quanto no cristianismo. A origem disso encontra-se, provavelmente, nos mitos da criação que eram comuns a diversos povos do Oriente Médio e que também foram incorporados pelos antigos judeus ao seu corpo de crenças. Os judeus, provavelmente em tempos mais recentes, transformaram este em um mito fundador de seu povo, como vários outros povos o fizeram, e passaram a ver a sua história de uma maneira linear - visão fortalecida pelos dois exílios e pelas profecias da reinstituição do reino de Israel através da interferência de Javé. A história do povo judeu tinha assim seu mito de Criação e do surgimento de seu povo, com as histórias de Abraão e Moisés. Mais tarde, após o segundo exílio, esta visão teleológica da história foi ainda mais fortalecida com as visões apocalípticas, cujo teor era essencialmente de destruição da dominação grega e mais tarde romana, e instituição do domínio de Javé.

Tudo isto foi incorporado pelo cristianismo e através dele à filosofia cristã. A discussão se a filosofia moderna ainda pode ser chamada de cristã ainda está em aberto. Inegavelmente nossa filosofia, mesmo aquela posterior à Revolução Francesa, tem muitos pressupostos que tiveram sua origem na cultura cristã.

A filosofia ocidental contemporânea teria conseguido equacionar a eterna discussão entre Heráclito e Parmênides - a dicotomia entre o mundo das Ideias (ou dos Ideais) e o mundo criado pelo Demiurgo, segundo Platão? Seria possível conciliar a visão de ambos os filósofos gregos? Sob ponto de vista de Heráclito tudo muda, mas para Parmênides é apenas a superfície que muda, o Uno não. O que seria este Uno? O fundamento do universo? Sob certo aspecto a história muda, mas, de certa forma permanece a mesma. Dependendo dos parâmetros que consideramos, Heráclito está certo, considerando outros aspectos a razão fica com Parmênides. É, por exemplo, o caso da dialética de Hegel, que numa primeira visão parece ir de encontro ao pensamento de Heráclito. No entanto, todo o processo dialético da história é a manifestação e crescente presença do "Espírito Absoluto", ou seja, a velha ideia do Uno, já defendida por Parmênides.


Influenciada pelo cristianismo e pelo filosofia, a civilização ocidental incorporou dois conceitos bastante importantes na história da cultura: a ideia de que existem dois mundos; um material e o outro oculto, “espiritual”, como afirma a religião cristã e as metafísicas. O segundo conceito diz respeito à história, quando afirma que o desenrolar das ações humanas, dos grupos e da civilização tem um direcionamento e finalidade. Para a religião esta finalidade é algum tipo de união com a divindade, seja no mundo ou em um plano espiritual.(CONTINUA)

(Imagens: pinturas de Georgia O' Keeffe)

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