A cultura da "Terra plana"

sábado, 8 de fevereiro de 2020
" A cultura serve para dimensionar a ignorância alheia."   -   Millôr Fernandes   -   A Bíblia do caos


O conhecimento e a cultura estão sendo relegados a segundo e terceiro plano na atual administração do país. Há, ao que parece, um processo em andamento, com o objetivo de desestruturar o ensino público superior e nivelar a cultura brasileira por baixo.

Professores, principalmente os docentes das ciências humanas, são acusados de serem agentes de uma “ideologia de esquerda que domina as universidades”. As universidades, especialmente as públicas, são tidas como locais onde se consome (e produz) drogas, além de serem ponto de encontro para a prática do sexo grupal entre os alunos.  
  
A política educacional do governo está afetando também o Ensino Médio, prejudicado pela maneira desastrada como o ministério da Educação conduziu o último exame do ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), realizado em janeiro de 2020.

Os livros didáticos também serão mudados. Os atualmente em uso, segundo o presidente, têm “muita coisa escrita”, “é preciso “suavizar”. Assim, em 2021, quando segundo Bolsonaro “todos os livros serão nossos, feitos por nós” (ou seja, de acordo com a ideologia que este governo sempre afirmou não ter), o material distribuído aos alunos terá a bandeira do Brasil na capa e o texto do hino nacional. Com essas simples medidas, parece que o governo descobriu a fórmula mágica para aumentar o interesse dos alunos pelo material didático.

Na área da cultura, a atuação do governo também mostra seu objetivo de imprimir um outro direcionamento à pasta. Bolsonaro, além das críticas, da intenção de “colocar filtros” e de declarações como “a cultura tem que estar de acordo com a maioria da população”, tem uma visão bastante peculiar da cultura – e acha que deve impingir esta visão ao resto dos brasileiros.

A Secretaria Especial de Cultura (nome que substitui o antigo Ministério da Cultura – MinC)) perdeu mais de 80 servidores, transferidos para outras áreas dentro do governo. A pouca importância que o tema da cultura tem para a atual administração é demonstrada pelo fato de que a Secretaria é subordinada ao Ministério do Turismo. Outro aspecto que denota o pouco valor que o governo dá à cultura, está no perfil de alguns dos integrantes nomeados para ocuparem cargos na Secretaria. Além disso, reflete a direção política que o governo quer imprimir à cultura:

- Roberto Alvim assumiu o cargo de Secretário em novembro, mas foi exonerado no mês seguinte por sua escandalosa defesa de ideias nazistas. O fato teve ampla repercussão nacional e internacional, tendo sido mais uma contribuição do governo para denegrir a imagem do país no exterior. Foi substituído pela atriz global Regina Duarte;

- Sérgio Nascimento Camargo, foi empossado no cargo de presidente da Fundação Palmares. “Negro de direita, contrário ao vitimismo e ao politicamente correto”, como se definia, fez várias declarações que justificadamente escandalizaram vários segmentos da sociedade, principalmente os negros. Chegou a afirmar que a escravidão “foi benéfica para os descendentes”, que não existe “racismo real” e que o movimento negro precisa ser extinto. Foi exonerado depois de alguns dias no cargo;

- Camilo Calandreli, formado em música pela USP, é cristão conservador e seguidor de Olavo de Carvalho. Já acusou a Lei Rouanet de “marxismo cultural”. Substituiu Katiane Gouvêa, que depois de duas semanas no cargo foi exonerada por censurar o filme “A vida invisível”;

- Janícia Ribeiro Silva, conhecida como reverenda Jane Silva, já estava à frente da área da Diversidade Cultural na Secretaria. Foi convidada pela amiga Regina Duarte (que assumiu o cargo de secretária da Cultura) a ocupar o cargo de secretária Adjunta. É pastora e defensora da transferência da embaixada brasileira para Jerusalém;

- Dante Mantovani, que substituiu Miguel Angelo Oronoz Proença no comando da Fundação Nacional das Artes (Funarte). Dante é formado em música, especialista em Filosofia Política e Jurídica e Mestre em Linguística. Também é discípulo de Olavo de Carvalho. Em seu canal do Youtube, o novo presidente da Funarte afirma que “o rock ativa as drogas, que ativam o sexo livre, que ativa a indústria do aborto, que ativa o satanismo. O próprio John Lennon disse que fez um pacto com o diabo.” Sobre o grupo inglês The Beatles, Mantovani disse que “eles precisavam destruir as famílias americanas porque eram a sustentação do capitalismo.”

Uma forte influência no governo de Bolsonaro, entre os filhos do presidente e ministros, é a do escritor e astrólogo Olavo de Carvalho – que entre outras coisas é terraplanista, acredita que fetos abortados são usados como adoçante, que o filósofo Theodor Adorno escreveu as letras das músicas dos Beatles, que o vírus Corona foi criado pela Microsoft, etc. Seus discípulos são chamados de “olavetes” e são, entre outras coisas, contra a globalização e não acreditam nas mudanças climáticas ou em sua origem antrópica. Na mesma linha negacionista, a pastora Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por exemplo, declarou que “a igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a Teoria da Evolução entrar nas escolas”


Ainda não é claro o rumo que deverá tomar a educação e a cultura no Brasil durante este governo. Uma coisa, porém, é certa: a continuar este tipo de influência, estaremos caminhando rapidamente para o passado. Enquanto o mundo desenvolvido deixou há muito de problematizar filigranas culturais, religiosas ou de costumes, o Brasil – que detinha um bom nível no ensino superior, na pesquisa e na cultura em geral, comparado a outras nações em desenvolvimento – se transformará em uma nação retrógada, avessa ao progresso e à inovação. Uma sociedade cujos principais temas culturais serão “a Terra plana”, o “marxismo cultural” e a “ideologia de gênero”.   

 (Imagens: terra plana, ET, lobisomem e mula sem cabeça)

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