"O ser é uma vontade cega, sem rumo, que não pretende nada, que nada deseja, simplesmente vontade como uma força todo-poderosa, da qual tudo depende no mundo, ao passo que ela mesma não depende de nada nem de ninguém, mas simplesmente existe." - Leszek Kolakowski - Sobre o que nos perguntam os grandes filósofos (Schopenhauer)
O
verão de 2019/2020 foi excepcionalmente chuvoso em toda a região Sudeste do
Brasil. Centenas de cidades foram afetadas pelo transbordamento de rios e
acúmulo de água, desalojando e desabrigando dezenas de milhares de pessoas e
provocando mais de 70 mortes por desabamentos e afogamento. Segundo os
meteorologistas, estas grandes precipitações estão sendo provocadas pelo
aumento da temperatura média do Atlântico Sul, gerando nuvens que entram em
contato com os corredores de umidade que vêm da Amazônia, os chamados “rios
voadores”. O choque destas frentes climáticas acaba provocando grandes
precipitações na região Sudeste, a região mais populosa do país.
Apesar
do fenômeno não ser regular, não foi a primeira vez que tal volume de chuvas
caiu sobre a região. Cientistas preveem que tais precipitações passarão a ser
cada vez mais comuns, com a crise climática. Neste ano, dada a vasta área
geográfica afetada, as chuvas despertaram mais preocupação entre
administradores públicos e especialistas, já antevendo acontecimentos
semelhantes ou mais graves nos próximos anos.
São
várias as causas destas enchentes. A mais óbvia delas é o clima, mas este não é
o único vilão desta história. Por um lado existe o fenômeno do aquecimento
global provocando a crise climática, que se apresenta como uma série de
acontecimentos – aumento da força das chuvas, das nevascas, dos furacões, das
secas, etc. – que cada vez mais afetarão as atividades humanas. O fato não é
novo e já vem sendo anunciado e debatido desde meados da década de 1980. Mas continua
sendo negado por alguns grupos econômicos e governos, cujas atividades
contribuem direta ou indiretamente para o aprofundamento da crise do clima. O
Acordo de Paris, assinado em 2016 por 175 países, é o primeiro passo no
compromisso mundial em reduzirmos gradualmente as emissões de gases, evitando aumentar
o aquecimento da atmosfera ao longo das próximas décadas.
Outra
causa das enchentes, talvez a principal, tem como base o desenvolvimento das
cidades brasileiras, notadamente as da região Sudeste. O Brasil, ao longo de
sua história, não chegou a fazer uma reforma agrária ampla, de modo que as
populações campesinas pudessem ter acesso à terra. Crises econômicas, secas e a
mecanização da agricultura, ocorridos ao longo dos anos 1940-1990, fizeram com
que estas pessoas não tivessem mais sustento no campo, sendo forçadas a
migrarem para os centros urbanos. As cidades, por outro lado, não estavam
preparadas para receberem estes contingentes adicionais de moradores; faltavam
recursos para ampliar a rede de infraestrutura urbana.
Assim,
dado o baixo poder aquisitivo destas populações, elas não tinha condições para
se fixarem em áreas urbanas valorizadas, onde havia uma infraestrutura urbana
desenvolvida. Sobravam em muitas cidades apenas as zonas situadas na várzea dos
rios ou nas encostas de morros – exatamente os espaços que com o adensamento
urbano provocado pelo crescimento da cidade, a construção de grandes avenidas,
a larga impermeabilização dos solos, seriam as mais sujeitas às enchentes.
De
uma maneira bastante simplificada, pode se dizer que as enchentes são sintomas
de dois processos distintos, mas não independentes. Primeiro, o aumento das
chuvas provocadas pela crise climática, como consequência da exploração desordenada
dos recursos naturais pelas atividades econômicas. Segundo, o crescimento
desordenado e excludente das cidades brasileiras, através de um processo de especulação
imobiliária e um incipiente (ou nenhum) planejamento urbano.
(Imagens: pinturas de Emil Rau)
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