Robert
Malthus (1766-1834) foi economista, pastor e professor britânico, considerado o
pai da moderna demografia. Formulou a teoria de que populações humanas crescem
em progressão geométrica, enquanto que os meios de subsistência só poderiam em crescer
em progressão aritmética. Estes princípios teóricos influenciaram Charles
Darwin (1809-1882) na formulação de sua teoria da evolução das espécies, além
de economistas como David Ricardo (1772-1823). A escassez de meios sempre foi
uma das maiores preocupações do homem, desde sua origem, e é o fundamento de
toda a atividade econômica. Obter recursos para sobreviver; desde a organização
de uma caça na pré-história, a preparação de campos para a plantação do trigo
no Antigo Egito, passando pela construção de silos de armazenagem na França
medieval, até o planejamento e a operação das modernas cadeias de produção e
distribuição. O homem sempre teve que conviver e tentar superar a escassez de
recursos: alimento e abrigo.
Sob
certo ponto de vista, todas as principais criações da espécie humana – a
agricultura, o Estado, a religião, a tecnologia, a cultura – foram estimuladas
pela necessidade de sobrevivência em um mundo no qual os recursos básicos,
principalmente o alimento, são limitados. Tribos, Estados e impérios guerrearam
por mais território, mais riquezas, mais poder e, além de tudo, por mais
comida. A história humana é a narrativa dos seres humanos tentando saciar sua
fome. Milhares de gerações pré-humana e humanas, passaram grande parte de suas curtas
vidas sem alimentação suficiente, desde a mais tenra idade até morrem, quase
todos com menos de 35 anos. As escavações arqueológicas em todas as regiões do
globo dão conta disso; malformação de dentes e ossos foram comuns entre nossos
antepassados. É difícil imaginar este quadro para nós, que vivemos em
sociedades desenvolvidas, onde a maioria não passa mais fome e tem uma vida
relativamente longa.
Basta
consultar o Google e pesquisar na Wikipédia fomes
em massa, (https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_fomes_em_massa) para encontrar uma
lista de mais de 170 ocorrências de períodos de fome desde o século V a.C. até
nossos dias. Vale ressaltar que esta relação de eventos se refere apenas aos
episódios conhecidos; imagine-se as fomes periódicas ocorridas desde a
Antiguidade na já naquela época populosas China e Índia, ou entre grupos
humanos nas Américas, na África e na Austrália. A fome pela escassez de caça,
provocada pelas mudanças climáticas ocorridas no final do período glacial do
Pleistoceno, foi a principal razão pela qual nossos antepassados passaram a
praticar a agricultura, há cerca de 10 mil anos. Da mesma forma, alterações do
clima, como períodos prolongados de chuva ou seca e invernos mais longos, destruíram
colheitas e sementes, provocando falta de alimentos. O mais conhecido exemplo
de um tal tipo de desastre foi a Grande Fome de 1315-1317, na Europa. Excesso
de chuvas e temperaturas baixas durante a primavera e o verão do ano de 1315,
fizeram com que as sementes não germinassem. A falta de alimento para as
populações e para os animais, deu início a uma cadeia de acontecimentos: fome,
doenças, crimes, mortandade e até casos de canibalismo, fizeram com que 10% a 25%
da população de muitas cidade e vilas perecessem.
A
fome sempre foi motivo de preocupação dos governantes desde a Antiguidade, mas
foi com a Revolução Industrial que o problema se tornou mais premente para os
Estados. As fábricas atraíram parte da população rural para as cidades,
diminuindo a mão de obra na agricultura. Ao mesmo tempo, a indústria química
passava a desenvolver os primeiros fertilizantes para o solo, com base nas
pesquisas de Justus von Liebig (1803-1873), um dos iniciadores da química
orgânica, que em 1840 publicou A química
orgânica em sua aplicação à química agrícola e à fisiologia. A partir desse
período a atividade agrícola poderia contar com o apoio efetivo da ciência, sem
depender somente das técnicas desenvolvidas ao longo de milênios de experiência,
mas ainda pouco eficientes. Assim, no século XIX e XX a agricultura começa a dispor
de produtos químicos e máquinas, que aumentam em muito a produtividade. Nos
anos 1960 e 1970 a biotecnologia começa a desenvolver sementes híbridas e
transgênicas, mais resistentes às pragas e às intempéries, permitindo colheitas
e lucros ainda maiores. No entanto, apesar de todos estes avanços, a problema
mundial da fome ainda não estava eliminado.
O
Clube de Roma, é uma associação de cientistas, acadêmicos, políticos,
estadistas e empresários que vêm se reunindo desde 1968, para discutir assuntos
relacionados com a economia internacional, com ênfase na questão ambiental e no
desenvolvimento sustentável. Com relação à fome, o grande mérito dessa
instituição foi relacionar a questão ambiental – o uso dos recursos naturais –
com o tema da agricultura. Em 1972 o Clube de Roma contratou uma equipe do MIT (Instituto de Tecnologia de
Massachusetts), chefiada por Donella e Denis Meadows, que elaborou um relatório,
publicado sob o título de Os limites do
crescimento. Tratando de assuntos como poluição, crescimento populacional,
energia, saneamento e saúde, o relatório concluía que o planeta não suportaria
o ritmo de crescimento da população, mesmo considerando os avanços tecnológicos
futuros. Devido aos impactos ambientais provocados pela tecnologia (exaustão dos
solos, uso de agroquímicos, destruição de áreas naturais remanescentes) poderia
cair a oferta mundial de alimentos, ao passo que a população continuaria a
crescer, o que provocaria crises de carestia de víveres.
A
situação apontada pelo relatório Os limites
do crescimento parece não ter se confirmado – pelo menos até agora – no que
se refere à produção de alimentos, graças à criação de uma técnica que reúne um
conjunto de tecnologias, para aumentar a produtividade da agricultura. Chamada
de Revolução Verde, o método foi desenvolvido pelo engenheiro agrônomo
norte-americano Norman Borlaug (1914-2009), introduzido a partir da década de
1960 nos Estados Unidos e na Europa, disseminando-se pelo mundo nos anos 1970.
A técnica se baseia no uso intensivo de sementes alteradas, insumos industriais
(agrotóxicos e fertilizantes), larga mecanização e emprego intensivo de
tecnologia. A Revolução Verde contribuiu em grande parte para aumentar a
produção agrícola de países com grande população como a China e a Índia, que
sem este tipo de agricultura enfrentariam constantes crises de desabastecimento
alimentar. Por outro lado, além de aumentar a produção agrícola, a Revolução
Verde também ajudou a transformar países como os Estados Unidos, o Brasil e a
Argentina em grandes fornecedores de commodities
agrícolas no mercado mundial. Criada em 1973, durante o período de introdução
da Revolução Verde no Brasil, a Embrapa – Empresa Brasileira de Pesquisa
Agropecuária é um exemplo do sucesso desta tecnologia. Desenvolvendo pesquisas
e produtos voltados para a atividade agrícola e pecuária, a empresa tornou-se o
maior centro de know-how nesta área
para regiões tropicais em todo o mundo. Grande parte do sucesso obtido pelo
agronegócio a partir dos anos 1980, deve-se às atividades cientificas
desenvolvidas por esta instituição.
Se,
por um lado, o tecnologia da Revolução Verde trouxe maiores colheitas, por
outro lado também provocou impactos. A produção agrícola baseada em grandes
áreas, o sistema plantation, tem forte
impacto sobre o meio ambiente, devido ao uso extensivo de terras e intensivo de
fertilizantes e agroquímicos, diminuindo a biodiversidade original do solo, ao
mesmo tempo em que pode contaminar os recursos hídricos com produtos químicos. Os
principais produtos produzidos atualmente pelo agronegócio brasileiro são:
soja, cana de açúcar, café, milho, algodão, laranja, mandioca, arroz, cacau e
celulose, destinados em grande parte à exportação. Por outro lado, 70% dos
alimentos consumidos no mercado interno são produzidos pelas pequenas
propriedades agrícolas, cujo nível de capacitação, capitalização, mecanização e
uso de tecnologias de ponta é relativamente baixo, se comparadas às cerca de
400 mil empresas do agronegócio moderno.
Apesar
da grande expansão da agricultura a partir dos anos 1970, acompanhando o
crescimento populacional, a fome não foi erradicada no mundo. Segundo dados
disponíveis na ONU, em 2019 a fome atingia 820 milhões de pessoas em todo o
planeta, mas principalmente na África. Países que já sofriam de insegurança
alimentar antes do surgimento da pandemia, causada por conflitos armados, secas
prolongadas e depressão econômica, se tornaram ainda mais vulneráveis com o
surto da doença. Burkina Fasso, Nigéria, Somália, Sudão, República
Centro-Africana, entre outros, já se encontram em graves crises alimentares, fator
que provoca ainda mais conflitos e movimentos de refugiados para outros países.
Além dos aspectos ambientais e político-econômicos, muitos países também não
dispõem de suficientes recursos financeiros para adquirir alimentos no mercado
internacional, cujos preços, principalmente dos grãos e leguminosas,
encontram-se ainda mais inflacionados desde o surgimento da pandemia. Segundo
um estudo da consultoria McKinsey, a alimentação do mundo é baseada
principalmente em quatro grãos: arroz, trigo, milho e soja, que constituem
quase a metade das calorias de uma dieta global típica. Por outro lado, aproximadamente
60% da produção mundial de alimentação, se dá em apenas cinco países:
Argentina, Brasil, China, Estados Unidos e Índia.
No Brasil a fome sempre foi endêmica, tendo
diminuído com o desenvolvimento de uma prática agrícola mais moderna,
notadamente a partir dos anos 1970. Mesmo assim, sempre houve bolsões de fome,
principalmente na região Nordeste, associados à pobreza. O programa Fome Zero
foi criado em 2003, durante o governo do presidente Luís Inácio Lula da Silva,
substituindo e ampliando o programa Comunidade Solidária, implantado no governo
de Fernando Henrique Cardoso. Para atender cerca de 44 milhões de pessoas
ameaçadas pela fome à época, o programa foi desenvolvido com um conjunto de
mais de 30 iniciativas complementares, com o objetivo de atacar as causas da
fome e da insegurança alimentar. Segundo a Organização das Nações Unidas para
Alimentação e a Agricultura (FAO), a insegurança alimentar divide-se em três
categorias: a) a insegurança alimentar leve, quando existe preocupação com
acesso à comida e queda na qualidade dos alimentos; b) a insegurança moderada,
quando há uma redução na quantidade de alimentos e quebra nos padrões de nutrição
entre adultos; e c) grave, com redução quantitativa de alimentos também entre
crianças. A fome torna-se uma experiência concreta no lar.
No
Brasil, entre 2013 e 2018 a insegurança alimentar nos domicílios cresceu em 62,4%,
atingindo 10,3 milhões de pessoas. A situação é pior no Nordeste e na região
Norte, onde respectivamente apenas 49,7% e 43% dos domicílios tiveram acesso
pleno e regular aos alimentos. Nas outras regiões o acesso regular a alimentos
chega a 79,3% (Sul); 68,8% (Sudeste) e 64,8% (Centro-Oeste). Desde 2014 o Brasil
havia deixado de constar na relação do Mapa da Fome – países que têm mais de 5%
da população ingerindo menos caloria do que o recomendável. Em 2019, no
entanto, a FAO alertou o governo brasileiro de que o país poderia vir a
reintegrar esta lista. Ainda em relação a isto, dados do IBGE informam que
cresceu em três milhões o número de pessoas em situação de insegurança
alimentar grave nos últimos cinco anos e o percentual dos brasileiros com
alimentação satisfatória, atingiu o patamar mínimo em 15 anos. A estatística
inclui apenas os moradores de domicílios permanentes, excluídas as pessoas em
situação de rua.
O
Brasil é o segundo maior produtor mundial de alimentos, depois dos Estados
Unidos. No entanto, paradoxalmente, enfrentamos uma alta nos preços dos
produtos agrícolas de maior consumo, como o arroz (25,55% em 12 meses), o
feijão (48,37%), óleo de soja (23,51%) o leite (18,79%), a carne, ovos e vários
outros produtos constantes da cesta básica de alimentação. A alta dos preços,
segundo especialistas, deve continuar pelo menos para alguns produtos, o que
prejudicará ainda mais grande parte da população, que continua sem recursos
financeiros como consequência da pandemia – situação que será agravada com o
término do auxílio emergencial a partir de 2021.
Com
o recebimento do auxílio emergencial da pandemia, muitas pessoas tiveram mais
dinheiro para comprar alimentos, do que teriam em situação normal. Só isso nos
dá uma ideia do grau de pobreza e até de miserabilidade em que vive parcela
considerável dos brasileiros – cerca de 30% da população, aproximadamente 62
milhões de pessoas. Alegam alguns economistas que com os recursos do auxílio
emergencial os pobres aumentaram o consumo de alimentos, o que provocou o
aumento de preços pelo comerciantes. A maior parte dos especialistas, no
entanto, dá como origem do aumento dos preços dos alimentos exatamente a falta
deles, provocada pelo crescimento de suas exportações, tornadas mais vantajosas
com a alta do dólar. Assim, enquanto desde o mês de junho o setor do
agronegócio aumentava exponencialmente suas exportações, principalmente de
arroz, o governo federal já não dispunha de estoques reguladores de alimentos
básicos. A iniciativa de abolir os estoques reguladores, comuns na maioria dos
países, foi tomada pelo governo do presidente Temer, e assim permaneceu até
agora. Desta forma – mais um paradoxo destes tempos tão estranhos – um dos
maiores países produtores e exportadores de arroz terá que importar arroz para
abastecer sua população. No entanto, este arroz importado chegará ao consumidor
a um preço mais alto do que vinha se pagando pelo grão produzido internamente. Não
se pode culpar os produtores e comerciantes por quererem ganhar mais,
aproveitando as condições favoráveis, mesmo que à custa dos consumidores
internos. O que se espera, todavia, é que o governo volte a retomar a
inteligente e previdente prática de formar estoques reguladores de certos
produtos de primeira necessidade.
(Imagens: pinturas de Hariton Pushwagner)