Sarcástico rio que contradizes o curso das águas
E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,
Onde me queres levar?..."
Mário de Andrade - A meditação sobre o Tietê
O
humor do brasileiro mudou bastante nos últimos meses. O isolamento social, constante
ou ocasional, requerido como principal profilaxia na prevenção da contaminação
pelo covid, contribuiu para que muitas pessoas se tornassem mais ansiosas,
agressivas e deprimidas. São mais comuns do que antes as cenas de discussão ou
briga em locais públicos, nas filas ou no trânsito. Especialistas dizem que
este tipo de comportamento está se tornando rotina em todos os países; não é
exclusividade de nossa sociedade.
Esta
exasperação dos ânimos, no entanto, não é uma ira. A ira, segundo o filósofo Byung-Chul
Han “é uma capacidade que está em
condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.” ¹ No entanto, devido às circunstâncias e
à ação da própria pandemia, estamos num estado constante de irritação. Uma
irritação que gera conflito entre as pessoas e o abatimento dos ânimos. Ainda
segundo Byung-Chul Han “Hoje, cada vez
mais ela (a ira) cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem
produzir nenhuma mudança decisiva. Assim, irritamo-nos também por causa do
inevitável. A irritação está para a ira como o medo está para a angústia.” ² O inevitável, neste caso, é a pandemia
e todas as suas consequências.
O
mal estar geral teve início quando ainda não haviam perspectivas de uma vacina
contra o vírus, no início da pandemia. Os noticiários informavam as centenas de
mortes e as milhares de contaminações diárias, aqui no Brasil e mundo afora.
Isso fez com que parte da população mundial ficasse sem ação, como que
paralisada. Era certo que, cedo ou tarde, as dezenas de equipes de cientistas,
trabalhando em vários laboratórios do globo, encontrariam um antídoto para a
doença. Mas, quanto demoraria para que este medicamento estivesse disponível?
A
economia mundial encontrava-se paralisada; fábricas, centros de distribuição e
lojas fechados. Milhões de pessoas sem trabalhar e muitos sem nenhum rendimento,
por quanto tempo? E depois de controlar a doença, como as economias se
recuperariam? Para muitos, estava se tornando claro, que a retomada das
atividades econômicas não ocorreria imediatamente. Não era como um carro
estacionado, no qual bastaria entrar, dar a partida, engatar a marcha e imediatamente
colocar a máquina em movimento novamente.
Segundo
o relatório “Brasil Pós-Covid 19 – Contribuições do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (ipea)”, preparado pela própria instituição vinculada ao
Ministério da Economia, “a complexidade
do contexto atual indica que o país está vivendo um momento crítico e de
potencial inflexão para a trajetória nacional de desenvolvimento.” ³ Efetivamente,
o país nunca passou por uma crise econômica e social destas proporções, em todo
o seu período republicano. A situação não vai se resolver simplesmente pelas
forças cegas da economia – “a mão invisível do mercado”, como a chamam ainda
alguns renitentes economistas neoliberais.
Em
situações como estas, de grandes crises econômicas e sociais provocadas por
guerras ou fenômenos naturais, o Estado (leia-se governo) precisa intervir, a
fim de recuperar a atividade econômica, reforçar e reconstruir instituições e
serviços públicos, garantindo a segurança da população. Em relação a isso,
ainda acrescenta o relatório do ipea: “Nesse
sentido, propostas de políticas públicas e evidências robustas e objetivas são
insumos críticos para norteamento da ação governamental de curto, médio e longo
prazo.” 4
É necessário estabelecer uma política econômica abrangente para o país, visando a recuperação econômica e, principalmente, a melhoria das condições de subsistência de milhões de brasileiros, que do nível econômico da classe média caíram para a pobre e desta para a miserável. Pequenas reformas, privatizações e cortes ou remanejamentos de recursos de uma pasta para outra, não impulsionarão a atividade econômica de modo sustentável.
O país perdeu e provavelmente ainda perderá milhões de postos de trabalho, se o Estado não agir como indutor do processo de recuperação e organização da atividade econômica. A economia não pode permanecer indefinidamente estagnada, fazendo com que parte considerável da população venha a depender de programas sociais de ajuda do governo, muitas vezes de caráter clientelista – programas que classificados como populistas, foram tanto criticados em outros governos.Talvez o cansaço e o desânimo das pessoas, o pessimismo em relação ao futuro da economia para 41% da população, segundo pesquisa recente do Datafolha, seja uma continuidade do processo que começou em 2014 e se acentuou com a pandemia. A falta de perspectivas de desenvolvimento pessoal através do estudo, de acesso à cultura e de cargos melhor remunerados, são as principais causas do desalento de parte da população, principalmente os jovens.
Não
são palavras de ordem falsamente patrióticas, ou propagandas espetaculosas aparentemente
nacionalistas, que mudarão o humor e elevarão o ânimo das pessoas.
Planejamento, projetos e ações concretas, implantados de forma coerente, sem as
constantes idas e vidas, e efetivamente cobrando a contribuição do capital;
estas sim, são ações que farão a diferença.
1. Han,
Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Editora Vozes: Petrópolis, 2015, p. 54
2. Ibid.,
p. 54
3.
Ipea. Brasil Pós-Covid 19. Ministério da Economia: Brasília, 2020, p. 8
4. Ibid.,
p. 8
(Imagens: pinturas de David Hockney)
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