Pandemia e desânimo

sábado, 3 de outubro de 2020

 

"Meu rio, meu Tietê, onde me levas?

Sarcástico rio que contradizes o curso das águas

E te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,

Onde me queres levar?..."

Mário de Andrade   -   A meditação sobre o Tietê


O humor do brasileiro mudou bastante nos últimos meses. O isolamento social, constante ou ocasional, requerido como principal profilaxia na prevenção da contaminação pelo covid, contribuiu para que muitas pessoas se tornassem mais ansiosas, agressivas e deprimidas. São mais comuns do que antes as cenas de discussão ou briga em locais públicos, nas filas ou no trânsito. Especialistas dizem que este tipo de comportamento está se tornando rotina em todos os países; não é exclusividade de nossa sociedade.

Esta exasperação dos ânimos, no entanto, não é uma ira. A ira, segundo o filósofo Byung-Chul Han “é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado.” ¹ No entanto, devido às circunstâncias e à ação da própria pandemia, estamos num estado constante de irritação. Uma irritação que gera conflito entre as pessoas e o abatimento dos ânimos. Ainda segundo Byung-Chul Han “Hoje, cada vez mais ela (a ira) cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva. Assim, irritamo-nos também por causa do inevitável. A irritação está para a ira como o medo está para a angústia.” ² O inevitável, neste caso, é a pandemia e todas as suas consequências.

Em casos extremos, este sentimento de impotência, de impossibilidade de reação – contra todas as circunstâncias sociais, médicas e econômicas relacionadas com o covid – pode dar início a um processo psíquico de desânimo e prostração. Em alguns casos pode chegar ao suicídio, cujos índices mundiais aumentaram consideravelmente. Dados do governo americano informam que em junho de 2020 40% dos adultos entrevistados, relataram estarem com algum tipo de distúrbio mental, ou dificuldades por abuso de substâncias de uso controlado. 

O mal estar geral teve início quando ainda não haviam perspectivas de uma vacina contra o vírus, no início da pandemia. Os noticiários informavam as centenas de mortes e as milhares de contaminações diárias, aqui no Brasil e mundo afora. Isso fez com que parte da população mundial ficasse sem ação, como que paralisada. Era certo que, cedo ou tarde, as dezenas de equipes de cientistas, trabalhando em vários laboratórios do globo, encontrariam um antídoto para a doença. Mas, quanto demoraria para que este medicamento estivesse disponível?

A economia mundial encontrava-se paralisada; fábricas, centros de distribuição e lojas fechados. Milhões de pessoas sem trabalhar e muitos sem nenhum rendimento, por quanto tempo? E depois de controlar a doença, como as economias se recuperariam? Para muitos, estava se tornando claro, que a retomada das atividades econômicas não ocorreria imediatamente. Não era como um carro estacionado, no qual bastaria entrar, dar a partida, engatar a marcha e imediatamente colocar a máquina em movimento novamente.

Não, como estamos vendo principalmente na economia brasileira, que já vinha em desaceleração desde 2014, tudo está sendo e será bem mais difícil do que muitos governos propalavam.

Segundo o relatório “Brasil Pós-Covid 19 – Contribuições do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (ipea)”, preparado pela própria instituição vinculada ao Ministério da Economia, “a complexidade do contexto atual indica que o país está vivendo um momento crítico e de potencial inflexão para a trajetória nacional de desenvolvimento.” ³ Efetivamente, o país nunca passou por uma crise econômica e social destas proporções, em todo o seu período republicano. A situação não vai se resolver simplesmente pelas forças cegas da economia – “a mão invisível do mercado”, como a chamam ainda alguns renitentes economistas neoliberais.

Em situações como estas, de grandes crises econômicas e sociais provocadas por guerras ou fenômenos naturais, o Estado (leia-se governo) precisa intervir, a fim de recuperar a atividade econômica, reforçar e reconstruir instituições e serviços públicos, garantindo a segurança da população. Em relação a isso, ainda acrescenta o relatório do ipea: “Nesse sentido, propostas de políticas públicas e evidências robustas e objetivas são insumos críticos para norteamento da ação governamental de curto, médio e longo prazo.” 4

É necessário estabelecer uma política econômica abrangente para o país, visando a recuperação econômica e, principalmente, a melhoria das condições de subsistência de milhões de brasileiros, que do nível econômico da classe média caíram para a pobre e desta para a miserável. Pequenas reformas, privatizações e cortes ou remanejamentos de recursos de uma pasta para outra, não impulsionarão a atividade econômica de modo sustentável. 

O país perdeu e provavelmente ainda perderá milhões de postos de trabalho, se o Estado não agir como indutor do processo de recuperação e organização da atividade econômica. A economia não pode permanecer indefinidamente estagnada, fazendo com que parte considerável da população venha a depender de programas sociais de ajuda do governo, muitas vezes de caráter clientelista – programas que classificados como populistas, foram tanto criticados em outros governos.

Talvez o cansaço e o desânimo das pessoas, o pessimismo em relação ao futuro da economia para 41% da população, segundo pesquisa recente do Datafolha, seja uma continuidade do processo que começou em 2014 e se acentuou com a pandemia. A falta de perspectivas de desenvolvimento pessoal através do estudo, de acesso à cultura e de cargos melhor remunerados, são as principais causas do desalento de parte da população, principalmente os jovens.  

Não são palavras de ordem falsamente patrióticas, ou propagandas espetaculosas aparentemente nacionalistas, que mudarão o humor e elevarão o ânimo das pessoas. Planejamento, projetos e ações concretas, implantados de forma coerente, sem as constantes idas e vidas, e efetivamente cobrando a contribuição do capital; estas sim, são ações que farão a diferença.  

 

1. Han, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Editora Vozes: Petrópolis, 2015, p. 54

2. Ibid., p. 54

3. Ipea. Brasil Pós-Covid 19. Ministério da Economia: Brasília, 2020, p. 8

4. Ibid., p. 8


(Imagens: pinturas de David Hockney)

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