Os microrganismos
acompanham o homo sapiens desde o
início de seu surgimento, há cerca de 200 mil anos. Os ancestrais humanos e
outras espécies aparentadas – como o homo
ergaster, passando pelo homo heidelbergensis
e pelo homo neaderthalensis – para
citar só alguns, também foram acometidos por doenças causadas pelos vírus. Ao
longo de seu deslocamento partindo da África, pelo Oriente Médio, em direção à
Ásia e daí para a Oceania, onde chegou há cerca de 50 a 60 mil anos em
sucessivas levas de migração, o homem interagiu com diversos tipos de
microrganismos, notadamente os vírus.
Vestígios
de sítios localizados ao longo desta rota de migração, habitados por nossos
antepassados, estão sendo escavados e analisados. Nos resíduos estão sendo
coletados microrganismos, cujo DNA ou RNA (compostos orgânicos que contêm as
instruções genéticas para o desenvolvimento da vida) estão sendo analisados.
Fato interessante observado pelos pesquisadores, é que ao longo do tempo que
estes grupos humanos levaram para se deslocar, os microrganismos também
sofreram mutações. Em seu livro A
história da humanidade contada pelo vírus, o médico infectologista e
professo brasileiro Stefan Cunha Ujvari escreve: “O vírus HPV (papilomavírus humano) [...] multiplica-se no organismo
infectado e sofre mutações constantes. Os vírus descendentes apresentam cópias
diferentes do seu DNA. Gerações futuras do vírus inicial serão geneticamente
diferentes. Cada grupo humano que se desgarrou dos demais levou consigo vírus
responsáveis por uma geração geneticamente diferente dos demais que ficaram
para trás. [...] Comparando as alterações do seu DNA em populações nativas de
regiões diferentes, podemos traçar a rota percorrida pelo vírus HPV que
coincidiria com o trajeto de seu carregador, o homem moderno.”
A
dispersão de bactérias e vírus se deu de diversas formas, ao longo da
pré-história e da história. Um tipo de tuberculose, a catapora, a AIDS, a
herpes, a sífilis, as gripes e vários outros tipos de doenças causadas por
microrganismos, também fizeram o mesmo trajeto, sempre levadas pelas populações
humanas em suas migrações, no comércio, nas guerras e nas viagens exploratórias
– mais recentemente, poderíamos acrescentar o turismo também a esta lista.
A
maior parte destas doenças, principalmente as viróticas, têm uma origem
atualmente bastante estudada e conhecida em seu processo de dispersão.
Transcrevemos aqui mais um trecho do livro A
história da humanidade contada pelos vírus: “Todo vírus da natureza precisa de
auxílio de outro ser vivo para se reproduzir. Isso ocorre porque ele é
constituído apenas do seu material genético, seja DNA ou RNA. E, ao contrário
das bactérias, não contém o maquinário celular necessário para sua reprodução.
Por isso invade a célula de um organismo vivo (animal ou vegetal) para
emprestar sua moléculas, copiar o seu próprio material genético e construir
novos vírus. Sob seu comando, as células invadidas produzem cópias de seu
envelope para enclausurar o seu DNA ou RNA já replicados. Formam inúmeros novos
vírus iguais ao invasor. A ‘prole’ é expulsa e está apta para repetir a
operação.” É através deste processo que também se dá a propagação, nos
organismos, do atual vírus Covid-19.
O
risco de um aumento das doenças zoonóticas existe e pode aumentar. À medida em
que o homem avança sobre as últimas áreas ainda pouco exploradas, como as
remanescentes florestas tropicais, a possibilidade de um encontro com patógenos
endêmicos e, consequentemente, de um transbordamento, aumenta. A destruição de
um ecossistema e de seus membros – muitos deles, como os morcegos, hospedeiros
de vírus – pode fazer com que estes microrganismos encontrem, acidentalmente,
um novo hospedeiro, que pode ser um animal doméstico ou o homem. A partir
disso, pode ter início um rápido processo de transmissão, favorecido ainda mais
pela atual facilidade de transporte, mesmo nas regiões mais remotas.
Sobre
este assunto, recentemente foi divulgado um relatório, encomendado pela
Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Sistêmicos
(IPBES), ligada à ONU. O estudo, conduzido por 22 renomados cientistas, aborda a relação entre a expansão de doenças infecciosas, transmitidas de animais para
pessoas (zoonoses), e a biodiversidade. O documenta estima que existam cerca de
1,7 milhão de vírus pouco conhecidos e até desconhecidos, que tem seu habitat nos organismos de mamíferos e
pássaros de todo o mundo. Destes, aproximadamente 850 mil espécies de vírus têm
o potencial de se transformarem em moléstias zoonóticas, ao contaminarem seres
humanos.
A
quantidade de vírus existentes na natureza é imensa. Cientistas estimam que
existam trilhões de espécies destas criaturas na Terra. Alan Burdick, repórter
do jornal New York Times e mencionado no artigo publicado na revista Piauí,
escreve que os vírus “infectam morcegos, feijões, besouros, amoras, mandioca,
mosquitos, batatas, pangolins, carrapatos e diabos-da-tasmânia. Desenvolvem
cânceres em pássaros e fazem com que as bananas fiquem pretas. Destes trilhões
(de vírus), apenas algumas centenas de milhares de tipos são conhecidos e menos
de sete mil têm nome. Sabemos que apenas 250, incluindo o Sars-CoV-2, possuem
os mecanismos para nos infectar.”
Em
outro estudo, mencionado recentemente pelo site ClimaInfo, especialistas
catalogaram mais de 3,2 mil tipos de coronavírus em morcegos da Amazônia. Sobre
isso comentou a pesquisadora Ana Lúcia Tominho, da Universidade Federal de Mato
Gross (UFMT): “Se a Amazônia virar uma grande savana, não dá nem para imaginar
o que pode sair de lá em termos de doenças. É imprevisível. Além de ser
importante para nós por causa o clima, da fauna, ela é importante para nossa
saúde.”
A
espécie humana não é essencial para a sobrevivência da maior parte dos vírus,
excetuando-se aqueles que provocam a febre amarela urbana, a dengue, a
chicungunha, a zika e a febre do oropouche; patogênicos urbanos cujo hospedeiro
preferencial é o homem. Nenhum vírus da Amazônia, vivendo no bioma há dezenas
de milhares ou milhões de anos, precisa dos humanos para se reproduzir. No
entanto, se destruirmos seu habitat e seus hospedeiros, e se estivermos no lugar
errado e na hora errada, poderá ocorrer o pior. A floresta fechada, atua como um escudo de
proteção, tanto para o vírus, como para o homem. Ultrapassada esta barreira
pela degradação ambiental, com a destruição de ecossistemas e de espécies, pode
ocorre o transbordamento destes microrganismos para animais e deles para os
humanos.
(Fotografias de Raghu Rai)
2 comments:
Como sempre, a escrita lúcida e embasada do Ricardo nos facilitam o entendimento de questões complexas, proporcionando uma ferramenta valiosa para sustentar as argumentações tão necessárias aos enfrentamentos nas demandas socioambientais.
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