Novas pandemias com a destruição da floresta?

sábado, 7 de novembro de 2020

 

"Não há cura para o nascimento e a morte, salvo apreciar o intervalo entre os dois."   -   George Santayana   -   Solilóquios na Inglaterra


Os microrganismos acompanham o homo sapiens desde o início de seu surgimento, há cerca de 200 mil anos. Os ancestrais humanos e outras espécies aparentadas – como o homo ergaster, passando pelo homo heidelbergensis e pelo homo neaderthalensis – para citar só alguns, também foram acometidos por doenças causadas pelos vírus. Ao longo de seu deslocamento partindo da África, pelo Oriente Médio, em direção à Ásia e daí para a Oceania, onde chegou há cerca de 50 a 60 mil anos em sucessivas levas de migração, o homem interagiu com diversos tipos de microrganismos, notadamente os vírus.

Vestígios de sítios localizados ao longo desta rota de migração, habitados por nossos antepassados, estão sendo escavados e analisados. Nos resíduos estão sendo coletados microrganismos, cujo DNA ou RNA (compostos orgânicos que contêm as instruções genéticas para o desenvolvimento da vida) estão sendo analisados. Fato interessante observado pelos pesquisadores, é que ao longo do tempo que estes grupos humanos levaram para se deslocar, os microrganismos também sofreram mutações. Em seu livro A história da humanidade contada pelo vírus, o médico infectologista e professo brasileiro Stefan Cunha Ujvari escreve: “O vírus HPV (papilomavírus humano) [...] multiplica-se no organismo infectado e sofre mutações constantes. Os vírus descendentes apresentam cópias diferentes do seu DNA. Gerações futuras do vírus inicial serão geneticamente diferentes. Cada grupo humano que se desgarrou dos demais levou consigo vírus responsáveis por uma geração geneticamente diferente dos demais que ficaram para trás. [...] Comparando as alterações do seu DNA em populações nativas de regiões diferentes, podemos traçar a rota percorrida pelo vírus HPV que coincidiria com o trajeto de seu carregador, o homem moderno.”


Assim, interagindo com a própria e outras espécies ao longo de sua evolução, deslocando-se através de diversos tipos de ambientes, o homem entrou em contato com diversas tipos de microrganismos, que passaram a seguir os grupos humanos por todo o planeta. Há inúmeros casos desta convivência e evolução conjunta – biólogos evolucionistas chamam-na de coevolução – entre seres humanos e espécies microscópicas. Um exemplo interessante, descrito no livro de Ujvari, é o da bactéria
Helycobacter pylori, descoberta recentemente como a causadora da úlcera do estômago, que até há pouco tempo era imputada ao uso inadequado de antibióticos. A bactéria é facilmente transmissível entre pessoas, e desta forma também pode se propagar junto com os deslocamentos das populações. Assim, através de estudos comparativos entre as diversas cepas de bactérias H. pylori (mutações), colhidas diretamente de indivíduos de diversas partes do globo, descobriu-se que a Helycobacter pylori é originária da África, acompanhou os humanos em seus deslocamentos pelo Oriente Médio e Europa, até chegar à extremidade do continente asiático. Sempre através da transmissão oral ou objetos contaminados. Até mesmo os primeiros povos que adentraram as Américas através do estreito de Behring, já traziam a bactéria em seus estômagos.

A dispersão de bactérias e vírus se deu de diversas formas, ao longo da pré-história e da história. Um tipo de tuberculose, a catapora, a AIDS, a herpes, a sífilis, as gripes e vários outros tipos de doenças causadas por microrganismos, também fizeram o mesmo trajeto, sempre levadas pelas populações humanas em suas migrações, no comércio, nas guerras e nas viagens exploratórias – mais recentemente, poderíamos acrescentar o turismo também a esta lista.

A maior parte destas doenças, principalmente as viróticas, têm uma origem atualmente bastante estudada e conhecida em seu processo de dispersão. Transcrevemos aqui mais um trecho do livro A história da humanidade contada pelos vírus: “Todo vírus da natureza precisa de auxílio de outro ser vivo para se reproduzir. Isso ocorre porque ele é constituído apenas do seu material genético, seja DNA ou RNA. E, ao contrário das bactérias, não contém o maquinário celular necessário para sua reprodução. Por isso invade a célula de um organismo vivo (animal ou vegetal) para emprestar sua moléculas, copiar o seu próprio material genético e construir novos vírus. Sob seu comando, as células invadidas produzem cópias de seu envelope para enclausurar o seu DNA ou RNA já replicados. Formam inúmeros novos vírus iguais ao invasor. A ‘prole’ é expulsa e está apta para repetir a operação.” É através deste processo que também se dá a propagação, nos organismos, do atual vírus Covid-19.


Parte das doenças, principalmente as viróticas que nos afligem até hoje, foram adquiridas através do contato com animais selvagens, portadores assintomáticos destes vírus. Isto ocorreu em uma fase mais primitiva do desenvolvimento das sociedades humanas, quando este grupos – caçadores, pastores – ainda viviam em ambientes selvagens. Outra parte maior destas moléstias virais tem origem no contato humano com seus animais de criação; como os porcos, as cabras, carneiros, vacas e galinhas, entre outros, já durante a fase em que a humanidade começava a praticar também a agricultura. As espécies domesticadas, em contato com ambientes ou animais selvagens (que são o habitat de vírus ainda desconhecidos) como camundongos, aves selvagens, e morcegos, eram contaminadas. Destes animais domésticos, através da ingestão de sua carne, sangue, leite ou contato com suas secreções, os vírus podiam, em alguns casos, “pular” para o organismo humano. Este processo chama-se transbordamento. No artigo intitulado
O elefante negro, publicado na revista Piauí de outubro de 2020, escreve o jornalista e documentarista João Moreira Sales: “Transbordamento é o termo que descreve o evento no qual um patógeno salta de um animal para o seu primeiro hospedeiro humano. A pandemia causada pelo Sars-CoV-2 nos familiarizou com doenças dessa natureza, as chamadas doenças zoonóticas, aquelas que passam de animais não humanos para humanos. Raiva, doença da vaca louca, carbúnculo (ou antraz), Sars, zika, peste bubônica – todas nos chegaram via reino animal. Mais de 60% das cerca de 400 doenças infecciosas identificadas desde 1940 são zoonóticas.”

O risco de um aumento das doenças zoonóticas existe e pode aumentar. À medida em que o homem avança sobre as últimas áreas ainda pouco exploradas, como as remanescentes florestas tropicais, a possibilidade de um encontro com patógenos endêmicos e, consequentemente, de um transbordamento, aumenta. A destruição de um ecossistema e de seus membros – muitos deles, como os morcegos, hospedeiros de vírus – pode fazer com que estes microrganismos encontrem, acidentalmente, um novo hospedeiro, que pode ser um animal doméstico ou o homem. A partir disso, pode ter início um rápido processo de transmissão, favorecido ainda mais pela atual facilidade de transporte, mesmo nas regiões mais remotas.    



Sobre este assunto, recentemente foi divulgado um relatório, encomendado pela Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços Sistêmicos (IPBES), ligada à ONU. O estudo, conduzido por 22 renomados cientistas, aborda a relação entre a expansão de doenças infecciosas, transmitidas de animais para pessoas (zoonoses), e a biodiversidade. O documenta estima que existam cerca de 1,7 milhão de vírus pouco conhecidos e até desconhecidos, que tem seu habitat nos organismos de mamíferos e pássaros de todo o mundo. Destes, aproximadamente 850 mil espécies de vírus têm o potencial de se transformarem em moléstias zoonóticas, ao contaminarem seres humanos.

A quantidade de vírus existentes na natureza é imensa. Cientistas estimam que existam trilhões de espécies destas criaturas na Terra. Alan Burdick, repórter do jornal New York Times e mencionado no artigo publicado na revista Piauí, escreve que os vírus “infectam morcegos, feijões, besouros, amoras, mandioca, mosquitos, batatas, pangolins, carrapatos e diabos-da-tasmânia. Desenvolvem cânceres em pássaros e fazem com que as bananas fiquem pretas. Destes trilhões (de vírus), apenas algumas centenas de milhares de tipos são conhecidos e menos de sete mil têm nome. Sabemos que apenas 250, incluindo o Sars-CoV-2, possuem os mecanismos para nos infectar.”

Em outro estudo, mencionado recentemente pelo site ClimaInfo, especialistas catalogaram mais de 3,2 mil tipos de coronavírus em morcegos da Amazônia. Sobre isso comentou a pesquisadora Ana Lúcia Tominho, da Universidade Federal de Mato Gross (UFMT): “Se a Amazônia virar uma grande savana, não dá nem para imaginar o que pode sair de lá em termos de doenças. É imprevisível. Além de ser importante para nós por causa o clima, da fauna, ela é importante para nossa saúde.”

A espécie humana não é essencial para a sobrevivência da maior parte dos vírus, excetuando-se aqueles que provocam a febre amarela urbana, a dengue, a chicungunha, a zika e a febre do oropouche; patogênicos urbanos cujo hospedeiro preferencial é o homem. Nenhum vírus da Amazônia, vivendo no bioma há dezenas de milhares ou milhões de anos, precisa dos humanos para se reproduzir. No entanto, se destruirmos seu habitat e seus hospedeiros, e se estivermos no lugar errado e na hora errada, poderá ocorrer o pior.  A floresta fechada, atua como um escudo de proteção, tanto para o vírus, como para o homem. Ultrapassada esta barreira pela degradação ambiental, com a destruição de ecossistemas e de espécies, pode ocorre o transbordamento destes microrganismos para animais e deles para os humanos. 


Dado este quadro, muitos cientistas se admiram de que até o momento não tenha havido nenhuma grande explosão de alguma doença, causada por alguma espécie de vírus da floresta amazônica, do Pantanal, da Mata Atlântica, ou de outra floresta tropical pelo mundo - se bem que os vírus habitam qualquer bioma e ecossistema. Muitos especialistas já dizem que não se trata de saber se tal fato vai ocorrer, mas de quando ocorrerá. Um tal acontecimento poderá ser muito mais grave do que a pandemia da Covid-19, cujo custo estimado ao planeta foi de 8 e 16 trilhões de dólares, entre janeiro e julho de 2020. Por esta razão a ONU sugere uma resposta global coordenada, envolvendo todos os países, visando evitar a perda da biodiversidade.
  


(Fotografias de Raghu Rai) 

 

 

2 comments:

Mari Polachini - MoCAN disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mari Polachini - MoCAN disse...

Como sempre, a escrita lúcida e embasada do Ricardo nos facilitam o entendimento de questões complexas, proporcionando uma ferramenta valiosa para sustentar as argumentações tão necessárias aos enfrentamentos nas demandas socioambientais.

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