A eleição de Biden e a questão ambiental

sábado, 28 de novembro de 2020

 

"A acumulação de conhecimento na ciência não tem paralelos na ética, na política, na filosofia e nas artes. O conhecimento aumenta em velocidade acelerada, mas os seres humanos não são mais razoáveis do que sempre foram."   -   John Gray   -   Sete tipos de ateísmo


Há quatro anos, em novembro de 2016, escrevemos um artigo sobre a eleição de Trump e suas consequências para o meio ambiente (A eleição de Trump e o meio ambiente - https://ricardorose.blogspot.com/2016/11/a-eleicao-de-trump-e-o-meio-ambiente.html). Como esperado, a atuação do 45º presidente eleito dos Estados Unidos exerceu forte influência na maneira como seu país e parte do mundo passou a tratar o meio ambiente. Além de eliminar diversas providências encaminhadas por seu antecessor, Barak Obama, Trump retirou poder da agência de controle ambiental americana, a EPA (United States Environmental Protection Agency), diminuiu o tamanho de áreas de proteção ambiental e de parques naturais, reduziu o número de medidas de avaliação de impacto ambiental em obras de infraestrutura, e concedeu licenças para diversos projetos de alto risco ao meio ambiente, como o gigantesco oleoduto Keystone XL que se estende do Canadá aos Estados Unidos.

No setor de transportes, gerador de grandes volumes de emissões, a administração Trump reduziu os padrões de eficiência energética em veículos e dificultou o desenvolvimento de meios de transporte mais limpos. Sua mais polêmica ação, de grandes consequências para o clima do planeta, foi a retirada de seu país do acordo climático de Paris, através do qual 195 nações ratificaram sua intenção de reduzirem as emissões de gases de efeito estufa (GEE), a partir de 2020. Os Estados Unidos, lembremos, é o segundo maior emissor de GEE depois da China.

Neste ano os Estados Unidos organizaram uma nova eleição presidencial e Joe Biden foi eleito como 46º presidente na nação. Trump alega que houve fraude no pleito, está recorrendo na justiça, mas já deu início à transferência de governo ao sucessor, que deverá tomar posse em 20 de janeiro de 2021. Em declarações à imprensa, Biden já confirmou que com relação às questões ambientais recolocará os Estados Unidos no acordo climático de Paris e que reverterá uma série de decretos assinados por seu antecessor. O novo presidente planeja retomar o Plano de Energia Limpa, que prevê a redução das emissões de CO² das usinas de geração de energia em 30%, até 2030. Este plano energético, elaborado durante o governo Obama, nunca havia entrado em vigor, por ter sido contestado na justiça por uma coalizão de empresas e governos estaduais republicanos. 

O foco principal da administração Biden em relação ao meio ambiente será a redução das emissões de carbono do país para zero, até 2050. Para isso, sua administração planeja investir cerca de 2 trilhões de dólares, em um ambicioso programa baseado principalmente em eficiência energética e nas energias renováveis, gerando milhões de empregos verdes (postos de trabalho em empresas ambientalmente sustentáveis). Na área da energia eólica, por exemplo, Biden pretende impulsionar a geração de energia eólica offshore, através de turbinas eólicas instaladas ao longo do litoral dos estados da costa Leste e da Califórnia. A cadeia da indústria automobilística, criadora de grande número de empregos diretos e indiretos, também receberá fortes incentivos para aumentar a produção de carros com motores elétricos. O setor da construção civil terá como principal meta o uso eficiente de materiais e energia, através da modernização e renovação (retrofitting) de prédios públicos e privados. Todas estas metas e outras ainda a serem acrescentadas ao programa, farão parte de um projeto já conhecido como Green New Deal (pacto ecológico), com vistas a modernizar a economia americana, gerando empregos verdes e baixas emissões de carbono (https://www.heritage.org/renewable-energy/heritage-explains/the-green-new-deal).  As estratégias e metas desta iniciativa do governo americano são bastante semelhantes ao Pacto Ecológico Europeu (https://ec.europa.eu/info/strategy/priorities-2019-2024/european-green-deal_pt).


Biden e o Partido Democrata estão encarando a questão ambiental de maneira bastante séria. Assim como a União Europeia fez há alguns meses, os Estados Unidos pretendem dar um novo direcionamento à sua política econômica na era pós-covid19. Convencida da inexorável realidade da mudança do clima acelerada pelo impacto da economia americana e do gradual aumento da temperatura do planeta se nada for feito para abrandar as emissões, a nova administração americana pretende dar um novo rumo ao desenvolvimento de sua economia, baseado nos parâmetros da sustentabilidade.

Esta intenção Biden pretende também deixar clara aos outros países. Tanto que indicou o ex-secretário de Estado do governo Barak Obama, John Kerry, para o cargo de enviado especial do Meio Ambiente (special presidential envoy for climate). Segundo reportagem apresentada recentemente na CNN online, quando o senador Bernie Sanders em 2016 classificou a questão das mudanças climáticas como “a mais importante questão de segurança nacional”, não foi levado a sério. Cinco anos depois, a própria Casa Branca criou o cargo de enviado especial do Meio Ambiente, com cadeira permanente nas reuniões do Conselho Nacional de Segurança. Kerry tem longa experiência nas questões climáticas, tendo desempenhado importante papel nas negociações para o Acordo Climático de Paris.

Este é o recado que os Estados Unidos agora transmite às outras nações do planeta: a questão do clima é séria e estamos empenhados em agir em relação a ela. Retomando seu papel de pioneiros na discussão e na criação de leis ambientais desde a década de 1960, a nação americana pretende, depois de quatro anos de ausência, voltar ao protagonismo e à liderança no tema. Com isso, exercerão uma grande influência sobre outros países. Se o exemplo da administração Trump foi negativo, fazendo com que os temas ambientais fossem relegados a um plano secundário, permitindo que muitas nações usassem implícita ou explicitamente o exemplo americano para também não agirem em relação ao clima, a partir de agora o quadro muda. A proteção aos recursos naturais, sejam quais forem, novamente é o assunto do dia na nova ordem econômica mundial pós-covid19 e pós-administração Trump – palavra da União Europeia e dos Estados Unidos.

O Brasil será uma peça importante nesta estratégia climática da administração Biden, como o próprio presidente já adiantou durante os debates eleitorais. A campanha presidencial de Biden recebeu forte apoio de grupos, de dentro e de fora do partido, ligados às questões ambientais. Assim, a questão da Amazônia com certeza será uma das primeiras pautas das reuniões entre os dois governos. Até o momento foram dizimados 20% da área original da floresta, mas se chegarmos aos 25% da área, poderemos alcançar “o ponto de não retorno”, como os cientistas classificam esta situação. Nestas condições não há mais certeza se e em quanto tempo o ecossistema poderá se recuperar.



Não se recuperando, a Amazônia poderá em parte se transformar em uma região de savana, de vegetação rala, com menor volume de recursos hídricos e com consequências para a biodiversidade; o clima e a agricultura no Brasil – além de outras implicações econômicas – e o clima mundial. Sabe-se hoje que a floresta amazônica não tem forte influência na remoção dos GEE da atmosfera, mas que exerce grande interferência na umidade e na temperatura do ar da macrorregião amazônica e também no planeta.

As características da Amazônia têm uma influência tão grande na Terra, que sua manutenção é motivo de preocupação de todos. Ninguém questiona a posse da região pelo Brasil, mas espera-se que o país faça a gestão da região de tal maneira, que o tênue equilíbrio que ainda existe entre todos os aspectos naturais possa ser mantido – pelo bem de todos. É evidente que a manutenção do ecossistema exigirá aportes de tecnologia, recursos humanos e financeiros, para que os moradores da região tenham um padrão de vida digno, de modo a não serem forçados a práticas de sobrevivência não sustentáveis, como vem ocorrendo em alguns casos. Deve-se pensar numa série de compensações para os estados e municípios da região, proporcionando-lhes o mesmo padrão de vida de outras regiões do país. 

Biden já falou em uma ajuda de 20 bilhões de dólares para desenvolver a região de uma maneira sustentável. O países europeus, com certeza, também terão interesse em cooperar em projetos de desenvolvimento social e econômico na região. Mas isto seria apenas o começo. O reverso da moeda é o papel que o governo brasileiro precisa desempenhar, voltando a controlar e gerenciar o território, coibindo todo tipo de desmantelamento dos recursos através de desmatamento e garimpo ilegal, grilagem, invasão de áreas indígenas e de unidades de conservação.

Neste aspecto cabe ressaltar que o atual governo não tem bons antecedentes. Bolsonaro sempre teve uma maneira, digamos assim, peculiar de enxergar a questão ambiental. Como ministro do Meio Ambiente indicou Ricardo Salles, que já havia atuado como Secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, tendo sido processado por irregularidades em sua administração. No cargo, Salles desmontou parte da estrutura técnica dos principais órgãos ambientais federais e limitou as ações de controle do órgão ambiental.



O governo cortou grande parte das verbas do Ministério do Meio Ambiente e reduziu drasticamente os recursos em outras iniciativas na área do meio ambiente. O posicionamento do governo em relação ao assunto deu abertura para que diversos agentes – grileiros, fazendeiros, posseiros, madeireiros e garimpeiros – aumentassem a derrubada e queima da floresta ao longo do biênio 2019/2020. O fato, amplamente coberto pela imprensa local e internacional, causou protestos em diversos países e organizações internacionais, colocando o Brasil no papel de vilão ambiental do planeta. Com isso, é bastante provável que o país seja alvo de pressão por parte do governo americano, e que seja cobrado para que tenha uma atuação mais forte na questão da floresta amazônica.

Para mudar sua imagem o país precisará mostrar que efetivamente está mudando sua atitude; o que até o momento não ocorreu. Um discurso pseudo nacionalista, baseado na premissa de que potências estrangeiras querem invadir ou extrair as riquezas da área, só trará mais problemas políticos para o nosso país e não ajudará a melhorar as condições sociais e ambientais da região.

O Brasil deveria se valer deste novo ambiente político mundial, que se formou com a eleição de Biden e a importância dada novamente à questão do clima, para tirar vantagem do fato de possuir um bioma como a Amazônia – e outros, como a Mata Atlântica e a região do Pantanal. No passado, nos governos de Lula da Silva e Dilma Rousseff, o Brasil já teve um papel de protagonista na questão climática e na do meio ambiente, e poderia retomar esta posição. Assim, o governo poderia condicionar a preservação destas áreas à assinatura de acordos de cooperação técnico-científica para o desenvolvimento sustentável da região, à elaboração de projetos de geração de renda, aos acordos comerciais e acesso a novos mercados, entre outros. O pior a fazer, tanto para o Brasil como para o mundo é manter as coisas como estão – se é que isso será possível neste novo contexto político-econômico mundial.   


(Imagens: gravuras de Erich Heckel)

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