Crise climática: indícios de aceleração

sábado, 31 de julho de 2021

 
"Este sofrimento, em seu grau mais fraco, é menos uma dor do que um estado em que não nos encontramos bem, em que não estamos à vontade. Eu denomino este estado mal-estar."   -   Étienne Bonnot de Condillac   -   Lógica


Como se já não bastasse a continuidade da sindemia da Covid-19 e sua sucessão de ondas de contaminação em todo o mundo – o jornal Le Monde de 22/07/2021 fala da quarta onda na França –, o início deste verão também trouxe acontecimentos preocupantes em relação ao clima mundial. O sudoeste do Canadá e o noroeste dos Estados Unidos estão atravessando uma de suas mais graves ondas de calor em todos os tempos, com temperaturas ultrapassando os 49 graus Celsius em algumas regiões. Em Las Vegas, a temperatura ultrapassou os 47 graus Celsius, a mais alta desde 1942. No Vale da Morte, situado a cerca de 200 km de Las Vegas, a temperatura atingiu os 54 graus em 10/7/2021; a mais alta registrada no planeta desde 1913. Dados indicam que os Estados Unidos tiveram neste ano o mês de junho mais quente de sua história, com 1,2 graus acima da média de 1991 a 2020. A onda de calor também se estende por outras regiões do planeta: em Moscou, a temperatura ambiente atingiu seu valor mais alto nos últimos 120 anos chegando a 34,7 graus; 8 a 10 graus além do normal.

As altas temperaturas, associadas ao clima seco em certas regiões, também estão provocando grandes incêndios. Nos Estados Unidos, os estados da Califórnia, Nevada, Idaho e Washington registram grandes incêndios florestais, provocando a evacuação de populações e problemas de abastecimento. No outro lado do mundo, o fogo também vêm afetando extensas regiões da floresta siberiana, na Rússia, onde até início de julho foi destruída uma área de 800 mil hectares, na região de Yakutia. O combate ao fogo, que polui todo o ar da região, mobilizou milhares de bombeiros e soldados. Observadores assinalam que os incêndios neste território vêm sendo cada vez mais destruidores, devido ao aumento da temperatura média, durante os verões. Uma perigosa consequência dos incêndios florestais em regiões setentrionais é o degelo do permafrost, solos permanentemente congelados, que aquecidos liberam grandes volumes de gás metano (CH4), dez vezes mais prejudiciais à atmosfera do que o dióxido de carbono (CO²).

O calor excessivo já provocou centenas de mortes nestas regiões, principalmente de idosos, cujo organismo tem menos resistência. No verão de 2003, quando a Europa também foi afetada por altas temperaturas, morreram cerca de 13 mil pessoas, somente na Espanha, e cerca de 70 mil em todo o continente. Segundo a revista Nature Climate Change, desde os anos 1980 vêm aumentando em todo o mundo as mortes causadas por ondas de calor. A alta umidade da atmosfera associada à elevada temperatura do ambiente, fazem com que o suor não evapore e se acumule no corpo, causando o estresse térmico, que pode ser fatal para organismos mais fracos, como os dos idosos.

Ao mesmo tempo em que ocorrem altas temperaturas e clima seco propenso aos incêndios em partes do planeta, outras regiões estão sendo afetadas por fortíssimas chuvas. Volumes de precipitações esperados para todo um mês, chegam a cair em um dia ou algumas horas, como ocorreu recentemente na Europa Central. A Alemanha, nas regiões da Renânia do Norte, Vestfália e Renânia-Palatinado, assim como os territórios situados no leste da Bélgica, foram as regiões mais afetadas, com grandes perdas materiais, milhares de desabrigados e 215 mortos. O governo alemão considerou o incidente o maior desastre climático registrado naquele país desde 1962. As chuvas fortes e o transbordamento de rios também afetaram regiões da Holanda, França e Luxemburgo.

Na Índia ocorre um derretimento anormal das geleiras no Himalaia e aumentam as inundações provocadas pelo período das monções, que se inicia agora no começo do verão no hemisfério Norte. No estado de Maharashtra, o volume anormal das chuvas provocou centenas de mortes e destruiu milhares de residências. Os efeitos do ciclo das monções foram intensificados pelo fenômeno das mudanças climáticas, segundo estudo divulgado pelo Instituto de Pesquisas sobre o Impacto Climático (PIK) da cidade de Potsdam, Alemanha. Ainda em julho de 2021, excesso de chuvas também causaram 16 mortes e deixaram 200 mil desabrigados na província de Henan, na China.

No Brasil, avança o período das secas, que deverá deixar as regiões Sudeste e Centro-Oeste em situação difícil, com os reservatórios baixos, causando problemas para o abastecimento de água e geração de energia elétrica. Segundo os especialistas, trata-se da maior crise hídrica no país registrada nos últimos 100 anos. Enquanto estas regiões do país passam por grande estiagem, o rio Negro, na bacia amazônica, sofre sua a maior cheia registrada no último século.

Com a entrada no inverno, as regiões Sul e Sudeste, além da estiagem, registraram também as mais baixas temperaturas dos invernos nos anos recentes. O frio intenso fez com que a temperatura caísse abaixo de 1º C (-1,8ºC) na Zona Sul da cidade São Paulo. Em toda a região Sul e Sudeste as temperaturas caíram abaixo do normal, “e em alguns momentos chegam a sinalizar uma onda polar de excepcional força com magnitude raramente vista na história recente”, segundo o site de informações climáticas Metsul, em matéria publicada em 23/07/2021. (1)

Estudos e dados apontam que todos estes eventos têm alguma ligação. Se o fenômeno climático La Niña, exerce certa influência no clima da América do Sul durante esta estação do ano, pesa mais o fato de que as mudanças climáticas fazem-se cada vez mais presentes em todo o planeta. Em entrevista à imprensa inglesa, a baronesa de Worthington, cientista e principal autora da Lei das Mudanças Climáticas do Reino Unido, afirmou ao repórter da BBC que “cientistas não estão mais preocupados; eles estão apavorados. Eles estão preocupados que pode não haver um ‘pouso seguro’ do clima. Estamos trabalhando na ideia de orçamentos seguros de carbono (quantidade de carbono que podermos colocar na atmosfera sem prejudicar gravemente o clima). Mas, e se não houver um nível seguro de carbono?” (2).

Assim como a cientista inglesa, alguns outros pesquisadores consideram a possibilidade de que o sistema climático mundial possa ter cruzado um limite perigoso, o que os cientistas chamam de point of no retun in climate change (ponto de não retorno nas mudanças climáticas). Trata-se da, até agora, hipotética situação, quando medidas de redução de emissões de poluentes não têm mais efeito a curto e médio prazos, na redução dos efeitos da mudança do clima (frio e calor intensos, secas, furacões, chuvas torrenciais, etc.). Nesta situação o sistema climático da Terra entra em desequilíbrio definitivo, e pode levar décadas ou séculos para voltar à uma situação estável.   

Na Alemanha, o presidente Frank-Walter Steinmeier foi enfático ao culpar as mudanças climáticas pelas chuvas torrenciais que afetaram a Alemanha. O presidente pediu a todos um firme comprometimento na luta contra as mudanças do clima, afirmando ser esta a única maneira de frear fenômenos meteorológicos extremos. A primeira-ministra do país, Angela Merkel, também atribuiu a origem dos recentes desastres climáticos em seu país ao mesmo fenômeno.

Todavia, os indícios de que algo extraordinário está ocorrendo no clima já se apresentaram. Segundo um estudo realizado pela seguradora Munich Re, os prejuízos resultantes de catástrofes naturais totalizaram US$ 150 bilhões em 2019, em todo o planeta. A destruição e as mortes relacionadas a tais eventos só tendem a aumentar ao longo dos próximos anos, segundo previsões.

Existem três grandes temas, que estão na pauta de governos, cientistas e grandes empresas: as pandemias provocadas por microrganismos; o aumento da pobreza e o crescimento das diferenças entre ricos e pobres; e as mudanças climáticas. No entanto, dentre estes três grandes desafios que a humanidade terá que enfrentar ao longo das próximas décadas, o que mais preocupa – por exigir grandes e constantes investimentos, reordenação da economia e envolvimento de governos e cidadãos – é o da crise climática. A situação é séria, segundo os cientistas climáticos, apesar da pouca importância que ainda muitos governos, inclusive o do Brasil, estão dando ao tema. Escreve o jornalista David Wallace-Wells, em seu livro sobre o tema, A Terra inabitável:

Já agora, com o mundo apenas 1ºC mais quente, os incêndios e as vagas de calor e os furacões já inundaram as notícias, e prometem multiplicar-se em breve através da nossa história e vida interior, fazendo com que aquilo que hoje pode parecer uma cultura impregnada de intuições de juízo final se assemelhe a um período relativamente ingênuo.” (Wallace-Wells, pág. 186-187) (3)


Referências:

(1) Onda de frio pode ser uma das mais intensas deste século

<https://metsul.com/onda-de-frio-pode-ser-uma-das-mais-intensas-neste-seculo-no-brasil/>

Acesso em 25/7/2021

(2) Por que calor no hemisfério Norte indica algo pior que está por vir?

<https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/07/10/por-que-calor-recorde-no-hemisferio-norte-indica-que-algo-pior-esta-por-vir.ghtml>

(3) Wallace-Wells, David. A Terra inabitável. Lisboa: Editora Lua de Papel, 2019, 365 p.


(Imagens: pinturas de Armand Guillaumin)

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