A invasão da Ucrânia pela Rússia

sábado, 5 de março de 2022

 "Por outro lado, foi justamente na escuridão do terrível século X, que começaram a aparecer os primeiros leves sinais de um renascer."     Franco Cardini   -   Dois ensaios sobre o espírito da Europa


Em 24 de fevereiro de 2022 o exército russo invadiu a Ucrânia. Há diversas explicações para a origem do conflito. Todas elas, no entanto, remetem primordialmente à rivalidade entre o imperialismo norte-americano, representado pela União Europeia e a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) de um lado, e o imperialismo russo de outro. Ambos, Estados Unidos e Rússia – apesar do término da Guerra Fria com a derrocada da União Soviética e seus satélites em 1991 –, ainda mantêm pretensões de exercerem influência político-militar em certas regiões estratégicas. Os Estados Unidos, mais do que a Rússia, ainda vêm mantendo bases militares e plataformas de lançamento de mísseis em diversos países. A Rússia, que se recuperou do caos econômico que se seguiu à dissolução do império soviético, retomou sua tática de também marcar presença global ao longo dos últimos quinze anos, notadamente desde que Vladimir Putin passou a ocupar cargos de mando no governo.

Neste confronto a Ucrânia se tornou um joguete, nem sempre inocente, dos interesses de ambos os lados do conflito; a Europa, escorada pelos Estados Unidos, e a Rússia. Um peão no tabuleiro do xadrez mundial de disputa de poder das grandes (e menores) potências. Como quase sempre ocorre em tais embates, não há nações e governos inocentes. Todos a seu modo tentam tirar vantagens da situação. Não entraremos em detalhes sobre as diversas forças que desempenham um papel neste conflito, já que não é um tema que dominamos. Fica claro, no entanto que por trás dos discursos de governos – americano, europeus, russo e até ucraniano – o interesse primordial é o econômico; dos grandes investidores, dos oligarcas, das empresas transnacionais, bancos, e todo tipo de negócio mais ou menos escuso. As vítimas, como sempre ocorreu ao longo da história da humanidade, são as pessoas comuns: o cidadão que tem sua casa destruída e parentes mortos, que é convocado para lutar, e quem sofre com todas as consequências econômicas do conflito, precisando emigrar e deixar o lar de seus ancestrais. Os ricos, seja de que lado for, são pouco afetados, ou arranjam maneiras de fugir da situação sem perderem tudo.

Assim, mais uma vez a história se repete. Na Ucrânia já são quase um milhão de pessoas, até a data que escrevemos este texto, que tiveram que abandonar suas casas, seus bens, seus empregos, para fugirem para outros países. Milhares de famílias se desfizeram e não sabem quando poderão reunir-se novamente – se é que isso voltará a ocorrer. A infraestrutura do país está sendo gradualmente destruída pelo invasor e levará anos para que estradas, pontes, prédios e instalações públicas possam ser reconstruídos e para que atividades agrícolas, industriais e comerciais possam ser plenamente retomadas.

O povo russo, por sua vez, não oferece apoio unânime à investida de Putin e seus adeptos sobre o país vizinho. Milhares de cidadãos em Moscou, São Petersburgo e outras cidades russas, foram detidos pela polícia por se manifestarem contra a guerra. Empresários russos, até agora aliados da política do líder russo, começam a falar contra o governo, por estarem sendo prejudicados em seus negócios, devido ao boicote econômico imposto pelas empresas e bancos de todo o mundo.

A sociedade russa está sendo punida economicamente pelas ações de seu governo; situação com a qual Putin e seu governo provavelmente não contavam – pelo menos neste grau de intensidade. Empresas estrangeiras, muitas delas transnacionais de diversas áreas, estão suspendendo suas atividades no país e retirando investimentos. É o caso, por exemplo, de empresas do setor de petróleo e gás, como a britânica BP, a anglo-holandesa Shell, a francesa Total, a americana Exxon Mobil; de montadoras de automóveis; e de indústrias do setor de alimentos e bebidas, como a Mondelez, a Nestlé e a Carlsberg, entre muitas outras. Grande parte dos bancos russos foi suspensa do sistema de comunicação interbancária SWIFT, que permite transferências interbancárias internacionais. Dos cerca de 600 bilhões de dólares de reservas acumuladas pelo governo russo nos últimos anos, depositados em bancos no exterior no Japão, na Alemanha, na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra, Suíça e outros, aproximadamente 400 bilhões de dólares foram congelados por estes países. Enquanto perdurar a situação de guerra, a Rússia não terá acesso a estes recursos. Com isso, o rublo russo já sofreu uma desvalorização de mais de 30% e os juros bancários já aumentaram em 20%, desde o começo da guerra. Trabalhadores russos começam a ser dispensados de seus empregos e a atividade econômica começa a diminuir.

O mundo também sofrerá os impactos deste conflito. Em 1/3/2022 o preço do barril de petróleo já havia ultrapassado os 100 dólares, seu valor mais alto em sete anos. Com isso, as economias de todos os países serão afetadas com maior ou menor intensidade, já que toda a atividade econômica mundial – agricultura, indústria, transporte – é altamente dependente deste insumo. No setor da alimentação, já se prevê de imediato um aumento no preço dos óleos vegetais e do trigo – a Ucrânia é o maior exportador mundial de óleo de girassol e grande fornecedor de trigo. A Turquia, por exemplo, importa 70% do trigo que consome da Rússia e da Ucrânia. Com baixa oferta destes produtos, deverá aumentar a demanda por outros tipos de grãos e óleos em todo o mundo. Analistas também preveem uma queda na oferta de metais como o alumínio, o níquel, paládio, platina, titânio, entre outros, dos quais a Rússia e a Ucrânia são grandes fornecedores. Em termos gerais, espera-se um aumento nos preços do petróleo, do gás, de matérias-primas químicas, metálicas e produtos agrícolas, o que deverá afetar mais ainda a economia mundial como um todo, gerando inflação.

Algumas regiões e países serão especialmente afetados pela situação. A Europa, particularmente a Alemanha, depende em grande parte do suprimento de gás que vem da Rússia para geração de energia e aquecimento. Porta-vozes do governo alemão disseram que, provavelmente, terão que adiar a desativação das últimas usinas nucleares da Alemanha, inicialmente prevista para 2022. Paralelamente, aumentarão os investimentos em energias renováveis (energia eólica, solar e de biomassa) e eficiência energética.

Segundo um estudo recentemente publicado pelo banco holandês Rabobank, os impactos do conflito na economia brasileira são limitados, a depender da duração do conflito. Já outros analistas informam que a economia brasileira também será afetada pela inflação mundial, que atingirá a maioria dos países. A preocupação com o fornecimento de fertilizantes, dos quais a Rússia é o maior supridor do Brasil, não é problema imediato, segundo a ministra da Agricultura Teresa Cristina. O estoque disponível ainda é suficiente para abastecer a agricultura nacional durante 2022 e, paralelamente, o ministério já iniciou contatos com outros países fabricantes do insumo. Já a Petrobrás, por sua vez, relatou que há uma defasagem de 24% no preço da gasolina e de 27% no do óleo diesel, levando-se em conta os preços ascendentes do barril de petróleo no mercado internacional por causa da guerra. A empresa ainda não se manifestou quanto a um eventual aumento destes combustíveis.

A invasão da Ucrânia pela Rússia é o mais recente evento que afeta a economia mundial neste século. Depois da crise dos bancos em 2008, da crise da Covid-19 em 2020/2021, o ano de 2022 começa com um conflito armado, cujas consequências até o momento são imprevisíveis. O que o mundo espera é que este conflito se resolva o mais rápido possível, de modo a causar o menor impacto possível em termos de vidas e danos à economia local e mundial.

Já a solução para o (longo) conflito entre os Estados Unidos e a Rússia é uma possibilidade remota, e dependerá de uma nova configuração no jogo das forças econômicas, políticas e militares no planeta. O evento contribuiu, no entanto, para uma aproximação da Europa com os Estados Unidos, que estavam relativamente afastados durante o governo Trump. Ao mesmo tempo houve uma aproximação maior ainda entre o governo russo e o governo chinês. 

Qual será o papel do Brasil nesta nova disposição de interesses e forças? Continuaremos desempenhando um papel secundário? A história continua. E o Brasil, continuará sendo simples figurante?


(Imagens: pinturas de Ad Reinhardt)

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