"Daí segue que Deus não estabelece nenhuma lei para os homens a fim de recompensá-los quando obedecem a ela. Ou para dizer mais claramente, as leis de Deus não são de tal natureza que seja possível transgredi-las. Pois as regras que Deus estabeleceu na Natureza, de acordo com as quais todas as coisas devêm e duram - se quisermos chamá-las de leis - são tais que jamais podem ser transgredidas: por exemplo, que o mais fraco deve ceder ante o mais forte, que nenhuma causa pode produzir mais do que contêm em si mesma, e outras similares, que são de tal jaez que jamais mudam, jamais começam, mas tudo está ajustado e ordenado sob elas." - Baruch de Espinosa - Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar
As comunidades caiçaras, ainda existentes no litoral dos
estados de São Paulo e Rio de Janeiro, são classificadas pela antropologia como
uma interação da cultura indígena e daquela dos primeiros colonizadores
portugueses da costa do Brasil. A cultura caiçara tem certas características –
cada vez mais em processo de desaparecimento – que a distingue de outras em
vários aspectos:
1) Os caiçaras são populações originais estabelecidas no
litoral de São Paulo, principalmente entre o oceano e os contrafortes da Serra
do Mar. Vivem, portanto, em um ecossistema onde convivem vários tipos de
biomas: a vegetação de restinga, o mangue, as dunas e a floresta tropical
úmida. Estes biomas, suas localizações, características de solo, microclima,
fauna e flora, já são por demais conhecidos e foram estudados por diversos
especialistas em várias ocasiões.
2) Quanto aos aspectos culturais, os caiçaras desenvolveram
uma cultura com uma tecnologia única, utilizando-se de produtos naturais da
floresta, do mangue e do mar. Da floresta, por exemplo, extraem a madeira para
fazer canoas típicas, de diversos tamanhos; a maioria delas destinadas à
navegação em baías com mar calmo e sem quebração, característico da parte norte
do litoral de São Paulo e sul do estado do Rio de Janeiro. Da floresta também
se extraia as folhas de palmeiras, para cobrir as habitações (quando as telhas
ainda eram de difícil acesso). Das encostas da montanha tiravam o barro e das
árvores cortavam os galhos mais finos, utilizado na construção das paredes de
“pau a pique” (madeira trançada com cipós e coberta por barro) de suas casas.
Igualmente da mata extraiam o palmito, que servia de alimentação e como produto
de relativo valor, vendido nas cidades vizinhas.
3) Para alimentação,
no passado, quando havia pouco contato com os centros urbanos, os caiçaras
faziam um “roçado” (plantação), de milho, mandioca, batata-doce e uma ou outra
verdura, geralmente nos fundos das casas, em solos arenosos, mas contendo
bastante húmus. As árvores frutíferas disponíveis e plantadas eram as pitangas
(característica da Mata Atlântica), o abacate, o mamão, a banana, o caju, a
goiaba, a jabuticaba (também característica da região). Do mar os caiçaras
extraiam toda a sorte de alimentos, desde peixes, mariscos, ostras, crustáceos,
até tartarugas e outras espécies atualmente sob proteção.
4) Os caiçaras
baseavam quase toda a sua alimentação e a confecção de uma série de utilidades
para a vida diária, em materiais extraídos da natureza do entorno. No entanto,
em suas práticas culturais não sobrecarregavam o meio ambiente. Ou seja, não
faziam pesca intensiva para vender os excedentes nos mercados das regiões, por
motivos práticos e culturais. Era difícil, por exemplo, manter o camarão mais
de algumas horas em conserva, já que não havia sistemas de refrigeração. Além
disso, o transporte deste crustáceo em grandes quantidades seria inviável, já
que não havia barcos a motor de rápido deslocamento. Além disso, culturalmente,
os caiçaras não tinham uma mentalidade mercantilista (no sentido técnico, não
pejorativo) e não saberiam o que comprar com o excedente de dinheiro, já que
suas necessidades de consumo – de acordo com sua organização cultural – estavam
plenamente atendidas.
5) Desta forma, dados
estes principais fatores, a cultura caiçara tinha pouco impacto no meio
ambiente onde existia. Cabe assinalar que era uma cultura “estática”, que – a
não ser por fatores externos – pouco se desenvolvia tecnologicamente. E assim
tinha baixo impacto nos ecossistemas nos quais habitava e dos quais se
utilizava. Interessante assinalar que os caiçaras desenvolveram uma maneira de
conviver muito bem com os biomas que habitava. Se considerarmos que os
primeiros caiçaras se “formaram” logo no início da colonização do Brasil,
constatamos que esta cultura conviveu praticamente 450 anos com o meio ambiente
(até os anos 50 quando a “civilização” começou a penetrar nas regiões habitadas
pelos caiçaras), sem causar grandes danos, de uma maneira relativamente
sustentável.
Seria o caso de se
perguntar como a cultura caiçara conseguiu sobreviver por tanto tempo,
convivendo com o meio ambiente e quando/como ocorreu a decadência de sua cultura
original. As perguntas deveriam esclarecer os seguintes aspectos:
- Por que os recursos naturais não foram exauridos pela
cultura caiçara?
- O isolamento físico e cultural contribuiu para manter a
cultura caiçara?
- Como o “desenvolvimento”, ou seja, a chegada de
veranistas, comércio, estradas, pousadas, benfeitorias, etc., influenciaram a
cultura caiçara e destruíram sua convivência equilibrada com a natureza ?
- Com se deu, provavelmente, a destruição de sua cultura e a
mudança de sua relação com o ecossistema?
(Imagens: fotografias de Dorothea Lange)
0 comments:
Postar um comentário