“Qual
será nessas novas condições a obra por excelência dos homens de boa vontade?
Substituir as alucinações por observações precisas, substituir as ilusões do
paraíso que prometiam aos famélicos pelas realidades de uma vida de justiça
social, de bem-estar, de trabalho harmonioso; encontrar para os fiéis da
religião humanitária uma felicidade mais substancial e mais moral do que aquela
com a qual os cristãos contentam-se atualmente.
Aquilo
de que estes necessitavam era não ter o penoso trabalho de pensar por si mesmos
e buscar em sua própria consciência o móbile de suas ações; não tendo mais
fetiche visível como nossos ancestrais selvagens, esforçam-se para possuir um
fetiche secreto que trate de suas feridas de amor-próprio, que os console de
suas tristezas, que lhes torne as horas de enfermidade menos longas e assegure-lhes
inclusive uma vida imortal, isenta de toda preocupação. Mas tudo isso para eles
pessoalmente. Sua religião não leva em consideração os infelizes que continuam
perigosamente a dura batalha da vida; assim como os espectadores da tempestade
dos quais fala Lucrécio, é-lhes doce ver, da praia, os gestos dos náufragos
lutando contra as ondas. Eles podem reler nos Evangelhos essa vil parábola de
Lázaro, “deitado no seio de Abraão”, e recusando-se a molhar a ponta de seu
dedo na água para refrescar a língua dos maus ricos (Lucas XVI).
Nosso
ideal de felicidade não é em absoluto esse egoísmo cristão do homem que se
salva vendo perecer seu semelhante e que recusa uma gota de água a seu inimigo.
Nós, anarquistas, que trabalhamos pela emancipação completa do indivíduo,
colaboramos por isso mesmo para a liberdade de todos os outros, inclusive
aquela do mau rico, quando o tivermos aliviado de suas riquezas, e tivermos lhe
assegurado o benefício solidário de cada um de nossos esforços.
Nossa
vitória pessoal não se concebe de modo algum sem que ela se torne, ao mesmo
tempo, uma vitória coletiva; nossa busca da felicidade não pode imaginar-se de
outro modo senão na felicidade de todos: a sociedade anarquista não é um corpo
de privilegiados, mas uma comunidade de iguais, e será para todos uma
felicidade muito grande, da qual não temos hoje nenhuma ideia, viver num mundo
em que não veremos crianças surradas por suas mães recitando o catecismo, sem
famélicos pedindo uma moeda, sem prostitutas entregando-se para se alimentar,
sem homens válidos fazendo-se soldados ou mesmo policiais, porque não têm
outros meios para ganhar suas vidas.
Reconciliados
porque os interesses de dinheiro, de casta, de posição, não farão deles
inimigos natos uns dos outros, os homens poderão estudar juntos, tomar parte,
segundo suas afinidades pessoais, das obras coletivas da transformação
planetária, da redação do grande livro dos conhecimentos humanos, em resumo, viver
uma vida livre, cada vez mais ampla, poderosamente consciente e fraternal,
escapando assim das alucinações, da religiosidade e da Igreja.” (Reclus, págs.
44-46)
Elisée Reclus, Anarquia pela educação
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