“De
repente, em fins de outubro — 15 mil mortes depois —, a Espanhola pareceu
amainar. Os infectados se recuperavam, os doentes pararam de morrer. Aos poucos,
as portas das casas começaram a se abrir. A cidade voltava à vida. Os caixeiros
reapareceram atrás dos balcões. O comércio retomou seu movimento e o dinheiro,
inútil diante da morte, recuperou seu antigo valor. Os teatros reabriram e
tinham agora filas nas portas. Os navios voltaram a parar no Rio. Das janelas,
ouviam-se tímidos sons de pianos. Algumas moças saíram às ruas. Assim como
surgira, a gripe fora embora. Não por alguma poção ou magia, mas porque as
pessoas haviam ficado imunes. E, com a Espanhola, foi-se também a Guerra. No
dia 11 de novembro, dentro de um vagão-restaurante à margem do rio Oise,
afluente do Sena, os aliados e a Alemanha assinaram o Armistício. A notícia
chegou até nós pelo cabo submarino. O importante é que o Brasil, modestamente,
estava entre os vitoriosos. Não tendo a quem vender café durante o conflito,
diversificara seu setor agrícola. E, como não tinha de quem comprar manufaturas,
começara a produzi-las aqui mesmo, com o que, em poucos anos, saltou de um país
de enxadas e pés descalços para uma incipiente sociedade de máquinas e macacões.
Subitamente,
fabricávamos turbinas, elevadores, vagões ferroviários, tamancos, vasos
sanitários, marmelada em lata, balanças, gravatas e cavaquinhos. Para um país
em que, até então, quase tudo vinha da Inglaterra, de Portugal ou da França,
aquilo era uma revolução. Chaminés surgiram no horizonte e nasceu um embrião de
classe operária, formada, em boa parte, por imigrantes recém-chegados. E, de
uma nova massa de funcionários públicos, brotou uma classe média. Poucas
semanas antes, estávamos a milímetros da morte. Agora já eram as vésperas de
1919. Quem sobreviveu não perderia por nada aquele Carnaval.” (Castro, pgs. 14
e 15)
Ruy Castro (1948-), jornalista, biógrafo e escritor brasileiro em O Carnaval da guerra e da gripe
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