"Entre os desejos e as realizações destes transcorre toda a vida humana." - Arthur Schopenhauer - O mundo como vontade e representação
(Texto publicado originalmente no livro "Vozes Impressas", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras - Volume VII, 2016)
"Há
assim uma memória involuntária que é total e simultânea. Para recuperar o que
ela dá, basta ter passado, sentido a vida; basta ter, como dizia Machado,
'padecido no tempo.'"
Pedro Nava, Baú de Ossos
"Quanto
a mim não conheço prazer superior ao de encontrar-me ou reencontrar-me no meio
de onde provêm a minha essência animal, no convívio do mar, viagem no mar,
banho de mar, vista de mar. "
Gilberto Amado, História de minha infância
O começo
Conheço Peruíbe desde há muito tempo, de quando ainda era subdistrito
de Itanhaém e uma aprazível e pacata aldeia de pescadores, só acessível
percorrendo-se a praia, ou em demorada viagem de trem. Trouxeram-me para cá meu
avós maternos, que em 1958 construíram uma
das primeiras casas de veraneio na rua dos Pescadores. A cidade era ainda encantadoramente
pequena. Limitava-se a alguns quarteirões em torno da praça da Matriz e um reduzido
número de casas do outro lado da estação do trem da Sorocabana.
A casa foi para mim o meu segundo lar, onde passei muitos períodos
de férias. Nessa morada com terraços abertos e amplo terreno, tomado por velhos
pés de abacate, pitangueiras, laranjeiras, limoeiros, goiabeiras e até um
cajueiro, vivi parte da infância e da juventude. A residência e o quintal repleto
de árvores, pássaros; as ruas de areia e os arredores da cidade; o mar e o rio;
todos foram parte de meus primeiros contatos com a natureza e com o mundo.
A poetisa Adélia Prado escreveu uma vez que "tudo que a
memória amou já ficou eterno". Para mim, no entanto, nossas memórias e impressões, aquilo que nos
forma e nos torna únicos, morre conosco. Assim, antes que estas poucas recordações
desapareçam junto comigo, tento registrar algo daquele período inaugural. Parte
do que recordo destes tempos vividos em Peruíbe; lembranças que me acompanham até
hoje, mais de meio século depois. Os episódios que relato são mínimos e
desimportantes. Pequenos fatos sobre a cidade, que a maioria desconhece. Minhas
lembranças. Mas seu eu não registrá-las, quem o fará por mim?
A Padre Anchieta, a curva
do 77 e os postes do telégrafo
Esta longa avenida que corta a cidade, fazia a ligação com a
estrada construída entre Itanhaém e Peruíbe, em meados dos anos 1960. A estrada
demorou para ser concluída, o que fez com que por muitos anos também a Padre
Anchieta permanecesse apenas coberta de cascalho, sem asfaltamento, inclusive em
seu curso dentro da cidade. Todo tráfego que vinha de Itanhaém e se dirigia
para a rodovia Padre Manoel da Nóbrega - à época chamada Estrada da Banana -,
passava necessariamente por dentro de Peruíbe, através da Padre Anchieta. Dali
os veículos seguiam pela São João e 24 de dezembro até a rua da Estação, que já
ficava no fim da cidade - naquela época existiam poucas casas no recém
inaugurado Jardim Veneza.
A rodovia entre Peruíbe e Itanhaém percorria um trecho
praticamente desabitado à época, cortando a mata que ainda cobria grande parte
do região. Quando criança, em noites sem luar, dirigindo meu pai desligava os
faróis do carro. Ficávamos alguns minutos fascinados, admirando o céu estrelado,
brilhando por entre a floresta escura.
A avenida Padre Anchieta terminava onde hoje é a rotatória e
começa a avenida João Abel, no bairro dos Prados. Aquele ponto foi por muito
tempo chamado de "curva do 77", já que segundo o antigo Departamento de Estradas de
Rodagem, percorriam-se 77 quilômetros dali até Santos. Ainda no início dos anos
1970, havia ali apenas uma pequena placa, indicando a direção a ser seguida por
quem saía de Peruíbe. O desvio era de 90 graus, sem iluminação e cercado por um
alto capinzal. Muitos veículos, embalados, não conseguiam fazer a curva e
capotavam.
Mas, dos males o menor. Antes da abertura da estrada entre as
duas cidades, os automóveis tinham que fazer o percurso pela praia. Para quem fosse
fazer a travessia, era necessária a consulta da tábua das marés, nos jornais. Os
carros precisavam passar rente ao mar, evitando os barrancos dos riachos. No
Piaçaguera, em frente à ilhota onde hoje é o bairro do Gaivota, o motorista
tinha que utilizar uma pequena ponte para atravessar o córrego sempre
caudaloso.
Na outra ponta, em direção à cidade e ao rio Negro, a Padre
Anchieta era um caminho de areia, que terminava quase na beira do rio, no mesmo
local onde hoje fica a sede da Polícia Florestal. O caminho era ladeado por poucas
casas, que iam rareando à medida que este se afastava do centro. Já perto do
rio, a areia da rua era mais grossa, de cor amarelada, diferente de outros
pontos da cidade (nunca soube por que razão). À beira do caminho, ainda estavam
fincados antigos postes enferrujados, restos do telégrafo do século XIX. A sequência
das colunas degradadas se estendia pelo outro lado do rio Negro, adentrava a
mata do morro do Itatins, em direção à Prainha e ao Guaraú, para dali seguir
para o sul.
A praçinha, a igreja
matriz e os alemães
A praça da igreja matriz, a praça monsenhor Lino dos Passos,
foi remodelada por três ou quatro vezes ao longo dos últimos 50 anos. Nunca fizeram
dela uma praça verdadeira, com árvores frondosas para fazer sombra. Apesar da
grande quantidade de pés de joão bolão que existiam na região central de
Peruíbe no passado, na praça nunca foi plantada uma única árvore desta espécie,
típica da nossa região. Hoje o logradouro lembra um teatro romano; tem pouca
área verde e está cercado por estátuas religiosas.
Até o início dos anos 1970, nas noites quentes de verão,
quando a praça se transformava em local de reunião e encontro, surgiam
frequentemente gigantescas baratas d'água, causando alvoroço. Com o passar dos
anos, no entanto, as construções avançaram sobre as áreas verdes e os córregos
limpos, a céu aberto, foram cimentados. As baratas d'água, ressentidas, não
deram mais as caras na pracinha.
Li em algum lugar que o pintor itanhaense Emygdio Emiliano
de Souza pintou um quadro retratando a praça matriz de Peruíbe. A obra, que
data de 1893, é de interesse histórico mas é pouco conhecida e vista. Uma pena
para nossa cidade, que tão poucas imagens tem de seu passado.
Pelo menos até o final dos anos 1960, a igreja matriz não
era muito maior do que uma capela. Durante a década seguinte o templo foi gradualmente
ampliado, chegando às dimensões que tem hoje. Ao lado da igreja, onde agora se
encontra o centro de compras havia um terreno vazio, em parte um areão, que na
temporada era ocupado pelos parques de diversão itinerantes. No mesmo lugar, no
início dos anos 1960, havia uma barraca de sapê, onde os índios da reserva
vendiam seu artesanato.
Durante a infância conheci muitos imigrantes alemães que moravam
em Peruíbe, amigos dos meus pais. Na rua Tucuruví vivia o Sr. Senz, carpinteiro
aposentado, morador da cidade desde os anos 1950. Mais à frente, seguindo a rua
em direção à Almirante Barroso, perto da velha mangueira (que está lá até hoje),
morava o Sr. Otto, que tinha sido dono de uma pequena fábrica em São Paulo. O
casal Wagner, também velhos moradores, ficavam na atual rua Ministro Genésio de
Moura (perto da antiga delegacia, instalada no prédio onde hoje é a biblioteca
municipal). Na rua Santos Dumont, quase esquina com a José Veneza, estava o Otto
cozinheiro, antigo tripulante do navio alemão Windhuck, aprisionado pelo Brasil
durante a 2ª Guerra. Lembro vagamente do casal Heide, que perto da praia construiu
uma casa moderna para a época, quando tudo era um imenso areal e nem rua havia (hoje
a rua Erasmo Pinheiro Ribas). No início da Estrada do Guaraú, esquina com a
hoje rua Dalmar da Costa, ficava o bar do casal Müller, alemães que moravam em
Peruíbe desde os anos 1950. O local era parada obrigatória para quem voltava da
Prainha ou Guaraú em dias de muito calor.
O "Opa" Weiss (Opa, avô em alemão) foi um dos
membros mais conhecidos da colônia alemã. Aposentado e pescador amador, Opa Weiss
foi um dos primeiros paulistanos a ter um barco com motor de popa em Peruíbe.
Nos últimos anos de vida dedicou-se à pintura, copiando quadros de pintores famosos.
Antes de morrer, pintou e doou à igreja a Via Crucis, que ainda hoje pode ser
vista no templo.
Entre os anos de 1950 a 1980 havia em Peruíbe uma pequena
colônia de alemães e descendentes, que se conhecia e frequentava. Destes, ainda
guardo na lembrança os nomes do "seu" Augusto e "dona"
Ivone, Sr. Paulo Becker; as famílias Stender, Nusch, von Zengen, Kohn, Motz,
Kunde, Weiss e Rösner. Quase todos já falecidos, viveram e foram felizes
durante muitos anos em Peruíbe.
Olha o trem chegando!
Quem não viajou para Peruíbe pelos trens da Sorocabana e da
FEPASA não sabe o que é bom. Bom, mas demorado. Viajava-se seis a sete horas da
estação do Socorro, na Zona Sul de São Paulo, até a estação de Peruíbe. Antes
de descer a serra, a composição percorria parte dos bairros da região sul de
São Paulo, que à época eram pouco povoados. Às vezes entrava no trem uma família
de indígenas; subiam em uma estação e desciam em outra, no meio da neblina da
serra.
O trem fazia um ruído característico, cadenciado: "Tactac-tactac!
Tactac-tactac! E isso intercalado por um zumbido, cuja intensidade aumentava e
diminuía regularmente - suponho que fosse o atrito das rodas nos trilhos, não
sei. As paradas nas estações eram constantes. Antes de retomar a viagem, o fiscal
verificava se todos haviam embarcado, apitava, para logo depois o maquinista
tocar a buzina e colocar o trem em marcha. E lá íamos nós, até a próxima
estação, numa velocidade média de 40 a 50 quilômetros por hora.
Viajar de trem era uma festa, principalmente para as
crianças e os jovens. Na volta para São Paulo, no final das férias, os
passageiros chegavam à estação a pé, alguns de carro e muitos nas charretes,
que há 50 ou 60 anos faziam o trajeto entre o centro e a estação. Uma multidão
ocupava os vagões. Durante a viagem, a composição passava por muitas estações até
que chegasse em Samaritá, em São Vicente. Lá engatava-se uma locomotiva mais
forte, que puxava o pesado comboio de passageiros serra acima.
Os corredores ficavam apinhados de malas, bolsas, sacolas,
pacotes, caixas e gente, muita gente! Conversando, gritando, cantando, olhando
pensativos pela janela. Além da bagagem, trazíamos na memória os dias de sol na
praia, as pescarias, as caminhadas pelo morro e pelas ruas de areia, o descanso
na rede, o céu estrelado, o canto dos pássaros, o cricrilar dos grilos, as fortes
trovoadas de madrugada...
(Imagens: pinturas de Wayne Thiebaud)
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