"A realidade é difícil de conhecer e a maioria está fadada a viver para sempre no domínio das sombras." - Charles Landesman - Ceticismo
(Texto publicado originalmente na no livro "Vozes Impressas", antologia de textos literários da Academia Peruibense de Letras - Volume VII, 2016)
A filosofia muitas vezes é vista como assunto de difícil entendimento, que pouco tem a ver com a vida concreta. Quando a maneira de pensar de uma pessoas nos parece complicada ou distante da realidade, dizemos que "está filosofando". Dedicar-se ao estudo e à prática da filosofia é, para muitos, uma atividade que não traz resultado prático, já que, como se diz, "filósofos vivem nas nuvens" e a ocupação "não enche a barriga". Por trás deste desdém com que se encara o pensamento teórico em geral, está também uma reação à maneira como a filosofia frequentemente tem sido apresentada por aqueles que a praticam.
Desde seu nascimento na Antiguidade grega, a filosofia era ensinada e praticada em grupos relativamente fechados. Pitágoras e seus discípulos formavam uma seita filosófica, compartilhando ensinamentos secretos. Platão, na sua Academia, palestrava para a grande massa de alunos e reservava outros conhecimentos para um pequeno grupo de discípulos. No Liceu, Aristóteles tinha práticas semelhantes. Na Idade Média, a filosofia foi usada para fundamentar a teologia e os dogmas da fé católica. Por isso, todos os que se dedicavam à sua prática, tinham que ser aprovados pelas universidades e referendados por seus pares, atestando seus conhecimentos e, além de tudo, sua obediência aos ensinamentos da Igreja. Cultivados principalmente nos círculos acadêmicos, os estudos filosóficos desenvolveram um linguajar e um corpo de ideias próprio ao longo da história. Nos últimos cinco séculos o pensamento filosófico influenciou as artes e as ciências, mas seus conceitos mais abstratos permanecem longe da vida diária dos não filósofos.
Na longa e rica história do pensamento ocidental, também encontramos filósofos que não se utilizaram de conceitos abstratos para desenvolver sua filosofia. Voltados apenas para o que podemos apreender pelos sentidos, ignoraram conceitos filosóficos que não passassem pelo crivo das sensações. Desenvolvidas na antiga Grécia, as ideias destes pensadores permanecem mais atuais do que nunca.
O filósofo Pirro nasceu em aproximadamente 360 A.C., na cidade Élis, situada na parte ocidental da península do Peloponeso. Criador do ceticismo, também conhecido como pirronismo, as informações sobre sua vida são esparsas. Começou atuando como pintor, tendo decorado as paredes do ginásio de Élis, segundo o historiador Diógenes Laércio (225 - 300). Entrou em contato com a filosofia através das obras de Demócrito e teve aulas com o filósofo Bríson, tornando-se mais tarde discípulo de Anaxarco de Abdera. Com este participou da campanha de Alexandre, o Grande, para a Índia, em 326 A.C., onde travou contato com a cultura indiana. Durante sua permanência na Índia, Pirro conheceu os filósofos gimnosofistas, os filósofos nus, como eram conhecidos entre os gregos. Este encontro ocorreu na cidade histórica de Taxila, no atual Paquistão, à época importante centro de estudos do hinduísmo, budismo e do jainismo. O contato com a filosofia indiana influenciou seu pensamento posterior. De volta à Grécia, Pirro ensinou sua filosofia, mas nada deixou escrito. Suas ideias chegaram até nós através dos escritos de seu discípulo Tímon de Flio (320 - 230 A.C.) e do historiador Diógenes Laércio. O maior divulgador do pensamento pirrônico foi o filósofo cético Sexto Empírico (160 - 210).
Pirro afirma que somos constantemente enganados por nossas sensações. Cansaço, doença e o temperamento, por exemplo, influem na maneira como vemos as coisas. O que para a pessoa saudável é doce, para o doente pode ser azedo; a maneira como apreendemos o mundo é variável e não existe um ponto de vista único. O conhecimento humano é falho e nunca poderá chegar à certeza. O mesmo se aplica a conceitos tidos como absolutos: o Belo, o Bem, a Verdade, a Beleza; valores que mudam de uma época para outra e de um povo para o outro. Segundo Diógenes Laércio, Pirro teria dito que: "nada é belo ou ignóbil, justo ou injusto, nada é realmente como parece. Os seres humanos fazem tudo por convenção ou hábito e cada coisa é indeterminada." O que temos então é a acatalepsia, ou seja, a incompreensão; a impossibilidade de compreender ou conceber a verdade sobre as coisas. Esta também não existe e se existe nunca poderá ser encontrada. Portanto, para evitar o conflito interno e externo, tentando aceitar e combater opiniões, é mais acertado manter uma atitude de suspensão do julgamento; nenhuma afirmação é melhor que outra. Limitamo-nos à aparência dos fatos, já que a realidade absoluta é impossível. Assim, segundo Pirro, pode-se escapar das perplexidades da vida e atingir a imperturbabilidade da mente, a ataraxia.
Em sua vida Pirro, segundo relatos, viveu profundamente sua filosofia. Residindo em Élis, Pirro levava vida simples, sem apego a posses ou riquezas. Nada preocupando com papéis sociais, executava tarefas reservadas aos serviçais, como a limpeza da casa. Lavava os porcos que criava e carregava galinhas e outros animais para vender no mercado. Não se dedicava aos debates filosóficos e dava pouco valor aos que tentavam explicar o universo e prevalecer em discussões acadêmicas. Submetido a uma dolorosa intervenção cirúrgica, enfrentou a dor com coragem e serenidade.
Pirro foi admirado e apreciado em seu tempo. De Atenas recebeu o título de cidadão ateniense e em sua cidade foi feito sumo sacerdote. Em sua honra, todos os filósofos de Élis foram isentados do pagamento de impostos. No final de sua vida, a exemplo de seus antigos mestres da Índia, viveu um vida retirada, vindo a falecer aos 90 anos. Segundo seu discípulo Timon, manteve-se fiel às aparências, crenças, às leis e aos costumes, sabendo que estes não têm validade absoluta.
O ceticismo surgiu em um período de desestruturação social e econômica do mundo grego. As cidades, lideradas por Atenas e Esparta, haviam perdido sua autonomia, tendo sido incorporadas ao império de Alexandre Magno. A democracia e a cultura grega estavam em decadência. Os filósofos, influenciados pela insegurança generalizada e a derrocada dos sistemas de pensamento tradicionais, voltaram-se para questões práticas, relativas ao ser humano concreto; longe dos improváveis sistemas teóricos políticos e metafísicos.
O pensamento cético iniciado por Pirro foi fundamental para a formação da mentalidade moderna. Quase desaparecido durante a Idade Média, o ceticismo voltou a ser largamente estudado a partir do Renascimento, tendo contribuído para a formação de um pensamento crítico na filosofia moderna e o desenvolvimento da ciência.
Por outro lado, o pirronismo nos ajuda a compreender que o critério básico para conhecermos o mundo são nossos sentidos e suas extensões - microscópios, telescópios, aceleradores de partículas, sondas, entre outros. Formamos assim um quadro da realidade, sempre mutável, que chamamos ciência.
Mas esta também não é a imagem exata do universo, já que o que vemos, pensamos e sentimos é apenas o que pode ser observado sob um ponto de vista antropomórfico. Se há outros pontos de vista ou também "o ponto de vista absoluto", permanecerá eterna conjectura.
(Imagens: pinturas de Jasper Johns)
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