"Sempre chamo razão essa aparência de discurso que cada um forja em si." - Michel de Montaigne - Os Ensaios
(Texto publicado originalmente no livro "Trocando em palavras", antologia de textos da Academia Peruibense de Letras, Volume VIII, 2017)
Há algumas décadas a ciência
vem aprofundando o conhecimento sobre nossa relação com o mundo, ou seja, a
maneira como percebemos a realidade exterior ao nosso corpo. Não nos alongando
em especificidades científicas - mesmo porque não temos tal conhecimento - basta
mencionar que aquilo que vemos é em grande parte uma elaboração do nosso
cérebro. A partir de um número limitado de informações coletadas pelos sentidos,
nosso encéfalo compõe aquilo que temos a impressão de estarmos vendo. O que nos
parece estarmos ouvindo também é a interpretação que nosso cérebro faz das
vibrações no ar, que vindas do mundo exterior atingem nossos tímpanos.
Cheiros e gostos, já
ensinavam os antigos filósofos céticos da Grécia, variam de pessoa para pessoa
e até de acordo com seu estado de saúde; o mesmo vale para as sensações de
tato. Assim, algumas pessoas são mais resistentes ao frio e ao calor que outras.
A história de Roma eternizou a figura de Caio Múcio Cévola, cidadão da nascente
república, a qual estava em guerra com o povo etrusco. Sem manifestar qualquer
reação à dor, o herói romano manteve sua mão sobre um braseiro, enquanto era
interrogado pelo rei inimigo Porsena. Consta Cévola ter dito: "Veja, veja que coisa irrelevante é o corpo para os que não aspiram mais do que a glória!"
O que dizer da relatividade
da nossa percepção do tempo? Santo Agostinho, filósofo cristão do século IV, dizia
em relação ao tempo que "Se ninguém
mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não
sei." É nessa dimensão temporal que vivemos, que a muitos parece ser
preocupação apenas de especialistas, como historiadores, geólogos ou físicos. Como
avaliar a rocha, recentemente descoberta na Austrália, em cuja superfície se
pôde constatar a ação de microrganismos ocorrida há dois bilhões de anos? E como
imaginar o femtosegundo, medida de tempo criada pelos físicos de partículas,
cuja duração é de uma quaquilionésima (1x10-15) parte de um segundo? Cabem tantos femtosegundos em um segundo, quanto segundos
em 100 milhões de anos.
Nosso cérebro é, como
escreveu o neurocientista David Eagleman, "Encerrado em absoluta escuridão na caverna do crânio. Ele não vê nada.
Só sabe destes pequenos sinais e nada mais. E, no entanto, você percebe o mundo
em todos os tons de luminosidade e cor." De acordo com a moderna
neurologia e psicologia, nosso cérebro reconstitui as sensações que recebemos
através dos sentidos, formando impressões, às quais reagimos de maneira
consciente e inconsciente. Grande parte da atividade cerebral, aliás, não
ocorre no nível da consciência e por isso Freud disse que "o eu não é
senhor em sua própria casa".
Com diversas gradações e
algumas diferenças, é desta maneira que, com maior ou menor grau de
complexidade, todos os seres vivos interagem (e interagiram) com seu ambiente.
Considerando a multiplicidade de espécies atualmente existentes na Terra -
cerca de nove milhões -, é possível afirmar que apesar de dispor de um sistema sensitivo
(aparentemente) limitado, a vida tem sido bem sucedida em sobreviver sobre o
planeta. E isto ocorreu, entre outras razões, porque a percepção do ambiente,
da bactéria ao Homo sapiens, é movida
pela intencionalidade, consciente ou não.
Munido de um cérebro volumoso
e de conexões neuronais em crescente aumento, nossa espécie pôde, há
aproximadamente 38 mil anos, dar início a uma nova forma de sobreviver e viver
no mundo; através da cultura. Apesar de não termos sido a única espécie Homo a desenvolver atividade mental
superior - conhecemos o caso dos Neanderthais -, somos, todavia, a única que
sobreviveu para contar a história.
Ao longo dos últimos dez mil
anos a cultura humana se ampliou através de invenções como a da agricultura, da
cerâmica, da fundição dos metais, das cidades, do comércio, da tecnologia, da
indústria, e das grandes infraestruturas.
Junto e em função do saber material,
nossa espécie também desenvolveu um conhecimento espiritual, formado pelos
sistema de ideias de interpretação e explicação do mundo; sejam filosóficos,
políticos, religiosos ou científicos, todos intrinsecamente ligados às
invenções materiais.
Nos últimos cem anos, a
acumulação de conhecimento científico e filosófico, fez com que fossem
colocadas em cheque as explicações científicas e os discursos religiosos sobre
a realidade e seu funcionamento. Foi forçoso concluir, que mesmo as mais
comprovadas teorias, não representavam mais a explicação incontestável sobre o
universo externo e interno ao ser humano. Novas hipóteses sobre o macro e
microuniverso; revolucionárias descobertas acerca da mente do homem, da
sociedade e dos componentes básicos da vida, derrubam toda as certezas,
principalmente no campo das ideologias.
Todas estas novas ideias não
conduzem a um niilismo sem perspectivas, em absoluto. Mas no moderno pensamento
é cada vez mais corrente a ideia de que os nossos discursos sobre a vida e o
mundo - ideologias políticas, religiões, culturas - podem ser interpretados
como alegorias sobre uma realidade complexa e que não abarcamos em sua
totalidade. A própria linguagem, segundo o filósofo Nietzsche, pode ser
considerada uma metáfora da realidade.
A teoria científica também é uma
explicação precária de um fenômeno natural, um paradigma científico, que será substituído
por outro mais adequado, como escreve o filósofo da ciência Thomas Kuhn.
Alguns assim dizem que a
vida humana pode ser comparada a uma alegoria, passando pela sátira, pelo
apólogo ou até a fábula. Sobre esta comparação, encerramos nosso texto com a
afirmação do filósofo francês, La Mothe Le Vayer: "Toda a nossa vida é, na verdade, uma fábula; nosso conhecimento uma
asneira; nossas certezas, uma ilusão; resumindo, todo este mundo é apenas uma
farsa, uma perpétua comédia."
(Imagens: pinturas de James Rosenquist)
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