"Para quem medita sobre o inefável, é útil observar que a linguagem pode perfeitamente nomear aquilo de que não pode falar." - Giorgio Agamben - Ideia da prosa
“De um modo geral, o capitalismo deve ser
considerado como uma economia de custos não pagos, ‘não pagos’ na medida em que
uma parte substancial dos custos reais
de produção permanecem não contabilizados nas despesas empresariais; em vez
disso, eles são transferidos e pagos por terceiros ou pela comunidade como um
todo.” (W.William Kapp citado por Madoff & Bellamy Foster, pág. 40)
Falar
sobre substituição reuso e reciclagem de materiais parece assunto do passado.
Há mais de trinta anos o tema é mostrado pelos meios de comunicação, ensinado
em escolas, implantado em empresas e outras instituições; ministrado em cursos,
discutido em seminários e congressos; é tema de livros e documentários. Então,
qual é a novidade? Não é notícia nova, tanto que em todos esses anos, não
cresceu quase nada a taxa de reciclagem dos resíduos contidos no lixo urbano no
Brasil. Há cerca de duas décadas, o percentual de resíduos reciclados era cerca
de 3% e este pouco mudou até hoje. Segundo dados da Agência Brasil, em 2022
foram gerados quase 82 milhões de toneladas de lixo urbano, dos quais apenas 4%
foram reciclados.
Do
lixo descartado no Brasil, em média 33% é constituído por materiais
recicláveis, segundo dados do “Panorama de Resíduos Sólidos 2021”, publicado
pela Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública (ABRELP), entidade
que reúne as empresas coletoras de lixo. A fração de material orgânico do lixo
(restos de alimentos, folhagens, etc.) é de cerca de 45%, ainda segundo o mesmo
estudo. Os materiais recicláveis são compostos por plásticos (aproximadamente 16%);
papel e papelão (10%); vidros (2,7%), metais (2,3%) e embalagens multicamadas
(1,4%). Os percentuais pouco variam a cada ano, dependendo de alguns fatores (atividade
econômica, novos produtos consumidos pela população, etc.), mas, basicamente,
mantêm sua proporcionalidade. Assim, grande parte dos resíduos que seriam
reaproveitáveis, podendo ter sido reintroduzidos no processo produtivo primário
ou secundário economizando novos recursos naturais, acaba enterrada em aterros
sanitários, lixões ou jogada em riachos e terrenos baldios.
Em
números absolutos o Brasil é o quarto maior produtor de lixo no planeta, mas é
um dos países que menos reciclam materiais, segundo publicações especializadas.
Aspectos contraditórios em um país rico, cuja economia é uma das dez maiores do
mundo, mas onde 49,9% dos municípios (dados de 2020) ainda despejam seus
resíduos domésticos em lixões (depósitos irregulares ou ilegais ainda são cerca
de 2,5 mil em todo o país), causando poluição e contaminação de solos e lençóis
freáticos. Mais paradoxal ainda, é que mesmo sendo uma das nações que menos
reciclam seu lixo, somos o campeão mundial na reciclagem de latas de alumínio
(98,7%), resíduo com o melhor preço (cerca R$ 6,00/Kg) no mercado da reciclagem
(dados de 07/2023); atividade que se tornou a única opção de sobrevivência para
parte da população pobre. Dados oficiais estimam que 800 mil pessoas sobrevivam
como catadores no país, e que este número cresceu ainda mais depois da sindemia
da Covid-19.
Os
lixões, geralmente localizados nas periferias das cidades, além de serem fonte
de sobrevivência para milhares de pessoas em condições de pobreza extrema (durante
a sindemia da Covid-19 o número de pessoas passando fome no país aumentou de
19,1 para 33,1 milhões de pessoas), são foco de propagação de doenças,
abrigando diversos tipos de vetores (insetos, ratos, microrganismos, etc.).
Além disso, os lixões e aterros não regularizados são os terceiros maiores
emissores de gases de efeito estufa – principalmente o metano, 23 vezes mais
poderoso na atmosfera do que o dióxido de carbono –, logo depois dos setores de
transportes e agricultura. Isto porque, a componente de material orgânico no
lixo doméstico (45% em média) é alimento de bactérias que emitem o gás em seu
processo metabólico.
A
depender de legislação e instruções técnicas específicas para tratamento do
lixo, o país já deveria dispor de um moderno e eficiente sistema de gestão de
resíduos, pois não nos faltam estes instrumentos – pelo menos nos últimos 13
anos. Todavia, a sociedade brasileira (a parte dirigente dela) ainda continua atuando
como se bastasse aprovar leis para que as situações às quais se aplicam, sejam
(magicamente) resolvidas; “aprovada a lei, o problema automaticamente desaparece”.
Na área da gestão de resíduos o Brasil aprovou a Política Nacional de Resíduos
Sólidos (PNRS) (Lei 12.305/10), na qual constam os objetivos, instrumentos, as
informações e as diretrizes relativas à gestão integrada e ao gerenciamento de
resíduos sólidos, incluindo as responsabilidades dos geradores, do poder
público e dos demais envolvidos. A fim de instruir todas as partes ligadas ao
tema, foi publicado o Plano Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) (Decreto
11.043/22); um documento técnico, expondo as ações e tratativas ambientalmente
adequadas para lidar com esses materiais. Enquanto o PNRS é lei o PNRS é
instrumento técnico.
Segundo
o Plano Nacional de Resíduos Sólidos, “Além
do encerramento de todos os lixões, é previsto o aumento da recuperação de
resíduos para cerca de 50% em 20 anos. Assim, metade do lixo gerado deverá
deixar de ser aterrado e passará a ser reaproveitado por meio da reciclagem,
compostagem, biodigestão e recuperação energética. Atualmente, apenas 2,2% dos
resíduos sólidos urbanos são reciclados. O plano prevê ainda o aumento da
reciclagem de resíduos da construção civil para 25%, incentiva a reciclagem de
materiais, contribui para a criação de empregos verdes, bem como possibilita
melhor atendimento a compromissos internacionais e acordos multilaterais, e
representa passo importante no processo de acessão do Brasil à OCDE. A
recuperação de resíduos também proporciona redução do consumo de energia e
menor emissão de gases de efeito estufa”. (Plano Nacional de Resíduos
Sólidos – Introdução)
Apesar
dos anos decorridos desde que se discute o assunto, a despeito das leis, das
instruções técnicas, da ação de ONGs e outros agentes, a reciclagem no Brasil
parece não avançar, exceção feita a poucas cidades como Curitiba, Santos,
Florianópolis e Campo Grande, entre outras, que já dispõem de 100% de coleta seletiva.
No restante do país, apenas um em cada cinco municípios tem algum tipo de
coleta seletiva, segundo dados da ABRELP de 2020. Apenas as regiões Sul e
Sudeste dispõem de serviços de coleta seletiva e iniciativas de reciclagem em
mais de 90% de seus municípios, segundo a mesma associação em publicação de
2022. No entanto é preciso considerar que mesmo nestas regiões, a coleta
seletiva e a reciclagem ainda são bastante limitadas. Na área de Campinas, no desenvolvido interior de São Paulo, por exemplo, a coleta
seletiva não alcança mais que 12%, segundo matéria publicada no site G1 em
março de 2022.
Um
dos principais gargalos em todo o sistema é a falta de aterros devidamente
construídos e regulamentados. Apesar dos prazos para a eliminação dos lixões e aterros
irregulares estabelecidos por lei – prorrogados por duas vezes pela Câmara dos
Deputados –, dados da Associação Brasileira das Empresas de Tratamento de
Resíduos Sólidos e Efluentes (Abetre) de outubro de 2020, informam que 60% dos
municípios ainda utilizam lixões. Ainda segundo a associação, o país precisaria
construir cerca de 500 aterros sanitários para resolver o problema. Os
impedimentos para a implantação de aterros, alegados pelos prefeitos de centenas
de municípios brasileiros, presentes a audiências realizadas na Câmara dos
Deputados, é a falta de recursos financeiros e capacitação técnica. Grande
parte dos municípios não chega nem a ter condições técnicas de elaborar o “Plano
Municipal de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos”, documento exigido pelo
governo federal (atualmente sob responsabilidade do Ministério das Cidades) para
que a cidade possa pleitear financiamento para a construção de um aterro
sanitário conforme a lei, implantar um sistema de coleta seletiva e de reciclagem
dos resíduos.
Outro
aspecto é a organização do sistema municipal de coleta seletiva, triagem e
reciclagem dos resíduos. Também neste caso são poucas as prefeituras que detêm
profissionais qualificados para implantar e, posteriormente, gerenciar este
sistema. Ficam as administrações municipais na dependência de empresas de
consultoria, as quais, segundo algumas prefeituras, implantam o projeto, mas
não repassam a técnica para funcionários da prefeitura.
Mais
um aspecto importante na gestão dos resíduos municipais, é o custeio da
contínua operação do sistema. Ao mesmo tempo em que se implanta gradualmente o
projeto, deve ocorrer uma intensiva campanha de conscientização da população,
para que efetivamente a estrutura montada pela prefeitura seja usada pela
população e possa atingir seu objetivo, que é dar um destino correto a cada
tipo de resíduos, reduzindo seu impacto ambiental.
Resumidamente,
o lixo, inicialmente, tem que ser fracionado pelo usuário do serviço (o
morador, a empresa) em “lixo molhado”, constituído pelo material orgânico (restos
de alimentos, resíduos inaproveitáveis); e “lixo seco”, composto por materiais
recicláveis (latas, plástico, papel, papelão, etc.). Depois de coletados estes
materiais terão destinos diversos; o material orgânico para compostagem ou
diretamente ao aterro, e o material reciclável separado, segundo seu tipo. Os
materiais reciclados, na forma prensada ou em fardos, serão destinados aos
recicladores; aquelas empresas que os transformarão em nova matéria prima.
Especialistas
ainda discutem atualmente se o resultado financeiro da venda do material
reciclável pode cobrir os custos de toda a operação, incluindo o trabalho de coleta/separação
do material feita pelas cooperativas de catadores. O marco legal do saneamento (Lei 14026/20),
aprovado em 2020, já prevê que a sustentabilidade econômico-financeira dos
serviços de limpeza pública deve ser compartilhada pelo usuário deste serviço,
através da cobrança de taxas, a “taxa do lixo”. Para evitar problemas ocorridos
no passado, quando administrações municipais sofreram grande desgaste perante o
cidadão ao instituírem tal taxa (caso da administração de Marta Suplicy em São
Paulo, entre 2001 e 2004, quando foi instituída a taxa), a tendência é que as
prefeituras passem a incorporar a cobrança no IPTU e que seja um valor
equivalente à média mensal de lixo gerado pelo imóvel.
Mesmo
assim, argumentam muitos especialistas, a conta não deve fechar. É preciso
incluir nesta equação os geradores dos resíduos; os fabricantes, importadores,
distribuidores e comerciantes, como parte do que a PNRS chamou de “Responsabilidade
Compartilhada” (empresas, consumidores e poder público). Neste âmbito, algumas
associações empresariais já fizeram acordos com cooperativas de catadores, a
fim de que estas sejam remuneradas pela gestão dos resíduos gerados pelas empresas,
responsabilizando-se pela chamada “logística reversa” destas embalagens. Outra
solução defendida por muitos especialistas do setor, é que as empresas paguem
uma taxa pela geração de resíduos (embalagens), que seria destinada a um fundo usado para financiar todo o sistema
municipal de gestão de resíduos. Esta modalidade de financiamento da gestão
municipal de resíduos já é adotada na maior parte dos países europeus e vem
sendo implantada também em cidades dos Estados Unidos.
Em
maio de 2021, 100 empresas de atuação global que se utilizam de embalagens em
seus produtos, reconheceram publicamente que a reciclagem dos resíduos precisa
ser financiada pelos produtores e comercializadores dos produtos. Entre os
signatários desta declaração estão fabricantes e vendedores de alimentos, cosméticos
e outros produtos de consumo, como Coca-Cola, Pepsi, Nestlé, Unilever, Danone,
Ferrero, H&M, Henkel, L’Oréal, Mars, Wal-Mart, além de fabricantes e
recicladores como Borealis, Mondi, Tetra Pak e Veolia. A ideia central é que a
Responsabilidade Compartilhada baseada em taxas, tanto para o consumidor quanto
para as empresas, é a única maneira efetiva de propiciar o financiamento dos
sistemas de coleta, triagem e reciclagem de embalagens, já que estes processos
são mais caros do que a receita obtida com a venda dos materiais reciclados. O
financiamento deve ser dedicado, contínuo e suficiente para fazer a economia da
reciclagem funcionar e atingir o objetivo de repor matérias primas no processo
produtivo e dar destino correto ao refugo. Outras associações empresariais brasileiras não concordaram ainda em
aderir à Responsabilidade Compartilhada, fazendo com que a discussão se estenda por mais de dez anos sem que as partes tenham chegado a um acordo.
Já
está mais do que na hora de realmente nos preocuparmos e ocuparmos com a
gradual resolução da gestão dos resíduos, a começar pelos domésticos urbanos.
Querendo ingressar em instituições como a Organização para Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) ou voltar a ocupar seu espaço entre os países
de maior relevância na questão ambiental, o país precisará começar a equacionar
a questão dos resíduos e tudo o que está ligado ao tema. Neste contexto, é
imperativo que junto com o cidadão e o governo, também as empresas deem sua contribuição
financeira, sob o forte argumento de repararem as
externalidades econômicas de seus negócios.
Fontes consultadas:
Magdoff, Fred. Bellamy
Foster, John. What every environmentalist needs to know about Capitalism. New
York. Mothly Review Press: 2011, 187 pgs.
Índice
de reciclagem no Brasil é de apenas 4%, diz Abrelpe. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-06/indice-de-reciclagem-no-brasil-e-de-4-diz-abrelpe.
Acesso em 27/7/2023
Quase
metade dos municípios ainda despeja resíduos em lixões. Disponível em https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-08/quase-metade-dos-municipios-ainda-despeja-residuos-em-lixoes#:~:text=Quase%20metade%20dos%20munic%C3%ADpios%20brasileiros,85%25%20dos%20res%C3%ADduos%20s%C3%A3o%20reciclados.
Acesso em 27/07/2023.
Entenda a diferença entre a
PNRS e o PGRS. Disponível em https://www.weberambiental.com.br/publicacao.php?nome=entenda-a-diferenca-entre-a-pnrs-e-o-pgrs#:~:text=Enquanto%20a%20PNRS%20%C3%A9%20a,lidar%20com%20os%20res%C3%ADduos%20s%C3%B3lidos.
Acesso em 25/7/2023
Plano Nacional de Resíduos
Sólidos. Disponível em https://sinir.gov.br/informacoes/plano-nacional-de-residuos-solidos/.
Acesso em 25/7/2023
Política Nacional de
Resíduos Sólidos. Disponível em https://antigo.mma.gov.br/cidades-sustentaveis/residuos-solidos/politica-nacional-de-residuos-solidos.html.
Acesso em 25/7/2023
Panorama dos Resíduos
Sólidos no Brasil. Disponível em https://abrelpe.org.br/panorama/.
Acesso em 25/7/2023
Reciclagem no Brasil ainda é
baixa, mas já existem iniciativas para aumentar nos próximos 18 anos.
Disponível em https://www.synergiaconsultoria.com.br/fique-por-dentro/reciclagem-no-brasil/.
Acesso em 25/7/2023.
Reciclagem no Brasil:
conheça os materiais mais reciclados. Disponível em https://blog.pixpel.com.br/reciclagem-no-brasil/.
Acesso em 25/7/2023
O lixo e a reciclagem: fonte
de geração de emprego, renda e preservação ambiental. Disponível em https://www.brasildefato.com.br/2022/07/18/o-lixo-e-a-reciclagem-fonte-de-geracao-de-emprego-renda-e-preservacao-ambiental.
Acesso em 25/7/2023.
Getting Manufacturers to
Help Pay for Recycling. Disponível em https://www.bloomberg.com/news/articles/2021-09-07/who-pays-to-recycle-our-waste-u-s-states-have-a-new-answer.
Acesso em 25/7/2023
100 empresas globais apoiam
que produtores paguem coleta e reciclagem. Disponível em https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/mara-gama/2021/06/24/100-empresas-globais-apoiam-que-produtores-paguem-coleta-e-reciclagem.htm
Resíduos sólidos urbanos no
Brasil: desafios tecnológicos, políticos e econômicos. Disponível em https://www.ipea.gov.br/cts/pt/central-de-conteudo/artigos/artigos/217-residuos-solidos-urbanos-no-brasil-desafios-tecnologicos-politicos-e-economicos.
Acesso em 25/7/2023
Número de municípios com
coleta seletiva aumentou 29% entre 2010 e 2019. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/numero-de-municipios-com-coleta-seletiva-aumentou-29-entre-2010-e-2019/ Acesso em 25/7/2023
Municípios Não Têm Como
Cumprir Lei De Resíduos Sólidos – Será Mesmo?. Disponível em https://portalresiduossolidos.com/municipios-nao-tem-como-cumprir-lei-de-residuos-solidos-sera-mesmo/.
Acesso em 26/7/2023
(Imagens: colagens fotográficas de Raoul Hausmann)
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