Ainda o anti-intelectualismo

sábado, 20 de junho de 2020
"Amarra-se o burro à vontade do dono."   -   R. Magalhães Júnior   -   Dicionário brasileiro de provérbios, locuções e ditos curiosos


Anti-intelectualismo é um fenômeno sócio-cultural, que se caracteriza pela suspeição, hostilidade e, em muitas casos, violência contra a cultura – as ciências, as artes, a educação e a pesquisa – bem como em relação a seus cultores: os cientistas, artistas de todos os tipos, professores e os intelectuais em geral.

O anti-intelectualismo tem causas diversas, dependendo das sociedades onde se manifesta. Geralmente é exteriorizado por manifestações de sentimentos de ressentimento contra indivíduos ou grupos, que se sobressaem devido ao seu grau de instrução, sua produção cultural/científica ou profissão vinculada ao conhecimento (professores, reitores, pesquisadores, jornalistas, etc.).

Este sentimento é elaborado com base em uma ideologia, cujos defensores e estimuladores têm objetivos definidos. A intenção dos que incentivam tal tipo de comportamento anti-intelectualista – eles mesmos, por vezes, intelectuais – é desvalorizar o conhecimento acadêmico, científico e artístico. A cultura, transformada em um “não-valor”, passa a ser desacreditada, sendo intencionalmente depreciada. Uma das maneiras de fazer isso, é nivelar todos os saberes e atividades, tendo por base sua contribuição imediata à economia do país. Nesta avaliação econômica obtusa e limitada, não há porque investir recursos da sociedade em atividades artísticas e científicas, já que não trazem benefícios econômicos imediatos.  

Outro objetivo do anti-intelectualismo – e este muito mais político do que econômico – é dissimular situações de injustiça social, denunciadas exatamente pela produção intelectual daqueles que se acusa de parasitas sociais, por exercerem atividades ou funções que se quer fazer parecer como não produtivas. Além disso, existe o fato de não se querer subsidiar atividades culturais que possam despertar a “intranquilidade social e promover a desordem” (leia-se fazer pensar).   
  
A estratégia anti-intelectualista de uma forma geral, é a de invalidar, falsear e desautorizar o discurso daqueles que criticam a conjuntura, quando apontam situações de injustiça, opressão ou ignorância. A tentativa de anular a crítica ocorre então através do ataque às denúncias em si, procurando apontar sua imprecisão, ou desprestigiando os críticos das mais diversas formas, chegando até a ataques ad hominem.

Tal situação ocorre, por exemplo, quando um membro de um governo ridiculariza um estudo elaborado por especialistas, apontando a necessidade de providências diferentes às que vinham sendo adotadas por este governo. Critica-se a “linguagem obscura”, os “elaborados raciocínios”, “as soluções impraticáveis”. Procura-se mostrar para o público em geral, que as medidas sugeridas são por demais “acadêmicas”, longe da “realidade prática”.

O mesmo tipo de argumentação também é empregado por aqueles que querem contrapor àquilo que chamam a “visão dos intelectuais” à “nossa visão pragmática”. Esta atitude é extensiva a todos os que promovem e mantêm um posicionamento hostil em relação a toda as atividades relacionadas ao conhecimento, à cultura. Para tais grupos, o conhecimento útil é aquele que interessa aos seus próprios objetivos (ou aos objetivos dos grupos cujos interesses defendem); sejam econômicos ou políticos. Qualquer coisa além disso, é desvalorizado e execrado como algo fantasioso; “poesia” e “filosofia”, como ordinariamente se diz.

Fica implícito, também, no que expusemos, que o anti-intelectualismo comporta boa dose de autoritarismo. Está subjacente, que posições anti-intelectuais, desvalorizando recentes e mais elaboradas concepções na ciência, na arte e no conhecimento em geral, denotam uma resistência às mudanças, ao questionamento, ao debate. Fecham-se em suas convicções, satisfazendo-se com o que sabem (e não sabem). “Não me venham com novas ideias!”

Não é por acaso que o anti-intelectualismo é aberta ou veladamente promovido por governos e políticos autoritários (ou "iliberais" como diz a nova terminologia), grupos sociais conservadores, credos religiosos dogmáticos, agremiações culturais tradicionalistas e toda gama de movimentos incapazes de se adaptarem a um contexto cultural e social igualitário e em constante mutação. 

Nos Estados Unidos, apesar de sua tradição de valorizar a cultura e a ciência com grandes investimentos e prestígio público, é habitual uma certa ironia em relação à assim chamada “alta cultura”, dos intelectuais e dos professores – principalmente na cultura de massa. Em alguns países da Europa, o anti-intelectualismo também está presente, notadamente nos mais conservadores, religiosos e nacionalistas, como a Polônia, a Hungria e a Ucrânia, entre outros. Na Alemanha de Hitler o anti-intelectualismo, principalmente aquele voltado contra os eruditos judeus, foi muito acentuado, com perseguições, fechamento de editoras e queima de livros – além de muitos e muitos assassinatos.

No Brasil, o anti-intelectualismo aumentou ao longo dos últimos dez anos, associado ao crescimento do conservadorismo político, à revalorização do neoliberalismo econômico e um gradual distanciamento de parte dos intelectuais das iniciativas culturais populares. Não se pode deixar de mencionar também a contribuição do baixo nível da educação pública, incentivos insuficientes à cultura e à divulgação científica. Colaborou também o crescimento das igrejas pentecostais e o desenvolvimento de uma cultura de massas mais individualista.

Criou-se assim no Brasil o ambiente propício para que todos os tipos de ideólogos do anti-intelectualismo, com os mais variados interesses, pudessem defender e implantar suas teses. A profilaxia contra tal doença passa pela melhoria efetiva do ensino, valorização da cultura e da ciência, e pela difusão do debate, do questionamento e do espírito crítico em todas as áreas do conhecimento.    


(Imagens: gravuras de Francisco de Goya)

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