O que não aparecia

sábado, 6 de junho de 2020
"Logo que o Brasil oferecer condições morais e materiais favoráveis, o estrangeiro há de procurar esta nova Pátria   -   José de Alencar   -   Perfis parlamentares


A pandemia do covid tem chamado a atenção para aspectos da sociedade brasileira que antes passavam despercebidos. Interessante observar como a dinâmica provocada pela pandemia – o isolamento social e a suspensão da maior parte das atividades econômicas – está expondo com muita ênfase as contradições sociais e econômicas do país.

A concentração de renda e privilégios sempre fez parte do dia a dia dos brasileiros, para o bem ou para o mal, desde que o país existe como colônia, império ou república. Nos períodos autoritários, quando a censura exercia forte pressão sobre a mídia e a produção intelectual em geral, o assunto era evitado ou atenuado. Por trás das críticas à situação de iniquidade social e econômica, estava implícita a ideia de que o país, por ser uma nação nova, estava em construção, a economia em processo de crescimento e que os benefícios estavam, aos poucos, sendo distribuídos a todos. Ficou famosa a expressão bastante usada no período ditatorial, de que “era preciso fazer o bolo crescer, para depois dividir”.

O que ocorreu durante este processo todos sabemos, com maior ou menor profundidade. O país se tornou uma nação economicamente desenvolvida, com padrão mediano de desenvolvimento tecnológico, mas com enorme concentração de renda e benefícios; uma das maiores entre todos os países. Os governos que se sucederam, trataram o problema com maior ou menor atenção. Alguns com foco na economia, esperando que o crescimento econômico fosse beneficiar a todos indistintamente; trabalho e capital. Outros governos, partindo de uma visão social, procuraram criar mecanismos que também beneficiassem o trabalho – sem, porém, onerar por demais o capital.

Foi assim que, pelo menos ao longo dos últimos sessenta anos, se deu a evolução da sociedade brasileira em seus aspectos econômicos e sociais. O resultado disso, é que grande parte dos objetivos não foram alcançados. Agora, a crise do coronavírus escancarou uma situação que sempre foi ignorada ou tolerada, porque a sociedade brasileira era induzida a pensar que apesar dos percalços, a distribuição equânime de benefícios e oportunidades estava avançando.

Surgem questões que, já formuladas antes, agora se tornam prementes. Situações que exemplificam o que ocorre, quando sociedades se desenvolvem anomalamente, sem justiça social. Por que, por exemplo, existem tantas cidades, Brasil afora, que não dispõem de assistência médica para seus cidadãos? Unidades básicas de saúde (UBS) sem equipamentos ou médicos, falta de hospitais. Criaram-se milhares de municípios nos últimos sessenta anos (de 2.766 em 1960 para 5.570 em 2020), nos quais aspectos essenciais como educação e atendimento médico foram ignorados – sem falar do saneamento básico. Agora, com a pandemia, fica evidente o quanto estas populações são desrespeitadas em seu direitos, quando necessitam de atendimento médico.

O Sistema Único de Saúde (SUS), criado em 1988, tem como objetivo oferecer assistência médica de qualidade a todo cidadão. Más administrações, desvio de verbas, loteamento da instituição para cargos políticos, sempre impediram que o SUS pudesse operar com toda a sua capacidade. O atual governo chegou a aventar a possibilidade de privatizar o sistema, transferindo seus serviços para o setor privado através dos convênios médicos. Novamente, um processo de desrespeito aos direitos da maior parte da população (cerca de 70%), usuária do sistema, porque não dispõe de recursos para pagar convênio privado. Além disso, deveria ser um dos objetivos de nossos governantes, oferecer medicina de qualidade gratuita ao cidadão, como ocorre em muitos países.

Mais um aspecto colocado a nu pela pandemia, são as desumanas condições de moradia de mais de 50% da população brasileira. Somente na cidade de São Paulo, acima de 2 milhões de pessoas ainda moram em favelas, segundo reportagem recente da imprensa. Nestas aglomerações grande parte dos moradores não tem água corrente, coleta de esgotos e outros benefícios mínimos.

É desnecessário relacionar todas as mazelas enfrentadas pela parcela da população que sempre foi colocada à margem do processo de desenvolvimento, que sempre ficou esperando um “pedaço da fatia do bolo”. Saúde, educação, transporte, saneamento, moradia, melhor remuneração, além de acesso a segurança, justiça e cultura, quase sempre lhes foram negados. E a pandemia colocou isto à mostra.

A sociedade brasileira usará esta oportunidade para mudar suas relações econômicas e sociais? Ou continuaremos no mesmo jogo infantil, com políticos que misturam religião e nacionalismo barato tentando iludir a população, enquanto grupos se aproveitam da situação, como sempre fizeram?  

 (Imagens: fotografias de TS Satyan)

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