Leituras diárias

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025


 

“A cidade tomou um aspecto de revolução. Todos se locomoviam, procuravam ver. E os mais afoitos queriam ir até a temeridade de entrar no bonde, andar de bonde elétrico! Naquele dia de estreia ninguém pagava passagem, era de graça. A afluência tornou-se, portanto, enorme. No centro agitado, eu desci a Ladeira de São João, que não era ainda a Avenida de hoje. Fiquei na esquina da Rua Líbero Badaró, olhando para o Largo de São Bento, de onde devia sair a maravilha mecânica. A tarde caía. Todos reclamavam. Por que não vem? Anunciava - se que a primeira linha construída era a da Barra Funda. – É pra casa do prefeito! – O bonde deixava o Largo de São Bento, entrava na Rua Líbero, subia a Rua São João. Um murmúrio tomou conta dos ajuntamentos. Lá vinha o bicho! O veículo amarelo e grande ocupou os trilhos no centro da via pública. [...] Uma campainha forte tilintava abrindo as alas convergentes do povo. Desceu devagar. Gritavam: – Cuidado! Vem a nove pontos! Um italiano dialetal exclamava para o filhinho que puxava pelo braço: – Lá vem os bonde! Toma cuidado! O carro lerdo aproximou-se, fez a curva. Estava apinhado de pessoas, sentadas, de pé. Uma mulher exclamou: – Ota gente corajosa! Andá nessa geringonça! Passou. Parou adiante, perto do local onde se abre hoje a Avenida Anhangabaú. Houve um tumulto. Acidente? Não andava mais, gente acorria de todos os lados. Muitos saltavam. – Rebentaram a trave do lado! Não é nada! Tiraram a trave quebrada. O veículo encheu-se de novo, continuou mais devagar ainda, precavido. E ficou pelo ar, ante o povo boquiaberto que rumava para as casas, a atmosfera dos grandes acontecimentos. Nas ruas, os acendedores de lampião passavam com suas varas ao ombro acendendo os acetilenos da iluminação pública. (Andrade, O., 1990, p. 48-9, grifo nosso).  

No momento em que Oswald escreve seu relato, convivia na metrópole convulsionada pela multidão de seres desenraizados – imigrantes, ex-escravos, caipiras, paulistanos de modo geral – uma série de elementos representativos de uma São Paulo que, apesar da inovação do bonde elétrico, ainda conservava traços do passado, como a figura do acendedor de lampião. Boris Fausto observa que ainda nos anos 1920 e 1930 vaqueiros traziam ao Parque da Aclimação algumas vacas e serviam leite fresco à população. Essa era uma São Paulo, segundo o historiador, ‘ainda com muitos traços rurais, em que os carros se misturavam às carroças’ (Fausto, 1997, p. 74). Apesar de a cidade ainda apresentar visíveis traços da vida rural, Fausto observa que ‘O hábito de ir ao cinema, especialmente nas matinês de domingo, já se implantara; frequentavam-se também os cafés do Centro, onde se passava horas tomando cafezinho e, em sigilo, os cabarés e os bordéis’ (ibidem). Os artigos ítalo-caipiras de Bananére circulavam exatamente nesse momento de redefinição em que a cidade se via às voltas com uma série de mudanças que mal se ajustavam às ruas e becos ainda fortemente marcados por costumes e tradições do século anterior, como atesta Nicolau Sevcenko (1992, p. 31).” (Marques, págs. 45, 46 e 47).

 

Francisco Cláudio Alves Marques, Nostálgicos na terra do banzo: o imigrante italiano em Juó Bananére e António de Alcântara Machado

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