O
Brasil já passou por poucas e boas, como diriam nossos avós, com relação à sindemia
da Covid-19. O termo “sindemia”, criado pelo antropólogo Merril Singer nos anos
1990, foi retomado recentemente pela prestigiosa revista científica The Lancet, com o argumento de que a
pandemia, além dos impactos na saúde das pessoas, também tem efeitos sobre a
economia, o meio ambiente, as relações sociais e muitas outras áreas. Nós, por
aqui, já escutamos muitos relatos, em sua maioria falsos, sobre a sindemia da
Covid-19. Foi dito que se tratava apenas de uma gripezinha; que afetaria poucas
pessoas; que existiriam drogas baratas e de fácil acesso (hidroxicloroquina e
ivermectina) para combater a doença; que o vírus fora criado na China, com
objetivo de destruir a civilização cristã ocidental; que era preciso que
deixássemos de ser maricas em relação à doença; que um plano de vacinação
estava em gestação, e assim ad nauseam.
Além dessas informações, vários outros boatos, por vezes maldosos, tiraram a serenidade
da população. Muitos, ante o desencontro das notícias, ficaram completamente
confusos, sem saber como agir, esperando uma orientação firme, clara e
convincente – que não veio. Se o povo tivesse sido melhor esclarecido, talvez
não chegássemos às mais de 180 mil mortes.
O
segundo capítulo desta história está se desenrolado agora: a questão da vacina.
Quais imunizações estão sendo aprovadas; quais foram compradas pelo ministério
da Saúde; quando o plano de vacinação estará definitivamente elaborado; quando
começará a vacinação? Na população, em grande parte como resultado das
campanhas de fake news disseminadas
nas bolhas das redes sociais, e da
falta de informação e clareza por parte do governo, aparece outra (falsa) discussão:
a vacina deve ou não ser obrigatória?
Para
indivíduos de bom senso, a resposta seria clara: “Sendo ou não obrigatória, a
vacina será tomada por todos, a fim de desacelerar a pandemia de covid 19,
reduzindo as mortes e internações, para que a sociedade brasileira possa
gradualmente retomar suas atividades normais.” Esta deveria ser a reação de
pessoas sensatas e racionais, que reconhecem a gravidade da sindemia.
O
número de pessoas que são contra a obrigatoriedade da vacina sob pretexto da
defesa da “liberdade individual”, está, ao que parece, diminuindo. Apesar
disso, ainda é grande o número daqueles que – seja por que motivo for – dizem
que não pretendem tomar a vacina. Não farei aqui, como outros já fizeram,
comentários sobre a idade mental desses indivíduos; deixemos isto de lado.
É
evidente que a liberdade individual não é absoluta para quem vive em sociedade.
A questão da liberdade só não se coloca para alguém que, como Robinson Crusoé,
viva completamente isolado. Neste caso, não faz o menor sentido falar em
liberdade; não há necessidade. Liberdade em relação a quem ou o a quê? No
famoso romance homônimo de Daniel Defoe, até a chegada do nativo batizado de
“Sexta-Feira”, Robinson vivia sozinho; agia absolutamente de acordo com sua
vontade, que era sua lei.
Assim,
só faz sentido falar em liberdade quando se vive junto com outras pessoas,
sujeito a regras e leis – o que é o caso de 99,9% da humanidade. A exceção
talvez sejam Rômulo e Remo, os irmãos da obra Eneida do poeta romano Virgílio, dos quais o primeiro foi o
fundador de Roma, que foram criados por uma loba. Também poderíamos incluir
nesta curta lista o jovem Kaspar Hauser (1812-1833), que dizia ter crescido em
uma masmorra, sem contato com humanos. Afora estes personagens míticos e
misteriosos e alguns outros relatos de outras partes do globo, parece que a
maioria de nós nasceu, cresceu e vive em sociedade.
Os
contratualistas como filósofos Hobbes e Locke, situam o origem do Estado num
acordo feito entre os homens de um passado remoto. Para assegurar sua
segurança, contando com a proteção do chefe, do rei ou de um governante do
Estado, os homens abriram mão de parte da liberdade da qual gozavam, quando
estavam sem governo (em estado selvagem, de liberdade total). Assim, em troca
de proteção contra inimigos externos, contra ataques de vizinhos, os homens
dispuseram-se a seguir certos regulamentos, certas leis – o que significava
abrir mão de parte de sua liberdade. Não se sabe se a história humana
transcorreu exatamente desta forma, mas fica evidente que, a partir do momento
em que os homens decidem viver em grupos cada vez maiores, precisam abrir mão
de parte de sua autonomia. A independência da qual desfrutavam grupos nômades
de caçadores do Paleolítico e do Mesolítico, sem dúvida era muito maior daquela
dos primeiros agricultores sumérios do Neolítico. Todavia, gradualmente, ao se
formarem as aldeias com sua infraestrutura, seus grupos de defesa e seus
estoques comunitários de alimentos, a renúncia à parte da liberdade terá valido
a pena para a sobrevivência destas primeiras sociedades, sujeitas a rudimentos
de leis ou acordos de convivência.
Receber
os benefícios, mas não fazer os sacrifícios? Em sociedade teocráticas – muitos
grupos antivacina têm forte orientação religiosa – a desobediência às normas do
Estado significa uma desobediência às leis da religião. Paradoxalmente, tal
tipo de revolta contra a vacina só é possível em um Estado laico e não
“terrivelmente cristão”.
O
impasse está colocado. A questão será, sem dúvida, resolvida de forma
democrática. Mas é possível que em diversos lugares as próprias instituições cuidem
do caso à sua forma, colocando barreiras aos não vacinados. Países instituirão barreiras
sanitárias, empresas podem exigir que seus funcionários sejam todos vacinados;
o mesmo valendo para cinemas, teatros, clubes, academias de ginástica, eventos,
museus e outros locais de grande frequência de público. De uma forma ou de
outra, a solução virá, já que quanto mais demorar para que se alcance um número
ideal de imunizados – a imunidade de rebanho – mais tempo se estenderá a
sindemia, com todas as suas implicações.
Mais uma pergunta que me ocorre agora, ao final do
texto. Não sendo obrigatória a vacina, ocorrerá que muitas pessoas não a
tomarão, alegando motivos diversos, frutos da ignorância e falta de informação
e outros baseados em ideologias extremistas. O jornal Folha de São Paulo
informa que cerca de 20% dos brasileiros afirmam que não querem ser imunizados.
Neste caso, o que ocorrerá se alguém que ainda não pôde tomar a vacina, for
comprovadamente infectado por alguém que se negou a tomá-la? Quem será responsabilizado?
O Estado, que facultou a cada um a escolha de tomar a vacina ou não, colocando
assim parte da população em risco? Ou, como geralmente acontece, o ônus recairá
sobre o cidadão?
(Imagens: pinturas de Phillip Bauknecht)
1 comments:
Ricardo, suas ponderações sempre lúcidas e bem embasadas, proporcionam oportunidade valiosa de reflexão a todos nós.
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