Vacina obrigatória?

sábado, 19 de dezembro de 2020

 
"Todo o nosso progresso tecnológico, que tanto se louva, o próprio cerne de nossa civilização, é como um machado na mão de um criminoso."   -   Albert Einstein   -   Correspondência


O Brasil já passou por poucas e boas, como diriam nossos avós, com relação à sindemia da Covid-19. O termo “sindemia”, criado pelo antropólogo Merril Singer nos anos 1990, foi retomado recentemente pela prestigiosa revista científica The Lancet, com o argumento de que a pandemia, além dos impactos na saúde das pessoas, também tem efeitos sobre a economia, o meio ambiente, as relações sociais e muitas outras áreas. Nós, por aqui, já escutamos muitos relatos, em sua maioria falsos, sobre a sindemia da Covid-19. Foi dito que se tratava apenas de uma gripezinha; que afetaria poucas pessoas; que existiriam drogas baratas e de fácil acesso (hidroxicloroquina e ivermectina) para combater a doença; que o vírus fora criado na China, com objetivo de destruir a civilização cristã ocidental; que era preciso que deixássemos de ser maricas em relação à doença; que um plano de vacinação estava em gestação, e assim ad nauseam. Além dessas informações, vários outros boatos, por vezes maldosos, tiraram a serenidade da população. Muitos, ante o desencontro das notícias, ficaram completamente confusos, sem saber como agir, esperando uma orientação firme, clara e convincente – que não veio. Se o povo tivesse sido melhor esclarecido, talvez não chegássemos às mais de 180 mil mortes.

O segundo capítulo desta história está se desenrolado agora: a questão da vacina. Quais imunizações estão sendo aprovadas; quais foram compradas pelo ministério da Saúde; quando o plano de vacinação estará definitivamente elaborado; quando começará a vacinação? Na população, em grande parte como resultado das campanhas de fake news disseminadas nas bolhas das redes sociais, e da falta de informação e clareza por parte do governo, aparece outra (falsa) discussão: a vacina deve ou não ser obrigatória?

Para indivíduos de bom senso, a resposta seria clara: “Sendo ou não obrigatória, a vacina será tomada por todos, a fim de desacelerar a pandemia de covid 19, reduzindo as mortes e internações, para que a sociedade brasileira possa gradualmente retomar suas atividades normais.” Esta deveria ser a reação de pessoas sensatas e racionais, que reconhecem a gravidade da sindemia.

O número de pessoas que são contra a obrigatoriedade da vacina sob pretexto da defesa da “liberdade individual”, está, ao que parece, diminuindo. Apesar disso, ainda é grande o número daqueles que – seja por que motivo for – dizem que não pretendem tomar a vacina. Não farei aqui, como outros já fizeram, comentários sobre a idade mental desses indivíduos; deixemos isto de lado.



É evidente que a liberdade individual não é absoluta para quem vive em sociedade. A questão da liberdade só não se coloca para alguém que, como Robinson Crusoé, viva completamente isolado. Neste caso, não faz o menor sentido falar em liberdade; não há necessidade. Liberdade em relação a quem ou o a quê? No famoso romance homônimo de Daniel Defoe, até a chegada do nativo batizado de “Sexta-Feira”, Robinson vivia sozinho; agia absolutamente de acordo com sua vontade, que era sua lei.

Assim, só faz sentido falar em liberdade quando se vive junto com outras pessoas, sujeito a regras e leis – o que é o caso de 99,9% da humanidade. A exceção talvez sejam Rômulo e Remo, os irmãos da obra Eneida do poeta romano Virgílio, dos quais o primeiro foi o fundador de Roma, que foram criados por uma loba. Também poderíamos incluir nesta curta lista o jovem Kaspar Hauser (1812-1833), que dizia ter crescido em uma masmorra, sem contato com humanos. Afora estes personagens míticos e misteriosos e alguns outros relatos de outras partes do globo, parece que a maioria de nós nasceu, cresceu e vive em sociedade.  

Os contratualistas como filósofos Hobbes e Locke, situam o origem do Estado num acordo feito entre os homens de um passado remoto. Para assegurar sua segurança, contando com a proteção do chefe, do rei ou de um governante do Estado, os homens abriram mão de parte da liberdade da qual gozavam, quando estavam sem governo (em estado selvagem, de liberdade total). Assim, em troca de proteção contra inimigos externos, contra ataques de vizinhos, os homens dispuseram-se a seguir certos regulamentos, certas leis – o que significava abrir mão de parte de sua liberdade. Não se sabe se a história humana transcorreu exatamente desta forma, mas fica evidente que, a partir do momento em que os homens decidem viver em grupos cada vez maiores, precisam abrir mão de parte de sua autonomia. A independência da qual desfrutavam grupos nômades de caçadores do Paleolítico e do Mesolítico, sem dúvida era muito maior daquela dos primeiros agricultores sumérios do Neolítico. Todavia, gradualmente, ao se formarem as aldeias com sua infraestrutura, seus grupos de defesa e seus estoques comunitários de alimentos, a renúncia à parte da liberdade terá valido a pena para a sobrevivência destas primeiras sociedades, sujeitas a rudimentos de leis ou acordos de convivência.


Voltemos agora ao século XXI, para nossa complexa sociedade, que existe baseada em leis já acordadas e ainda aprovadas por todos. Por um lado, pertencemos a uma coletividade onde todos têm o direito a receber os benefícios estabelecidos na Constituição brasileira; direito à vida digna, sob todos os aspectos. Por outro lado, alguns membros desta sociedade dizem que não se sentem compelidos a cumprirem sua parte do acordo social, o que hoje significa não querer tomar a vacina contra o vírus da Covid-19.

Receber os benefícios, mas não fazer os sacrifícios? Em sociedade teocráticas – muitos grupos antivacina têm forte orientação religiosa – a desobediência às normas do Estado significa uma desobediência às leis da religião. Paradoxalmente, tal tipo de revolta contra a vacina só é possível em um Estado laico e não “terrivelmente cristão”.

O impasse está colocado. A questão será, sem dúvida, resolvida de forma democrática. Mas é possível que em diversos lugares as próprias instituições cuidem do caso à sua forma, colocando barreiras aos não vacinados. Países instituirão barreiras sanitárias, empresas podem exigir que seus funcionários sejam todos vacinados; o mesmo valendo para cinemas, teatros, clubes, academias de ginástica, eventos, museus e outros locais de grande frequência de público. De uma forma ou de outra, a solução virá, já que quanto mais demorar para que se alcance um número ideal de imunizados – a imunidade de rebanho – mais tempo se estenderá a sindemia, com todas as suas implicações.

Mais uma pergunta que me ocorre agora, ao final do texto. Não sendo obrigatória a vacina, ocorrerá que muitas pessoas não a tomarão, alegando motivos diversos, frutos da ignorância e falta de informação e outros baseados em ideologias extremistas. O jornal Folha de São Paulo informa que cerca de 20% dos brasileiros afirmam que não querem ser imunizados. Neste caso, o que ocorrerá se alguém que ainda não pôde tomar a vacina, for comprovadamente infectado por alguém que se negou a tomá-la? Quem será responsabilizado? O Estado, que facultou a cada um a escolha de tomar a vacina ou não, colocando assim parte da população em risco? Ou, como geralmente acontece, o ônus recairá sobre o cidadão? 


(Imagens: pinturas de Phillip Bauknecht)

1 comments:

Mari Polachini - MoCAN disse...

Ricardo, suas ponderações sempre lúcidas e bem embasadas, proporcionam oportunidade valiosa de reflexão a todos nós.

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