"O tempo não é. Dá-Se o tempo." Martin Heidegger - O fim da filosofia ou a questão do pensamento
“Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito. Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes”. Monteiro Lobato, Cidades Mortas
Ao
longo da história da civilização, a maior parte da população mundial sempre
viveu no campo. As cidades foram o centro administrativo, comercial e
religioso, ao qual as populações se dirigiam para resolver pendências
jurídicas, comprar e vender víveres e utensílios de uso diário ou cultuar os
deuses. Daí a tradição, presente ainda hoje em diversas partes do planeta, das
festas religiosas e das feiras de produtos; quando camponeses, comerciantes,
peregrinos, artesãos, artistas de rua vêm aos centros urbanos para negociar,
rezar, se divertir e saber das novidades.
Esta
imagem típica da cidade permaneceu por quase toda a história da civilização,
desde os primeiros centros urbanos na antiga Suméria, passando pelas cidades espalhadas
nos grandes impérios e pelas cidades medievais europeias, até chegar ao começo
da industrialização, no final do século XVIII. No Brasil colonial e imperial
era comum que pessoas de posses – o que neste período histórico significava
dedicar-se à agricultura e pecuária, sendo dono de terras e de escravos –
morassem em suas propriedades rurais e mantivessem também uma residência
confortável na cidade. Caso típico de aglomerações urbanas como as antigas São
Paulo e Campinas, que recebiam grande número de visitantes – hoje poderíamos
dizer turistas – por ocasião das feiras e das festas religiosas. Passadas estas
datas, as cidades voltavam à sua morosidade habitual.
A
industrialização mudou completamente este quadro. Se já desde o final da Idade
Média, na Europa, havia uma tendência dos camponeses se deslocarem para as
cidades a fim de trabalharem nas oficinas de artesãos, com a chegada da
mecanização do processo de produção de bens este migração do campo para a
cidade se acelerou ainda mais. Na Inglaterra, por exemplo, a ocupação pelos
grandes proprietários das terras de cultivo comunitário usadas pelos camponeses
– as Leis de Cercamento – a partir do século XVI, e de forma mais acentuada no
século XVIII, fez com que ocorressem grandes fluxos populacionais para os
centros urbanos.
De
maneira semelhante, camponeses sem terra na Alemanha, França e Itália
mudaram-se para os centros urbanos industriais durante o século XIX, à procura
de melhores condições de vida, nem sempre encontradas. A industrialização dos
Estados Unidos, que também teve início no século XIX, foi bastante impulsionada
pela chegada de imigrantes europeus; muitos dos quais tinham conhecimentos
profissionais e já haviam sido operários em seus países de origem. O mesmo
ocorreu em parte com o desenvolvimento da indústria no Brasil, notadamente na
cidade de São Paulo, que recebeu grande número de imigrantes italianos e
espanhóis entre o final do século XIX e início do século XX, aumentando a população da cidade.
Há
cerca de cem anos, o número de pessoas que viviam em centros urbanos com mais
de 20 mil habitantes chegava aos 250 milhões; o equivalente a 13% da população
do planeta à época. Comparativamente em 2020, segundo estatísticas da
Organização das Nações Unidas (ONU), as aglomerações urbanas já acomodam 4,4 bilhões
de pessoas; o equivalente a 56,2% da população mundial naquele ano. A previsão
da instituição é que a população urbana mundial chegue a 68,4% dos habitantes
do mundo até 2050. Apesar das condições de melhoria no campo, com a facilidade
de transporte e comunicação e o relativo acesso a grande parte das comodidades
disponíveis nas cidades, a vida urbana continua atraindo grandes contingentes
populacionais, principalmente nos países pobres e em
desenvolvimento. Melhores condições de estudo, assistência médica especializada, trabalho melhor remunerado,
ascensão profissional e social, são os grandes atrativos para a maior parte dos
migrantes.
No
Brasil o processo de migração interna teve seu auge entre as décadas de 1940 e
1980, quando aproximadamente 40 milhões de brasileiros se deslocaram das
regiões rurais para os centros urbanos, principalmente do Nordeste para o
Sudeste, com destino às regiões metropolitanas – Rio de Janeiro, Belo Horizonte
e São Paulo – onde havia grande demanda de mão de obra nos setores de serviços
e na indústria (São Paulo e municípios adjacentes). Com isso o número de
cidades e seu crescimento se acelerou. Enquanto que a população total do país aumentou de 70,2 milhões de indivíduos em 1960 para 209,3 milhões em 2020, a
população urbana aumentou de 44% para 85% do total da população do país. Foi
durante estas seis décadas, que a gradual industrialização e o desenvolvimento
dos serviços públicos e benefícios sociais (saúde, leis trabalhistas, educação,
vacinação em massa, saneamento, habitação, etc.) permitiram um acentuado
incremento nas atividades e, consequentemente, no aumento do número de centros
urbanos no Brasil:
Número de Municípios Ano
641 1872
1.120 1900
1.219 1911
1.303 1920
1.365 1933
1.574 1940
1.890 1950
2.766 1960
3.953 1970
3.991 1980
4.601 1991
5.572 2010
Observa-se um acentuado crescimento no número de municipalidades a partir da década de 1950, quando se evidencia a industrialização e o processo das migrações internas.
O
processo de industrialização do país propiciou que se formasse uma classe média
urbana mais ampla, baseada nos empregos oferecidos pela indústria e pelo setor
de serviços, cujo número e variedade aumentou ao longo dos anos 1950-1980,
incorporando parte considerável dos brasileiros à economia capitalista urbana. O
aumento da população e da renda média fez com que as cidades de menor porte e
de importância secundária também se desenvolvessem, incorporadas à economia
através das comunicações, transportes, serviços bancários, comércio, modernização das
máquinas administrativas do Estado, chegada de indústrias, melhoria da
estrutura de ensino e de saúde, turismo e serviços relacionados.
A
afluxo das estruturas trazidas pelo desenvolvimento econômico-social também
provocou mudanças na paisagem urbana e na arquitetura das cidades. Prédios
históricos, localizados em zonas centrais são removidos para dar lugar a novas
construções, geralmente destinadas ao comércio (supermercados, grandes lojas,
estacionamentos); antigas residências são remodeladas ou derrubadas,
substituídas por outras construções com fins diversos (escritórios, pequenas
lojas, bares e restaurantes). Ruas são alargadas ou abertas, dependendo do grau
de urbanização anterior da cidade. Muitas vezes, estas intervenções urbanas são executadas com pouco ou nenhum planejamento, ocorrendo ao sabor dos interesses
econômicos do momento, da especulação imobiliária. Residências originárias,
localizadas em zona central da cidade e dispondo de grandes terrenos são
demolidas, tendo sua área loteada, dividida em terrenos menores, o mesmo
acontecendo com lotes ainda desocupados e cobertos por resquícios da vegetação
original da região onde se localiza a cidade.
O regime de modernização urbana – melhor seria dizer “de inserção na lógica capitalista de regiões até então relativamente afastadas ou alijadas deste processo” – teve início nas décadas de 1950 e 1960, estendendo-se até os dias atuais em algumas regiões, dependendo de fatores históricos, econômicos e geográficos. Os Planos Diretores, implantados em pouco mais da metade dos 5.572 municípios (dados de 2015) até o momento, têm tido pouca ou nenhuma influência no desenvolvimento urbano das cidades até agora, na maioria dos casos. Para quem alguma vez teve a oportunidade de, ao longo dos anos, acompanhar tal evolução, fica evidente que esta geralmente ocorre sem que se leve em conta a história da cidade e a memória sentimental de seus moradores. Tudo é levado de roldão, em nome de interesses econômicos imediatos, de grupos que controlam econômica e politicamente a cidade. Prédios, casas, árvores centenárias, ruas, praças, esquinas, becos e travessas; tudo é remodelado, destruído, descaracterizado, sem que se atente ao quanto tais paisagens significam para a, muitas vezes, singela história cultural e sentimental daquela cidade e de seus habitantes.
Fontes
tudoGEO
https://www.tudogeo.com.br/2020/08/06/evolucao-dos-municipios-brasileiros-1872-2010/
XXI: O século das cidades no Brasil (BNDES)
(Imagens: pinturas de Armand Guillaumin)
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