Céu canino

sábado, 31 de dezembro de 2022

 


"Adulo os que dão, ladro para os que não dão e mordo os que são maus"   -   Diógenes de Sinope (Diógenes, o Cínico)    


Dedicado aos meus irmãos e irmãs Molly, Jerry, Nina, Chiquita, Pupi, Pepê, Molly II e Lilly

 

 

Há muito a humanidade se indaga sobre o que nos acontece depois da morte. Tanto a nossa espécie, o homo sapiens, como os nossos primos, os homo neadertalensis, – os neandertais – também, de alguma maneira, se colocavam esta questão. Já foram encontrados túmulos feitos por neandertais há mais de cem mil anos. Ainda não sabemos, entretanto, se os nossos antepassados mais longínquos, o homo habilis e o homo erectus tinham alguma preocupação com o que se passava com seus semelhantes e consigo depois de morrerem, há um 1 ou 1,5 milhão de anos.

Sabemos que a maioria dos grupos humanos da pré-história tinham algum tipo de crença sobre uma vida além túmulo. Os indígenas americanos, os povos indo-europeus, os povos africanos e os orientais; todos desenvolveram relatos, mais ou menos elaborados, de locais onde continuariam a viver depois de mortos. Alguns, como os antigos egípcios, imaginaram um outro mundo bastante complexo, onde as pessoas continuavam a desempenhar as mesmas funções sociais que tinham durante a vida desse lado. Os hindus acreditavam na existência de mundos diferentes para deuses, demônios e humanos, divididos de acordo com a conduta na vida anterior – o hinduísmo, assim como o budismo, crê na sucessão de várias vidas. Já os antigos babilônios, judeus, gregos e romanos, imaginavam o além-túmulo como um local escuro, onde as almas se reduziam a espectros, que aos poucos desapareceriam.

Foi aproximadamente entre os séculos VII e III AEC que a cultura humana passou por uma transformação, que influenciaria todo o seu posterior desenvolvimento. O filósofo alemão Karl Jaspers (1883-1969) chamou este período de Era Axial, caracterizado por uma nova visão de mundo, notadamente nas civilizações mediterrâneas, na Índia e na China. É o período do surgimento e desenvolvimento da filosofia entre os gregos, do aparecimento dos profetas hebreus e suas críticas contra a sociedade judaica da época. Na Índia, surgem diversas correntes de pensamento filosófico e religioso, que dariam origem a uma reformulação da religião hindu – a redação dos livros religiosos dos Upanishads e a estruturação do bramanismo – e o surgimento do jainismo e do budismo. A China aprofundaria e desenvolveria antigas crenças, desenvolvendo as ideias que posteriormente ficaram conhecidas como o taoísmo e o confucionismo. A Era Axial traria aos humanos destas culturas um novo tipo de consciência, que posteriormente seria difundida pelo resto do planeta.

Na Pérsia, atual Irã, o mítico profeta Zoroastro (ou um grupo de religiosos que mais tarde foi identificado sob este nome) criaria o zoroastrismo, elaborando conceitos como o Deus bom, Ahura Masda e do Deus mau, Ahriman, que estariam em constante luta. No final dos tempos, segundo esta crença, haveria uma batalha entre as duas divindades, da qual deveriam participar os humanos. O conflito seria seguido por um juízo final, durante o qual seriam separados os aliados de Ahura Masda, os bons, e os de Ahriman, os maus. A estes últimos estaria reservada uma condenação eterna em um fogo inextinguível. Anjos, demônios e até a vinda de um messias ao final dos tempos, segundo alguns autores, também faziam parte destes relatos. A religião de Zoroastro influenciou a religião judaica, quando do cativeiro das elites judaicas na Babilônia (587 AEC). Posteriormente, o nascente cristianismo incorporou grande parte desta mitologia e a transmitiu também ao islamismo.       

Todas essas ideias, de diversas fontes, alteradas e adaptadas às tradições de diversos povos ao longo dos milênios, contribuíram para formar as crenças sobre o além, o “outro mundo” das religiões dominantes, assim como de interpretações de religiões menores, seitas e pequenos grupos filosófico-religiosos. Uma coisa em especial chama a atenção quanto às visões do além, compartilhadas pela maioria dos credos religiosos. Em todos os relatos ocorre sempre a situação em que a alma, o espírito ou princípio vital (seja lá como queiram chama-lo) é colocada em local ou situação em que deve expiar seus erros, suas transgressões, seus pecados, suas ilusões e apegos (dependendo da visão de cada religião particular).

A literatura religiosa e mística é bastante profusa em descrições de tais ambientes. É de causar espanto o quanto autores religiosos de todos os tipos e de todas as religiões e seitas, se deram ao trabalho de elaborar as mais terríveis, estranhas, desumanas, grotescas, repulsivas e sádicas descrições dos suplícios aos quais eram submetidos as desgraçadas criaturas que findavam nestas infernais paragens. Além de todo tipo de suplício a que eram submetidos estas almas – sempre com o forte argumento de que eram grandes pecadores contra uma divindade ou com o objetivo de expiar suas faltas – ainda precisavam compartilhar a companhia de todo tipo de criaturas monstruosas que habitavam tais locais de tortura, e cuja função era aplicar eficientemente os flagelos, passageiros ou eternos, – dependendo da religião a que pertencesse cada desgraçado. Fogos, chamas, gelo, lamaçais, pântanos, rios, completa escuridão, frio, isolamento total; as condições são as mais diferentes e apavorantes, dependendo do tipo das transgressões, pecados ou crimes cometidos pelo infeliz durante sua vida.

Basta consultar os livros religiosos de diversas religiões de quase todo o mundo; do taoísmo ao bramanismo, passando pelo islamismo e, especialmente, o cristianismo, que talvez seja a religião que mais se esmerou nestas descrições escabrosas e aterrorizantes. Um exemplo clássico, apesar de não ser caracteristicamente um relato religioso, é a Divina Comédia, do escritor e poeta florentino Dante Alighieri. Nessa obra clássica o autor conseguiu fazer uma síntese do que a teologia da igreja católica do século XIII professava como sendo a estrutura do mundo do além – se, no entanto, a maioria dos crentes acreditava em tais relatos já é outra discussão. Uma louvável exceção que encontramos foi na religião dos indígenas americanos do povo Pueblo, descrita pela antropóloga americana Elsie Clews Parsons, que escreve: “(...) a ideia do povo Pueblo da vida depois da morte como uma mera continuação desta vida é incompatível com os dogmas do inferno ou céu. Nesta vida terrestre os Espíritos (deuses) não premiam ou punem, por que então o fariam depois da morte?”

Um fato interessante, assinalado por vários estudiosos das religiões e por historiadores, é que enquanto as descrições dos ambientes, das torturas e dos torturadores das regiões infernais são bastante detalhados, diversificados, elaborados e, por vezes, até muito inventivos, as descrições do céu, do paraíso, do seio de Deus, da morada dos deuses (ou como queiram chamá-lo) são bastante frugais. Existem poucos relatos sobre o meio celeste, seus habitantes, suas atividades, se comparadas aos milhares de volumes que nos relatam as atividades diárias no mundo de baixo. Enquanto que são bastante comuns as descrições de místicos e santos em suas viagens (físicas ou em espírito) aos reinos infernais desde o começo do cristianismo, rareiam as visões do céu espiritual, que geralmente são de períodos históricos mais recentes, como as de São João Bosco (1815-1888) e Santa Faustina Kowlaska (1905-1938), entre alguns outros. Parece que com relação às atividades no céu, seus habitantes e sua dinâmica, não há muito que contar. Discursos sobre punições e sofrimentos são mais ameaçadores e efetivos do que relatos sobre o céu, onde “(...) uma multidão de pessoas que se encontrava naqueles jardins e se regozijava alegre e contente. Uns tocavam, outros cantavam”, segundo São João Bosco. 

Outro dia, caminhando e passando na frente de uma casa, revi um cão que já conheço de vista há muito tempo. Vira-lata, de cor caramelo e semblante simpático, sempre abana alegre o rabo quando passo pela rua. Tive e ainda tenho cães. Pra mim não são os melhores amigos do homem; são nossos melhores irmãos na vida. Arthur Schopenhauer (1788-1860), talvez o filósofo mais pessimista da tradição filosófica moderna ocidental, julgava o caráter de uma pessoa por sua capacidade de ser bom com os animais. Nem sempre simpático e receptivo aos seus contemporâneos, Schopenhauer teve uma série de cães da raça poodle, aos quais sempre dava o nome de Atman, significando “alma” em sânscrito antigo. Ao morrer, deixou recursos suficientes para que seu amigo canino pudesse viver tranquilamente pelo resto de sua vida.

Quem já teve ou tem um cão sabe como eles são amorosos e fiéis amigos.  Não julgam, não reclamam, não ficam ressentidos e não nos abandonam; estão sempre conosco. Os sem-teto e os catadores, que com seus 4, 5, 6 ou mais cães percorrem com suas carroças as ruas de nossas cidades sabem bem disso. A nossa longa convivência, de quase 30 mil anos, com estes animais, fez com nos afeiçoássemos cada vez mais a eles e eles a nós. Foram os primeiros animais, que domesticados, passaram a conviver conosco quando ainda éramos caçadores, não plantávamos e não vivíamos em agrupamentos humanos fixos – as cidades.

Não acredito no inferno; trata-se de uma invenção para assustar, dominar e manipular as pessoas, criada em períodos históricos mais violentos do que o nosso – talvez isso explique um pouco o sadismo e a total desumanidade das imagens. Quanto ao céu, é pouco provável que exista. Mas caso exista, não deve ser habitado por deuses, anjos, arcanjos, santos, mártires, almas e coisas do tipo. O céu é dos cães. Lá encontraremos nossos antigos amigos de quatro patas. Todos aqueles que tivemos e que nos acompanharam por parte de nossa vida. Lá, com eles, voltaremos a correr e a rolar. Jogaremos uma bola e eles correrão contentes para pegá-la. Nos lamberão o rosto e dirão (sim, no céu os cães falam!): “fico feliz em revê-lo aqui, meu irmão!”  


(Imagens: pinturas de Fritz Bleyel)

0 comments:

Postar um comentário