“Todas essas filosofias têm uma fraqueza em comum. Elas imaginam que a
vida possa ser organizada pela razão humana. Ou que a mente possa criar um modo
de vida que proteja contra as perdas, ou que ela possa controlar as emoções de
modo que se possa suportar qualquer perda. Na verdade, nem a maneira como
vivemos nem as emoções que sentimos podem ser controladas dessa forma. Nossas
vidas são modeladas pelo acaso e nossas emoções, pelo nosso corpo. Uma grande
parte da vida humana — e boa parte da filosofia — é uma tentativa de nos desviar
desse fato.” - John Gray
- Filosofia Felina
Minimalismo
tornou-se, de certo modo, uma palavra da moda. Nas mídias, nos comerciais de
produtos sofisticados, filmes e documentários, o termo aparece constantemente.
Mesmo assim, não se trata de uma campanha publicitária organizada, coordenada
por grupos econômicos. Aparece apenas aqui e ali, mencionado por designers de produtos, por pessoas
ligadas a novos hábitos de consumo, à decoração, à moda e às causas ambientais.
O minimalismo também não se refere somente à inédita maneira de vender produtos
e serviços, com um apelo de “simplicidade” e de “ambientalmente correto”. O
minimalismo tem muito mais a ver com uma nova e diferente maneira de interagir
com o mundo do consumo, de um novo posicionamento em relação à aquisição de
bens e serviços.
Como
o próprio substantivo diz, minimalismo é um sistema, uma técnica que defende a
redução ao mínimo do que compõe algo, conforme o Dicionário online Priberam. Também poderia se definir o minimalismo
como um estilo (de produto, de consumo, de arte), no qual os mínimos elementos
são usados para criar um efeito máximo. O supérfluo, o adicional, aquilo que
não tem um função específica e definida, o que apenas é decorativo sem
acrescentar; tudo isso é eliminado na ideia do minimalismo. A expressão tomou
um sentido muito amplo e já não se limita apenas à maneira como ou o que as
pessoas consomem.
A
filosofia do minimalismo, se assim podemos chamá-la, surgiu originalmente nas
artes e, notadamente na arquitetura, entre as décadas de 1960 e 1970, nos
Estados Unidos. A ideia principal dos primeiros arquitetos depois chamados de “minimalistas”,
era a construção de imóveis – principalmente prédios de apartamentos – com
formas retas e simples, usando bastante vidro e estruturas metálicas. “Menos é
mais”, lema do arquiteto americano de origem alemã Ludwig Mies van der Rohe
(1886-1969), criador de edifícios de extrema simplicidade e funcionalidade, foi
uma reação ao caos arquitetônico, resultado do acúmulo de estilos de diversas
épocas nas cidades americanas. Outro inovador nas formas arquitetônicas
originais que bastante influenciaram o movimento minimalistas foi o arquiteto
americano Richard Buckminster Fuller (1895-1983), que adotou a ideia de “fazer
mais com menos”.
O
minimalismo também foi incorporado às artes em geral. Nas artes visuais o
estilo comumente é classificado como “arte minimalista” (minimal art) ou “arte literalista” (literalist art), entre outros termos utilizados. O movimento,
segundo os especialistas, surgiu em Nova York, no início dos anos 1960,
caracterizado pelas abstrações geométricas. A origem das formas utilizadas
neste tipo de arte podem ser identificadas em parte na geometria simples do
movimento Bauhaus, surgido na Alemanha após a 1ª Guerra Mundial, e que também
inspirou grande parte da arquitetura moderna. Outras influências foram as obras
de pintores como Kazimir Malevich (1879-1935) e Piet Mondrian (1872-1944), além de outros artistas associados com
a escola pictórica De Stijl (O
estilo) e o construtivismo russo (1917-1934). Sob muitos aspectos a arte
minimalista sofreu influência de grande parte do que se produziu nas artes
entre os anos 1910 e 1930, com artistas como Picasso, Duchamp, Morandi e
outros.
A
literatura minimalista é caracterizada pela economia de palavras, textos “limpos”,
com poucos adjetivos, nos quais o leitor é convocado a ter um papel “na escolha
dos lados”. As novelas e peças teatrais de Samuel Beckett (1906-1989), os
poemas e contos de Raymond Carver (1938-1988), John Barth (1930) e Charles
Bukowski (1920-1994), são exemplos de autores minimalistas na literatura. Os filmes
de Robert Bresson (1901-1999) e os desenhos de automóveis de Colin Chapman
(1928-1982) também se incluem nesta linha.
Se
muitas metrópoles americanas ainda estavam dominadas por construções dos mais diversos
estilos arquitetônicos levando, como reação, ao surgimento de uma arquitetura
minimalista, na área do consumo a sociedade norte-americana também começava a reagir.
No pós-guerra dos anos 1950 os Estados Unidos haviam se transformado na mais
próspera e economicamente pujante sociedade da história humana, até então. A
indústria ampliava sua produção e sua gama de produtos; casas, carros,
eletrodomésticos, alimentos, vestuários, brinquedos, ferramentas, máquinas...
Eram milhões de novos itens à disposição dos consumidores ávidos e com recursos
para consumir; corria a época do pleno emprego, o começo dos mais tarde
conhecidos como os “30 anos dourados” do capitalismo.
Os
primeiros opositores deste modo de vida começaram a se manifestar nos anos
1950. Os beatniks, movimento formado preponderantemente
por jovens intelectuais – escritores, poetas, atores e músicos – eram os
principais integrantes deste movimento. Segundo o site Psicanálise Clínica “em linhas gerais, ‘beat’ significa ritmo ou
batida. Dessa forma, o nome teria tudo a ver com a influência do jazz nessa
geração. Contudo, um dos seus representantes, Herbert
Huncke (1915-1996), utilizava o termo tendo em vista o seu sentido
de ‘cansado’, dando a entender o seu cansaço da vida”. A definição dada por
este escritor, é um exemplo do enfado com o ritmo de vida consumista na
sociedade americanos daqueles anos. Vale acrescentar que o movimento beatnik fora bastante influenciado pelas
filosofias orientais, especialmente o zen-budismo, que começava a se espalhar
nos meios intelectuais americanos da época, e defendia a austeridade e o
comedimento. A pergunta que fica neste trecho é se o “cansaço da vida”, o
tédio, podem induzir as pessoas a aumentarem seu consumo, como que para
preencher o vazio de suas vidas. Sobre o tédio, escreve o filósofo francês do
século XVII, Blaise Pascal (1623-1662):
“Nada é mais insuportável ao homem do que um
repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente
então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua
impotência, seu vazio. Incontinenti subirá do fundo de sua alma o tédio, o
negrume, a tristeza, a pena, o despeito, o desespero. (Pascal, 131, pág.
74)
Outro
movimento cultural e social que absorveu algo da filosofia do movimento beatnik, especialmente com relação à sua
crítica da cultura do consumismo, foi o movimento hippie. Surgidos na Califórnia no início dos anos 1960, os hippies, como eram chamados, viviam em
um país agitado por outros movimentos sociais: movimento negro, opositores da
Guerra do Vietnã, estudantes de esquerda, movimento da contracultura; todos
estes confluindo numa forte crítica ao modo de vida americano (American way of
life), cujo principal aspecto era o consumismo exacerbado de uma imensa classe
média.
Não
iremos nos alongar muito neste aspecto, mas vale mencionar que do movimento hippie (que ficou famoso com o lema make love not war – faça o amor, não a
guerra) se originaram outros aspectos culturais da sociedade americana, como a
popularização do uso das drogas psicodélicas, o rock e os seus festivais (Monterrey
Pop, 1967 e Woodstock, 1969), a popularização das religiões orientais (origem
do movimento new age), o movimento da
libertação sexual, as bases do movimento ambientalista, a vida em comunidades e
a crítica ao consumismo material, entre outros. Todas práticas e ideias
rapidamente se espalharam pelo mundo, fortalecendo – paradoxalmente, no entanto
– aquilo que mais criticavam: a sociedade do consumo.
Estas
ideias e práticas podem ser consideradas parte da genealogia do que hoje
conhecemos como sendo o minimalismo. A forte crítica do consumismo dos movimentos
dos anos 1960 e 1970, transformou-se em sua desaprovação mitigada, através de uma
atenuação do consumo, já que sua eliminação seria impraticável. Segundo o
comunicador americano Anthony Ongano, minimalismo é a eliminação do
desnecessário, mantendo aquilo que se considera ser essencial. Eliminação de
compromissos, objetos, atividades, que cancelados vão ajuda-lo “a fazer mais
espaço em sua vida”, segundo Ogano.
O
escritor americano Joshua Becker, autor do livro Becoming Minimalist (Tornando-se minimalista) parece ser ainda mais
otimista em seus comentários: “Minimalismo é a promoção intencional das coisas
que tragam alegria e remoção daquelas que não trazem”.
Em
seu estilo de vida, os minimalistas procuram se utilizar de materiais e objetos
essenciais, sem excessos e desperdício. Produtos facilmente disponíveis,
baratos e, caso possível, naturais – o minimalista também valoriza o
vegetarianismo. O estilo de vida pode ser resumido no que escreve o site The Minimalist (O Minimalista): “Minimalismo
é uma ferramenta para tirar você dos excessos da vida e focar no que é
importante – assim você poderá encontrar alegria, realização e liberdade.” Para
muitas pessoas, principalmente nas sociedades afluentes, o minimalismo se
tornou uma verdadeira filosofia de vida. O site The Minimalist, relaciona alguns benefícios que, segundo seus
autores, foram obtidos com a prática: eliminar descontentamento; recuperar
tempo; viver o momento; perseguir as paixões; descobrir sua missão;
experimentar real liberdade; criar mais, consumir menos; focar na saúde;
crescer como indivíduo; contribuir com os outros; livrar-se de coisas em
excesso; descobrir sentidos na vida.
Outro
aspecto a influenciar o minimalismo é a crescente importância da questão
ambiental. A economia é um ciclo aberto, como diz um ramo da moderna ciência
econômica, a economia ecológica. Por se utilizar de todo tipo de recurso da
natureza, não é possível imaginar que as atividades econômicas possam ser
mantidas como que funcionando numa bolha, trazendo-se para dentro as matérias
primas e os insumos, e expelindo-se os resíduos, sem que isso afete o planeta.
A área de influência da humanidade já não é mais a de 2 mil ou até 300 anos
atrás, quando nossos antepassados interferiam em algumas partes do planeta;
como células dentro de um grande corpo que era a Terra da época. Hoje, nossa
civilização mundial é como uma grande célula, que ocupa praticamente todo o
corpo, a Terra, sugando seus recursos. Algo, de certa maneira, monstruoso. Epicuro
(341 - 270 AEC), filósofo da Antiga Grécia, pode ter seu texto abaixo relacionado com este
impulso consumista, no qual se baseia nosso sistema econômico:
“Também consideramos o comedimento como um
grande bem, não a fim de que, em todas as condições, fiquemos satisfeitos com
pouco, mas sim para que nos contentemos com pouco quando não possuímos muito.
Chegamos a essa conclusão pela convicção de que o homem que mais goza de
faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita; de que tudo que
é natural, é fácil de conseguir (sendo, porém, tudo quanto é insensato, de
difícil obtenção) e de que finalmente, os gozos singelos oferecem tanto prazer
quanto o maior luxo, contanto que não apareça o sentimento doloroso de
privação. Com isso queremos dizer que pão e água somente, quando antes nos
faltaram, podem proporcionar-nos o mais sublime prazer. Além disso, o fato de
acostumarmo-nos a um modo de vida simples, não faustoso, melhora a saúde,
tornando o homem apto a realizar, infatigavelmente, aquilo que a vida dele
exige, permitindo-lhe sentir muito mais os prazeres intensos que a vida de vez
em quando oferece e amparando seu destemor perante o acaso.” (Epicuro,
Carta a Meneceu, pág. 41)
Assim,
é preciso diminuir o uso dos recursos naturais do planeta; algo que só poderá
ser alcançado reduzindo-se drasticamente o consumo. Perguntar-se se realmente
precisamos de determinado produto ou serviço: “Isso é realmente necessário,
preciso mesmo disso?” A indústria precisará, cada vez mais, produzir mercadorias
mais duráveis (abolindo a obsolescência programada), reduzir a quantidade de
versões de um mesmo produto, que nada acrescentam (apenas “mais do mesmo”). O
consumidor deverá reutilizar, ao invés de comprar algo novo, como já se faz nos
mercados de produtos de segunda mão (produtos elétrico-eletrônicos, roupas,
livros, equipamentos diversos, veículos, móveis, etc.). É necessário fortalecer
uma indústria da reciclagem, aproveitando tudo aquilo que pode ser utilizado em
outros equipamentos ou produtos. Este é o principal aspecto do minimalismo, no
que se refere ao consumo.
A
redução do consumo também tem a ver com a propaganda de produtos. As mídias bombardeiam
o cidadão com todo tipo de anúncio de propaganda, apresentando mercadorias que
em 90% são cópias de outras e cuja aquisição de nada acrescenta ao consumidor;
gasto desnecessário. Exemplos: o mais “moderno” e novo celular, a “mais recente”
moda em vestuários, eletrodomésticos com funções desnecessárias, “inovadores”
modelos de automóveis a cada ano, etc., etc., a lista de aparentes “novidades
imperdíveis” é imensa. A ideia é despertar o desejo do consumidor, convencê-lo
de que possuindo o produto, terá algum tipo de melhora, de mudança positiva em
sua vida. Não se vende mais produtos; vendem-se sensações, sentimentos, status, ideias ocas e ilusão, muita
ilusão.
Mas
a lógica do capitalismo funciona desta maneira. E nesta “armadilha” surge o
maior argumento: a facilidade de financiamento. Você não precisa ter recursos
para comprar o produto; basta fazer um financiamento, um crediário. Desta
maneira é que o sistema econômico, como atualmente está estruturado
(capitalismo financeiro) mais ganha dinheiro. Produtos caros, juros altos. Todos
ganham: fabricantes, revendedores, bancos – só não ganha o consumidor, este só
leva a mercadoria.
A ideia
do minimalismo influenciando as gerações mais novas é bastante positiva. Nas
economias desenvolvidas, onde a população em geral já tem um padrão de vida
razoável há pelo menos duas ou três gerações (pós- Segunda Guerra), onde as
condições de moradia estão garantidas para toda a população, o trabalho ou a
Previdência garantem a renda e a subsistência da família; onde Ensino e Saúde
estão assegurados em patamares aceitáveis, é possível falar em minimalismo. É aceitável
abrir mão da posse de um veículo particular, já que o transporte coletivo está
disponível para atender o cidadão em suas necessidades. Muitos jovens e adultos
dessas sociedades perderam, em grande parte, o entusiasmo pelo consumo exacerbado,
pelo acúmulo de bens, porque sua posse não é mais uma necessidade; a maioria destes
produtos já não diferenciam mais a pessoa, não trazem mais status numa sociedade mais igualitária.
Coisa
diferente, porém, ocorre nas sociedades dos países subdesenvolvidos. A
propaganda, a baixa qualidade de vida e a falta de oportunidades em atingir melhor
posição social, fazem com que para muitas pessoas – principalmente os jovens –
a posse de certos bens de consumo, como roupas de marca, celulares,
equipamentos e veículos, torne-se fator de destaque social, de maior
aceitabilidade dentro de seus grupos. E é exatamente nessas sociedades que o
consumismo é incentivado por toda uma estrutura empresarial e financeira, e
sugerido como “alternativa” e “saída” da situação de privação em que vive a
maior parte da população. Cerca de 60% da população brasileira não têm esgoto
doméstico tratado, mas 90% têm celular. Assim, é mais importante para os “operadores
do sistema”, que o cidadão pense na nova TV de 49 polegadas que vai financiar,
do que na rua sem calçamento ou sem esgoto, no emprego precário, no transporte
coletivo ruim ou no posto de saúde sem médico.
O minimalismo permanece sendo uma opção de viver e, especificamente, de consumir, que interessa e é praticável por aqueles que têm acesso a tal gama de serviços e produtos, de modo que conscientemente possam abrir mão daqueles que consideram desnecessários. Ou seja, aqueles que vivem em sociedades afluentes ou pertencem aos grupos privilegiados dos países subdesenvolvidos. Lembrando sempre que mesmo o minimalismo é apenas um remendo, já que o que precisa ser mudado é o próprio sistema econômico e seu funcionamento.
Fontes consultadas
Urbanize.
Disponível em <https://urbansize.co.uk/blogs/interior-inspiration-for-small-space/minimalism-the-bare-essentials-for-a-small-space?utm_campaign=gs-2020-06-19&utm_source=google&utm_medium=smart_campaign>
Acesso em 22/11/2022.
Moviment
beatnik. Disponível em <https://www.psicanaliseclinica.com/movimento-beatnik/>
Acesso em 25/11/2022.
Pascal,
Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril S. A. Cultura Industrial: 1973, 280 pgs.
Movimento
hippie. Disponível em <https://www.stoodi.com.br/blog/historia/movimento-hippie/>.
Acesso em 25/11/2022.
The
Minimalists. Disponível em <https://www.theminimalists.com/minimalism/>
Acesso em 21/11/2022.
Minimalism
(Wikipedia). Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Minimalism>
Acesso em 22/11/2022.
Tate.
Disponível em <https://www.tate.org.uk/art/art-terms/m/minimalism>
Acesso em 22/11/2022.
Epicuro.
Martin Claret. São Paulo: 2005, 140 pgs.
Antimaximalist.
Disponível em <https://antimaximalist.com/minimalism-philosophy/>
Acesso em 26/11/2022.
(Imagens: pinturas de Al Held)
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