O minimalismo

sábado, 3 de dezembro de 2022

 

“Todas essas filosofias têm uma fraqueza em comum. Elas imaginam que a vida possa ser organizada pela razão humana. Ou que a mente possa criar um modo de vida que proteja contra as perdas, ou que ela possa controlar as emoções de modo que se possa suportar qualquer perda. Na verdade, nem a maneira como vivemos nem as emoções que sentimos podem ser controladas dessa forma. Nossas vidas são modeladas pelo acaso e nossas emoções, pelo nosso corpo. Uma grande parte da vida humana — e boa parte da filosofia — é uma tentativa de nos desviar desse fato.”   -   John Gray   -   Filosofia Felina



Minimalismo tornou-se, de certo modo, uma palavra da moda. Nas mídias, nos comerciais de produtos sofisticados, filmes e documentários, o termo aparece constantemente. Mesmo assim, não se trata de uma campanha publicitária organizada, coordenada por grupos econômicos. Aparece apenas aqui e ali, mencionado por designers de produtos, por pessoas ligadas a novos hábitos de consumo, à decoração, à moda e às causas ambientais. O minimalismo também não se refere somente à inédita maneira de vender produtos e serviços, com um apelo de “simplicidade” e de “ambientalmente correto”. O minimalismo tem muito mais a ver com uma nova e diferente maneira de interagir com o mundo do consumo, de um novo posicionamento em relação à aquisição de bens e serviços.

Como o próprio substantivo diz, minimalismo é um sistema, uma técnica que defende a redução ao mínimo do que compõe algo, conforme o Dicionário online Priberam. Também poderia se definir o minimalismo como um estilo (de produto, de consumo, de arte), no qual os mínimos elementos são usados para criar um efeito máximo. O supérfluo, o adicional, aquilo que não tem um função específica e definida, o que apenas é decorativo sem acrescentar; tudo isso é eliminado na ideia do minimalismo. A expressão tomou um sentido muito amplo e já não se limita apenas à maneira como ou o que as pessoas consomem.

A filosofia do minimalismo, se assim podemos chamá-la, surgiu originalmente nas artes e, notadamente na arquitetura, entre as décadas de 1960 e 1970, nos Estados Unidos. A ideia principal dos primeiros arquitetos depois chamados de “minimalistas”, era a construção de imóveis – principalmente prédios de apartamentos – com formas retas e simples, usando bastante vidro e estruturas metálicas. “Menos é mais”, lema do arquiteto americano de origem alemã Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969), criador de edifícios de extrema simplicidade e funcionalidade, foi uma reação ao caos arquitetônico, resultado do acúmulo de estilos de diversas épocas nas cidades americanas. Outro inovador nas formas arquitetônicas originais que bastante influenciaram o movimento minimalistas foi o arquiteto americano Richard Buckminster Fuller (1895-1983), que adotou a ideia de “fazer mais com menos”.

O minimalismo também foi incorporado às artes em geral. Nas artes visuais o estilo comumente é classificado como “arte minimalista” (minimal art) ou “arte literalista” (literalist art), entre outros termos utilizados. O movimento, segundo os especialistas, surgiu em Nova York, no início dos anos 1960, caracterizado pelas abstrações geométricas. A origem das formas utilizadas neste tipo de arte podem ser identificadas em parte na geometria simples do movimento Bauhaus, surgido na Alemanha após a 1ª Guerra Mundial, e que também inspirou grande parte da arquitetura moderna. Outras influências foram as obras de pintores como Kazimir Malevich (1879-1935) e Piet Mondrian (1872-1944), além de outros artistas associados com a escola pictórica De Stijl (O estilo) e o construtivismo russo (1917-1934). Sob muitos aspectos a arte minimalista sofreu influência de grande parte do que se produziu nas artes entre os anos 1910 e 1930, com artistas como Picasso, Duchamp, Morandi e outros.

A literatura minimalista é caracterizada pela economia de palavras, textos “limpos”, com poucos adjetivos, nos quais o leitor é convocado a ter um papel “na escolha dos lados”. As novelas e peças teatrais de Samuel Beckett (1906-1989), os poemas e contos de Raymond Carver (1938-1988), John Barth (1930) e Charles Bukowski (1920-1994), são exemplos de autores minimalistas na literatura. Os filmes de Robert Bresson (1901-1999) e os desenhos de automóveis de Colin Chapman (1928-1982) também se incluem nesta linha.  

Se muitas metrópoles americanas ainda estavam dominadas por construções dos mais diversos estilos arquitetônicos levando, como reação, ao surgimento de uma arquitetura minimalista, na área do consumo a sociedade norte-americana também começava a reagir. No pós-guerra dos anos 1950 os Estados Unidos haviam se transformado na mais próspera e economicamente pujante sociedade da história humana, até então. A indústria ampliava sua produção e sua gama de produtos; casas, carros, eletrodomésticos, alimentos, vestuários, brinquedos, ferramentas, máquinas... Eram milhões de novos itens à disposição dos consumidores ávidos e com recursos para consumir; corria a época do pleno emprego, o começo dos mais tarde conhecidos como os “30 anos dourados” do capitalismo. 

Os primeiros opositores deste modo de vida começaram a se manifestar nos anos 1950. Os beatniks, movimento formado preponderantemente por jovens intelectuais – escritores, poetas, atores e músicos – eram os principais integrantes deste movimento. Segundo o site Psicanálise Clínica “em linhas gerais, ‘beat’ significa ritmo ou batida. Dessa forma, o nome teria tudo a ver com a influência do jazz nessa geração. Contudo, um dos seus representantes, Herbert Huncke (1915-1996), utilizava o termo tendo em vista o seu sentido de ‘cansado’, dando a entender o seu cansaço da vida”. A definição dada por este escritor, é um exemplo do enfado com o ritmo de vida consumista na sociedade americanos daqueles anos. Vale acrescentar que o movimento beatnik fora bastante influenciado pelas filosofias orientais, especialmente o zen-budismo, que começava a se espalhar nos meios intelectuais americanos da época, e defendia a austeridade e o comedimento. A pergunta que fica neste trecho é se o “cansaço da vida”, o tédio, podem induzir as pessoas a aumentarem seu consumo, como que para preencher o vazio de suas vidas. Sobre o tédio, escreve o filósofo francês do século XVII, Blaise Pascal (1623-1662):

Nada é mais insuportável ao homem do que um repouso total, sem paixões, sem negócios, sem distrações, sem atividade. Sente então seu nada, seu abandono, sua insuficiência, sua dependência, sua impotência, seu vazio. Incontinenti subirá do fundo de sua alma o tédio, o negrume, a tristeza, a pena, o despeito, o desespero. (Pascal, 131, pág. 74)

Outro movimento cultural e social que absorveu algo da filosofia do movimento beatnik, especialmente com relação à sua crítica da cultura do consumismo, foi o movimento hippie. Surgidos na Califórnia no início dos anos 1960, os hippies, como eram chamados, viviam em um país agitado por outros movimentos sociais: movimento negro, opositores da Guerra do Vietnã, estudantes de esquerda, movimento da contracultura; todos estes confluindo numa forte crítica ao modo de vida americano (American way of life), cujo principal aspecto era o consumismo exacerbado de uma imensa classe média.

Não iremos nos alongar muito neste aspecto, mas vale mencionar que do movimento hippie (que ficou famoso com o lema make love not war – faça o amor, não a guerra) se originaram outros aspectos culturais da sociedade americana, como a popularização do uso das drogas psicodélicas, o rock e os seus festivais (Monterrey Pop, 1967 e Woodstock, 1969), a popularização das religiões orientais (origem do movimento new age), o movimento da libertação sexual, as bases do movimento ambientalista, a vida em comunidades e a crítica ao consumismo material, entre outros. Todas práticas e ideias rapidamente se espalharam pelo mundo, fortalecendo – paradoxalmente, no entanto – aquilo que mais criticavam: a sociedade do consumo.

Estas ideias e práticas podem ser consideradas parte da genealogia do que hoje conhecemos como sendo o minimalismo. A forte crítica do consumismo dos movimentos dos anos 1960 e 1970, transformou-se em sua desaprovação mitigada, através de uma atenuação do consumo, já que sua eliminação seria impraticável. Segundo o comunicador americano Anthony Ongano, minimalismo é a eliminação do desnecessário, mantendo aquilo que se considera ser essencial. Eliminação de compromissos, objetos, atividades, que cancelados vão ajuda-lo “a fazer mais espaço em sua vida”, segundo Ogano.

O escritor americano Joshua Becker, autor do livro Becoming Minimalist (Tornando-se minimalista) parece ser ainda mais otimista em seus comentários: “Minimalismo é a promoção intencional das coisas que tragam alegria e remoção daquelas que não trazem”.

Em seu estilo de vida, os minimalistas procuram se utilizar de materiais e objetos essenciais, sem excessos e desperdício. Produtos facilmente disponíveis, baratos e, caso possível, naturais – o minimalista também valoriza o vegetarianismo. O estilo de vida pode ser resumido no que escreve o site The Minimalist (O Minimalista): “Minimalismo é uma ferramenta para tirar você dos excessos da vida e focar no que é importante – assim você poderá encontrar alegria, realização e liberdade.” Para muitas pessoas, principalmente nas sociedades afluentes, o minimalismo se tornou uma verdadeira filosofia de vida. O site The Minimalist, relaciona alguns benefícios que, segundo seus autores, foram obtidos com a prática: eliminar descontentamento; recuperar tempo; viver o momento; perseguir as paixões; descobrir sua missão; experimentar real liberdade; criar mais, consumir menos; focar na saúde; crescer como indivíduo; contribuir com os outros; livrar-se de coisas em excesso; descobrir sentidos na vida.  

Outro aspecto a influenciar o minimalismo é a crescente importância da questão ambiental. A economia é um ciclo aberto, como diz um ramo da moderna ciência econômica, a economia ecológica. Por se utilizar de todo tipo de recurso da natureza, não é possível imaginar que as atividades econômicas possam ser mantidas como que funcionando numa bolha, trazendo-se para dentro as matérias primas e os insumos, e expelindo-se os resíduos, sem que isso afete o planeta. A área de influência da humanidade já não é mais a de 2 mil ou até 300 anos atrás, quando nossos antepassados interferiam em algumas partes do planeta; como células dentro de um grande corpo que era a Terra da época. Hoje, nossa civilização mundial é como uma grande célula, que ocupa praticamente todo o corpo, a Terra, sugando seus recursos. Algo, de certa maneira, monstruoso. Epicuro (341 - 270 AEC), filósofo da Antiga Grécia, pode ter seu texto abaixo relacionado com este impulso consumista, no qual se baseia nosso sistema econômico:

Também consideramos o comedimento como um grande bem, não a fim de que, em todas as condições, fiquemos satisfeitos com pouco, mas sim para que nos contentemos com pouco quando não possuímos muito. Chegamos a essa conclusão pela convicção de que o homem que mais goza de faustosa magnificência é justamente o que menos dela necessita; de que tudo que é natural, é fácil de conseguir (sendo, porém, tudo quanto é insensato, de difícil obtenção) e de que finalmente, os gozos singelos oferecem tanto prazer quanto o maior luxo, contanto que não apareça o sentimento doloroso de privação. Com isso queremos dizer que pão e água somente, quando antes nos faltaram, podem proporcionar-nos o mais sublime prazer. Além disso, o fato de acostumarmo-nos a um modo de vida simples, não faustoso, melhora a saúde, tornando o homem apto a realizar, infatigavelmente, aquilo que a vida dele exige, permitindo-lhe sentir muito mais os prazeres intensos que a vida de vez em quando oferece e amparando seu destemor perante o acaso.” (Epicuro, Carta a Meneceu, pág. 41)

Assim, é preciso diminuir o uso dos recursos naturais do planeta; algo que só poderá ser alcançado reduzindo-se drasticamente o consumo. Perguntar-se se realmente precisamos de determinado produto ou serviço: “Isso é realmente necessário, preciso mesmo disso?” A indústria precisará, cada vez mais, produzir mercadorias mais duráveis (abolindo a obsolescência programada), reduzir a quantidade de versões de um mesmo produto, que nada acrescentam (apenas “mais do mesmo”). O consumidor deverá reutilizar, ao invés de comprar algo novo, como já se faz nos mercados de produtos de segunda mão (produtos elétrico-eletrônicos, roupas, livros, equipamentos diversos, veículos, móveis, etc.). É necessário fortalecer uma indústria da reciclagem, aproveitando tudo aquilo que pode ser utilizado em outros equipamentos ou produtos. Este é o principal aspecto do minimalismo, no que se refere ao consumo.

A redução do consumo também tem a ver com a propaganda de produtos. As mídias bombardeiam o cidadão com todo tipo de anúncio de propaganda, apresentando mercadorias que em 90% são cópias de outras e cuja aquisição de nada acrescenta ao consumidor; gasto desnecessário. Exemplos: o mais “moderno” e novo celular, a “mais recente” moda em vestuários, eletrodomésticos com funções desnecessárias, “inovadores” modelos de automóveis a cada ano, etc., etc., a lista de aparentes “novidades imperdíveis” é imensa. A ideia é despertar o desejo do consumidor, convencê-lo de que possuindo o produto, terá algum tipo de melhora, de mudança positiva em sua vida. Não se vende mais produtos; vendem-se sensações, sentimentos, status, ideias ocas e ilusão, muita ilusão.

Mas a lógica do capitalismo funciona desta maneira. E nesta “armadilha” surge o maior argumento: a facilidade de financiamento. Você não precisa ter recursos para comprar o produto; basta fazer um financiamento, um crediário. Desta maneira é que o sistema econômico, como atualmente está estruturado (capitalismo financeiro) mais ganha dinheiro. Produtos caros, juros altos. Todos ganham: fabricantes, revendedores, bancos – só não ganha o consumidor, este só leva a mercadoria.     

A ideia do minimalismo influenciando as gerações mais novas é bastante positiva. Nas economias desenvolvidas, onde a população em geral já tem um padrão de vida razoável há pelo menos duas ou três gerações (pós- Segunda Guerra), onde as condições de moradia estão garantidas para toda a população, o trabalho ou a Previdência garantem a renda e a subsistência da família; onde Ensino e Saúde estão assegurados em patamares aceitáveis, é possível falar em minimalismo. É aceitável abrir mão da posse de um veículo particular, já que o transporte coletivo está disponível para atender o cidadão em suas necessidades. Muitos jovens e adultos dessas sociedades perderam, em grande parte, o entusiasmo pelo consumo exacerbado, pelo acúmulo de bens, porque sua posse não é mais uma necessidade; a maioria destes produtos já não diferenciam mais a pessoa, não trazem mais status numa sociedade mais igualitária.

Coisa diferente, porém, ocorre nas sociedades dos países subdesenvolvidos. A propaganda, a baixa qualidade de vida e a falta de oportunidades em atingir melhor posição social, fazem com que para muitas pessoas – principalmente os jovens – a posse de certos bens de consumo, como roupas de marca, celulares, equipamentos e veículos, torne-se fator de destaque social, de maior aceitabilidade dentro de seus grupos. E é exatamente nessas sociedades que o consumismo é incentivado por toda uma estrutura empresarial e financeira, e sugerido como “alternativa” e “saída” da situação de privação em que vive a maior parte da população. Cerca de 60% da população brasileira não têm esgoto doméstico tratado, mas 90% têm celular. Assim, é mais importante para os “operadores do sistema”, que o cidadão pense na nova TV de 49 polegadas que vai financiar, do que na rua sem calçamento ou sem esgoto, no emprego precário, no transporte coletivo ruim ou no posto de saúde sem médico.

O minimalismo permanece sendo uma opção de viver e, especificamente, de consumir, que interessa e é praticável por aqueles que têm acesso a tal gama de serviços e produtos, de modo que conscientemente possam abrir mão daqueles que consideram desnecessários. Ou seja, aqueles que vivem em sociedades afluentes ou pertencem aos grupos privilegiados dos países subdesenvolvidos. Lembrando sempre que mesmo o minimalismo é apenas um remendo, já que o que precisa ser mudado é o próprio sistema econômico e seu funcionamento.


Fontes consultadas

 

Urbanize. Disponível em <https://urbansize.co.uk/blogs/interior-inspiration-for-small-space/minimalism-the-bare-essentials-for-a-small-space?utm_campaign=gs-2020-06-19&utm_source=google&utm_medium=smart_campaign> Acesso em 22/11/2022.

Moviment beatnik. Disponível em <https://www.psicanaliseclinica.com/movimento-beatnik/> Acesso em 25/11/2022.

Pascal, Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril S. A. Cultura Industrial: 1973, 280 pgs.

Movimento hippie. Disponível em <https://www.stoodi.com.br/blog/historia/movimento-hippie/>. Acesso em 25/11/2022.

The Minimalists. Disponível em <https://www.theminimalists.com/minimalism/> Acesso em 21/11/2022.

Minimalism (Wikipedia). Disponível em <https://en.wikipedia.org/wiki/Minimalism> Acesso em 22/11/2022.

Tate. Disponível em <https://www.tate.org.uk/art/art-terms/m/minimalism> Acesso em 22/11/2022. 

Epicuro. Martin Claret. São Paulo: 2005, 140 pgs.

Antimaximalist. Disponível em <https://antimaximalist.com/minimalism-philosophy/> Acesso em 26/11/2022.



(Imagens: pinturas de Al Held)

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