Ainda a privatização (da Sabesp)

sábado, 8 de julho de 2023

 

"Por isso é fácil conceber os sentimentos como fenômenos dispensáveis e até perigosos, em vez de como alicerces imprescindíveis do processo da vida. Seja qual for a causa, negligenciar o afeto empobrece a descrição da natureza humana. Não é possível explicar satisfatoriamente a mente cultural sem levar em conta o afeto."   -   Antonio Damasio   -   A estranha ordem das coisas  



"Essa é a técnica padrão da privatização: Corte o dinheiro, certifique-se de que as coisas não funcionam, de que as pessoas fiquem zangadas, então entregue ao capital privado."

(Noam Chomsky)

 

Há algum tempo desde os anos 1990, quando o governo Fernando Henrique privatizou diversas empresas públicas, a privatização da Sabesp (Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo) já vinha sendo sugerida por um ou outro político, mas a proposta nunca havia tomado forma concreta. Durante seu mandato (2019-2022) o governador João Doria (PSDB) ocupou-se com o tema e aventou, em diversas ocasiões, a possibilidade de vir a privatizar a companhia, chegando a incumbir o então deputado Rodrigo Maia (PSDB), para dar início aos preparativos os quais, todavia, não foram avante. Agora em 2023, o governador eleito Tarcísio de Freitas (Republicanos), que já durante sua campanha eleitoral havia colocado como uma das metas de seu governo a venda da empresa, deu andamento aos estudos que darão início ao processo.

A companhia em questão é um dos grandes patrimônios públicos do estado de São Paulo. Criada em 1973, durante o mandato do governado biônico (eleito de forma indireta pelo colégio eleitoral) Laudo Natel (1971-1975), a Sabesp atende atualmente 375 dos 645 municípios do estado de São Paulo e tem cerca de 28 milhões de clientes – cerca de 70% da população urbana do estado. A publicação especializada no setor de saneamento Masons Water Yearbook do biênio 2006-2007 colocava a empresa como a 5ª maior empresa de saneamento no planeta, ao lado de gigantes como Veolia, Suez, RWE e AGBAR. Em 1994 o governo de Luiz Antônio Fleury (PMDB, 1991-1995) privatizou parte do capital da empresa. Atualmente, o governo de São Paulo é dono de 50,3% da empresa, gerida como uma sociedade anônima de capital aberto. A outra parte das ações, 49,7%, é constituída por títulos negociados nas bolsas de valores de São Paulo (B3) e Nova York.

Segundo informações da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do governo do Estado de São Paulo, as audiências públicas para a privatização total da empresa terão início em 2024 e espera-se que o leilão das ações da empresa também ocorra ainda neste mesmo ano. Paralelamente, estão sendo preparados os estudos de análise técnica da viabilidade da privatização, feitos pela International Finance Organization (IFC), ligado ao Banco Mundial. Em nota, publicada em reportagem do portal Agência Brasil em 7/6/2023, o governo paulista informa que “caso os estudos comprovem que a proposta terá benefícios significativos, como aumento da eficiência operacional da empresa e melhoria da qualidade de serviços, incluindo expansão e antecipação das metas de universalização de abastecimento e saneamento, o processo de desestatização será estruturado.”.

A venda da “joia da coroa” das empresas públicas paulistas, uma das empresas públicas remanescentes de maior valor no Brasil, deve ser tratada com todo o cuidado. O governador Tarcísio, quando ainda era candidato, declarou em outubro de 2022 que a privatização da companhia de saneamento renderia de R$ 60 a R$ 80 bilhões ao estado, mais do que o valor de mercado avaliado pela própria Sabesp, em R$ 31 bilhões (Brasil de Fato 27/10/2022). A importância da empresa para a economia paulista dá motivos para a cautelosa declaração da Secretaria de Parceria em Investimentos do governo do estado, feita para o jornal online Gazeta do Povo de 02/04/2023: “O Governo do Estado só avançará na proposta se esta trouxer benefícios como a universalização dos serviços de água e esgoto previstos até 2033, além de melhorar na eficiência ao minimizar perdas e desperdícios que hoje rondam os 27% (2020), reduzindo, assim, os custos e ônus à população (...)”.

Um dos grandes argumentos daqueles que são favoráveis à venda da empresa é de que as tarifas de água e esgoto sofreriam um decréscimo, beneficiando o consumidor. Em matéria publicada no jornal eletrônico seu dinheiro em 28/2/2023, um estrategista do banco Itaú BBA afirma: “Eu consigo te dizer com um grau de confiança alto, que é possível o governo de São Paulo privatizar, dar uma redução de 10% na tarifa e ainda levantar dinheiro com o prêmio de outorga.”.

No entanto nem todos concordam com este argumento, vindo de um representante do mercado financeiro. Há casos recentes que depõe contra a privatização dos serviços de saneamento em diversos pontos do país. Em Manaus, por exemplo, as tarifas aumentaram e o serviço lidera o ranking das reclamações. O mesmo ocorre em cidades como Ouro Preto (MG); Rio de Janeiro (RJ), com a CEDAE, privatizada em 2021; a empresa de saneamento do Tocantins (Saneatins), que voltou a ser pública em 2013; e o serviço de saneamento da cidade de Jundiaí (SP), entre outros.

Em São Paulo a privatização da Sabesp não é uma “quase unanimidade”, como queriam deixar transparecer os apoiadores da iniciativa – governo Tarcísio e aliados; mercado financeiro, bancos e rentistas (que muito tem a ganhar com a operação). De acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha entre os dias 3 e 5 de abril de 2023 em 64 municípios do estado, 53% dos entrevistados não concordam com a venda da empresa e 40% são favoráveis. Uma minoria (1%) declara-se indiferente em relação ao tema e 6% não sabem opinar. A pesquisa demonstra que mais da metade da população do estado de São Paulo é contrária à privatização da companhia de saneamento.

Dados publicados no portal do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente de São Paulo em 24/03/2023 informam que a Sabesp apresentou lucro líquido 35,4% acima dos lucros de 2022, com ganhos de R$ 3,12 bilhões. Segundo comunicação do sindicato, “Esses resultados financeiros positivos só reforçam os argumentos do Sintaema contra a privatização da empresa, que além do papel social que cumpre em todo estado, produz ciência, tecnologia e um trabalho de eficiência reconhecido e que posiciona a Sabesp como uma das maiores empresas se saneamento do mundo.”.

A pergunta que fica sem resposta é sobre a razão da venda da empresa, se ela dá lucro. Qual é a explicação? Se as reservas de caixa não são suficientes para os investimentos necessários para atingir a universalização dos serviços de água e esgoto até 2033, daqui a dez anos, não seria possível lançar mão de recursos do BNDES, do Banco Mundial ou de parcerias público-privadas, como já ocorre em 266 cidades brasileiras, segundo estudo Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON/SINDCOM)?

Ainda por falar em privatização dos serviços de saneamento vale mencionar importante notícia veiculada em 28/6/2023 pelo jornal inglês The Guardian. A manchete em tradução livre diz: “Thames Water em crise fala em prejuízo acima de 10 bilhões de libras (cerca de R$ 61,3 bilhões)”. A empresa é uma das maiores companhias de saneamento do mundo, atendendo cerca de 15 milhões de usuários, principalmente na região da grande Londres. Foi fundada ainda no século XIX e privatizada em 1989, sendo em seguida vendida em 2001 ao grupo alemão RWE, o qual por sua vez fatiou a empresa para diversos grupos de investimento (fundos de pensão canadenses, ingleses, estatais chinesas e investidores de Abhu Dhabi). Autoridade do governo diz que ainda não tem ideia exata dos custos envolvidos para prevenir um possível colapso da empresa, que se estima serem de 10 bilhões de libras, mas podendo chegar a 14 bilhões (R$ 85,8 bilhões), se forem incluídos os juros.

Medidas a serem tomadas para controlar a situação incluem a reestatização temporária da empresa, o que necessariamente implicará a alocação de recursos públicos e o aumento das tarifas dos usuários. Outra opção seria colocar a companhia novamente à venda. Em todo caso, segundo o ministro de negócios do Reino Unido, Kemi Badenoch, o governo está empenhado em assegurar a sobrevivência da empresa.

Grande parte do setor de saneamento do Reino Unido foi privatizado há cerca de 30 anos. Durante este período, investidores (representados pelos seus administradores) foram acusados de reduzir os investimentos nas empresas, comprometendo diversas atividades. Segundo o órgão do governo responsável pelo controle do setor, outras empresas inglesas de saneamento também parecem estar em situação semelhante, como a Yorkshire Water, SESWater e a Portmounth Water. Segundo um especialista do setor, as vendas de ativos das empresas (asset stripping), redução de investimentos e corte de custos, são problemas que vem afetando o setor privatizado há anos (com o objetivo de aumentar o resultado financeiro das empresas e assim os lucros dos acionistas). Darren Jones, diretor do comitê de negócios da empresa, disse à rede de comunicação BBC que dada a situação da Thames Water, não resta outra escolha ao governo senão reestatizá-la. Também considera que as agências de controle falharam completamente em fiscalizar as atividades da companhia e sua situação.

A difícil condição da grande empresa inglesa de saneamento é mais um argumento contra a onda privatista que até agora ainda vigora em meios governamentais, empresariais, financeiros e na imprensa de algumas economias capitalistas (leia-se Brasil, por exemplo). Resquício do neoliberalismo que propugnava o afastamento do Estado da maior parte das atividades que poderiam ser conduzidas pelo setor privado de maneira mais econômica e eficiente (essa é a história que se conta), a ideologia do “estado mínimo” mostra seus resultados. Neste e em muitos outros casos, a iniciativa privada extrai os lucros do empreendimento, mas quando aparecem os problemas, apelam para a ajuda do Estado. Na crise de 2008 o governo americano teve que repassar centenas de bilhões de dólares ao sistema bancário (privado), para que a crise econômica não se transformasse em uma tragédia econômica e social ainda maior do que foi. Não é por outra razão que países como a França, a Alemanha e até os Estados Unidos voltaram a estatizar diversas companhias de serviços (eletricidade, saneamento, gás, comunicação, transportes, etc.) que haviam sido transferidas à gestão privada nos anos 1980 e 1990.

Em artigo que publicamos neste blog em 14/01/2023, também sobre a planejada privatização da Sabesp, escrevemos:

O reverso da moeda mostra outra imagem. Várias empresas de saneamento municipais, estaduais ou federais, em vários países, privatizadas pelo poder público, foram novamente estatizadas. Uma reportagem publicada no jornal inglês The Guardian em 2015 (https://www.theguardian.com/global-development/2015/jan/30/water-privatisation-worldwide-failure-lagos-world-bank) informa que: 

‘um relatório feito pelo Transnational Institute (TNI), a Public Services International Research Unit (Unidade Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos) e o Multinational Observatory (Observatório Multinacional) informam que 180 cidades e comunidades, em 35 países, incluindo Buenos Aires, Johannesburgo, Paris, Accra, Berlim, La Paz, Maputo e Kuala Lumpur, ‘remunicipalizaram’ seus sistemas de tratamento de água na década passada. Mais de 100 das (cidades) ‘retornadas’ estavam nos Estados Unidos e França, 14 na África e 12 na América Latina. Aqueles municípios nos países em desenvolvimento eram cidades maiores do que aquelas em países ricos. ’ (The Guardian 30/01/2015 – tradução nossa).

Parece que em todo o mundo já se percebeu que a privatização de serviços públicos – neste caso o saneamento – não costuma dar certo, tendo como consequência a necessidade de sua ‘desprivatização’. O portal americano Food & Water Watch em seu artigo Water Privatization: Facts and Figures (Privatização da Água: Fatos e Números) (https://www.foodandwaterwatch.org/2015/08/02/water-privatization-facts-and-figures/) apresenta dados e números sobre a privatização do setor. São informações pouco citadas no Brasil e raramente divulgadas pela grande mídia brasileira – a maior parte dela comprometida com a política privatista. Alguns pontos importantes citados pelo site dizem: 

‘A privatização pode piorar o serviço. Há ampla evidência de que atrasos na manutenção, desperdício de água, derramamento de esgoto e pior serviço geralmente seguem a privatização. De fato, o baixo desempenho é a principal razão pela qual os governos locais revertem a decisão de privatizar e retomar a operação pública de serviços anteriormente contratados. Leia nosso relatório: Dinheiro pelo ralo: como o controle privado desperdiça recursos públicos. ’ (Food & Water Watch) 

Os operadores privados podem cortar custos. Quando os operadores privados tentam cortar custos, as práticas que eles empregam podem resultar em pior qualidade do serviço. Eles podem usar materiais de construção de má qualidade, atrasar a manutenção necessária ou reduzir a força de trabalho. Essas estratégias podem prejudicar o atendimento ao cliente e retardar as respostas às emergências. (Food & Water Watch). ’”

O que acontece hoje no Reino Unido com a empresa Thames Water já ocorreu dezenas ou centenas de vezes mundo afora e pode se repetir no Brasil, como já vimos antes. O principal motivo das privatizações, como mostrado no texto acima, não é necessariamente tornar os serviços mais eficientes, baratos e rápidos. Estas características podem até ocorrer numa fase inicial, após a privatização, como resultado do corte geral de custos, visando tornar toda a operação mais econômica. Parte desta economia é então repassada ao usuário do serviço (com tarifas mais baixas) e outra parte (bem maior) incorporada ao lucro operacional da empresa, beneficiando os acionistas. O problema é que o corte de custos continua ao longo dos anos. Funcionários experientes são substituídos por outros nem tanto, recebendo salários mais baixos, ou com a contratação de terceirizados. Os equipamentos, peças de reposição, serviços de manutenção, atualização de tecnologias, ampliação de unidades, etc., necessários para manter a empresa funcionando devidamente, são comprados quando estritamente necessários e através de licitações do tipo “menor preço”. Assim, ao longo dos anos os resultados financeiros da empresa permanecem altos – ou até crescem – mas a operacionalidade da empresa apresenta cada vez mais problemas (quebras, desgastes, tecnologias ultrapassadas) e quem sofre as consequências é o cliente. É, resumidamente, o que agora ocorre na inglesa Thames Water, e o que vem ocorrendo também em outras empresas privatizadas no Brasil (como, por exemplo, o apagão da empresa de energia no Amapá em novembro de 2020) e no mundo.

Este é o risco das privatizações, agravado quando a agência de controle responsável pelo setor – as nossas agências reguladoras – não atua com rigor, como ocorreu no caso da empresa inglesa e como ocorre em nosso país em vários outros setores – energia, saneamento, telecomunicações, aeroportos, transportes, etc. Assim, antes de apoiar a privatização, procure se informar. Depois de comprado, a troca do produto é difícil e custosa!



Fontes pesquisadas:


Governo planeja iniciar em2024 audiências para privatização da SABESP. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-06/governo-planeja-iniciar-em-2024-audiencias-para-privatizacao-da-sabesp. Acesso em 29/6/2023

Lucro líquido da SABESP tem alta de 35,4% em 2022. https://sintaemasp.org.br/noticias/lucro-sabesp-22-bilhoes#:~:text=Em%20informe%20oficial%20da%20empresa,R%24%2022.055%2C80%20bilh%C3%B5es. Acesso em 29/6/2023

Cinco obstáculos que o governo de São Paulo enfrentará para privatizar a SABESP. https://www.gazetadopovo.com.br/sao-paulo/cinco-obstaculos-privatizacao-sabesp/. Acesso em 29/6/2023

Privatização da Sabesp (SBSP3) pode reduzir a tarifa de água e esgoto? O mercado diz que sim, mas nem todo mundo está tão confiante. Matéria da jornalista Jasmine Olga. https://www.seudinheiro.com/2023/empresas/privatizacao-da-sabesp-sbsp3-pode-reduzir-a-tarifa-de-agua-e-esgoto-jsmn/. Acesso em 29/6/2023.

Maioria dos paulistas é contra privatizar SABESP, segundo pesquisa. https://www.gazetasp.com.br/estado/maioria-dos-paulistas-e-contra-privatizar-sabesp-segundo-pesquisa/1122886/. Acesso em 29/6/2023.

Thames Water in crisis talks over potential of £10bn black hole. https://www.theguardian.com/business/2023/jun/28/thames-water-in-crisis-talks-over-potential-10bn-black-hole-cost-possible-collapse?utm_term=649d01c7c23cebf4dca32c867d11b95e&utm_campaign=GuardianTodayUK&utm_source=esp&utm_medium=Email&CMP=GTUK_email. Acesso em 29/6/2023

 

(Imagens: cartazes do construtivismo russo)

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