(Noam Chomsky)
Há
algum tempo desde os anos 1990, quando o governo Fernando Henrique privatizou
diversas empresas públicas, a privatização da Sabesp (Companhia de Saneamento
Básico do Estado de São Paulo) já vinha sendo sugerida por um ou outro
político, mas a proposta nunca havia tomado forma concreta. Durante seu mandato
(2019-2022) o governador João Doria (PSDB) ocupou-se com o tema e aventou, em
diversas ocasiões, a possibilidade de vir a privatizar a companhia, chegando a
incumbir o então deputado Rodrigo Maia (PSDB), para dar início aos preparativos
os quais, todavia, não foram avante. Agora em 2023, o governador eleito Tarcísio
de Freitas (Republicanos), que já durante sua campanha eleitoral havia colocado
como uma das metas de seu governo a venda da empresa, deu andamento aos estudos
que darão início ao processo.
A
companhia em questão é um dos grandes patrimônios públicos do estado de São
Paulo. Criada em 1973, durante o mandato do governado biônico (eleito de forma
indireta pelo colégio eleitoral) Laudo Natel (1971-1975), a Sabesp atende
atualmente 375 dos 645 municípios do estado de São Paulo e tem cerca de 28
milhões de clientes – cerca de 70% da população urbana do estado. A publicação
especializada no setor de saneamento Masons
Water Yearbook do biênio
2006-2007 colocava a empresa como a 5ª maior empresa de saneamento no planeta,
ao lado de gigantes como Veolia, Suez, RWE e AGBAR. Em 1994 o
governo de Luiz Antônio Fleury (PMDB, 1991-1995) privatizou parte do capital da
empresa. Atualmente, o governo de São Paulo é dono de 50,3% da empresa, gerida
como uma sociedade anônima de capital aberto. A outra parte das ações, 49,7%, é
constituída por títulos negociados nas bolsas de valores de São Paulo (B3) e
Nova York.
Segundo
informações da Secretaria de Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do
governo do Estado de São Paulo, as audiências públicas para a privatização
total da empresa terão início em 2024 e espera-se que o leilão das ações da
empresa também ocorra ainda neste mesmo ano. Paralelamente, estão sendo
preparados os estudos de análise técnica da viabilidade da privatização, feitos
pela International Finance Organization
(IFC), ligado ao Banco Mundial. Em nota, publicada em reportagem do portal Agência Brasil em 7/6/2023, o governo
paulista informa que “caso os estudos
comprovem que a proposta terá benefícios significativos, como aumento da eficiência
operacional da empresa e melhoria da qualidade de serviços, incluindo expansão
e antecipação das metas de universalização de abastecimento e saneamento, o
processo de desestatização será estruturado.”.
A
venda da “joia da coroa” das empresas públicas paulistas, uma das empresas públicas
remanescentes de maior valor no Brasil, deve ser tratada com todo o cuidado. O
governador Tarcísio, quando ainda era candidato, declarou em outubro de 2022
que a privatização da companhia de saneamento renderia de R$ 60 a R$ 80 bilhões
ao estado, mais do que o valor de mercado avaliado pela própria Sabesp, em R$
31 bilhões (Brasil de Fato
27/10/2022). A importância da empresa para a economia paulista dá motivos para
a cautelosa declaração da Secretaria de Parceria em Investimentos do governo do
estado, feita para o jornal online Gazeta
do Povo de 02/04/2023: “O Governo do
Estado só avançará na proposta se esta trouxer benefícios como a
universalização dos serviços de água e esgoto previstos até 2033, além de
melhorar na eficiência ao minimizar perdas e desperdícios que hoje rondam os
27% (2020), reduzindo, assim, os custos e ônus à população (...)”.
Um
dos grandes argumentos daqueles que são favoráveis à venda da empresa é de que
as tarifas de água e esgoto sofreriam um decréscimo, beneficiando o consumidor.
Em matéria publicada no jornal eletrônico seu
dinheiro em 28/2/2023, um estrategista do banco Itaú BBA afirma: “Eu consigo te dizer com um grau de confiança
alto, que é possível o governo de São Paulo privatizar, dar uma redução de 10%
na tarifa e ainda levantar dinheiro com o prêmio de outorga.”.
No
entanto nem todos concordam com este argumento, vindo de um representante do
mercado financeiro. Há casos recentes que depõe contra a privatização dos
serviços de saneamento em diversos pontos do país. Em Manaus, por exemplo, as
tarifas aumentaram e o serviço lidera o ranking
das reclamações. O mesmo ocorre em cidades como Ouro Preto (MG); Rio de Janeiro
(RJ), com a CEDAE, privatizada em 2021; a empresa de saneamento do Tocantins
(Saneatins), que voltou a ser pública em 2013; e o serviço de saneamento da
cidade de Jundiaí (SP), entre outros.
Em
São Paulo a privatização da Sabesp não é uma “quase unanimidade”, como queriam
deixar transparecer os apoiadores da iniciativa – governo Tarcísio e aliados;
mercado financeiro, bancos e rentistas (que muito tem a ganhar com a operação).
De acordo com pesquisa realizada pelo Datafolha
entre os dias 3 e 5 de abril de 2023 em 64 municípios do estado, 53% dos
entrevistados não concordam com a venda da empresa e 40% são favoráveis. Uma
minoria (1%) declara-se indiferente em relação ao tema e 6% não sabem opinar. A
pesquisa demonstra que mais da metade da população do estado de São Paulo é
contrária à privatização da companhia de saneamento.
Dados
publicados no portal do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio
Ambiente de São Paulo em 24/03/2023 informam que a Sabesp apresentou lucro
líquido 35,4% acima dos lucros de 2022, com ganhos de R$ 3,12 bilhões. Segundo
comunicação do sindicato, “Esses resultados
financeiros positivos só reforçam os argumentos do Sintaema contra a privatização
da empresa, que além do papel social que cumpre em todo estado, produz ciência,
tecnologia e um trabalho de eficiência reconhecido e que posiciona a Sabesp
como uma das maiores empresas se saneamento do mundo.”.
A
pergunta que fica sem resposta é sobre a razão da venda da empresa, se ela dá
lucro. Qual é a explicação? Se as reservas de caixa não são suficientes para os
investimentos necessários para atingir a universalização dos serviços de água e
esgoto até 2033, daqui a dez anos, não seria possível lançar mão de recursos do
BNDES, do Banco Mundial ou de parcerias público-privadas, como já ocorre em 266
cidades brasileiras, segundo estudo Associação e Sindicato Nacional das
Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (ABCON/SINDCOM)?
Ainda
por falar em privatização dos serviços de saneamento vale mencionar importante
notícia veiculada em 28/6/2023 pelo jornal inglês The Guardian. A manchete em tradução livre diz: “Thames Water em
crise fala em prejuízo acima de 10 bilhões de libras (cerca de R$ 61,3 bilhões)”.
A empresa é uma das maiores companhias de saneamento do mundo, atendendo cerca
de 15 milhões de usuários, principalmente na região da grande Londres. Foi
fundada ainda no século XIX e privatizada em 1989, sendo em seguida vendida em
2001 ao grupo alemão RWE, o qual por sua vez fatiou a empresa para diversos grupos
de investimento (fundos de pensão canadenses, ingleses, estatais chinesas e
investidores de Abhu Dhabi). Autoridade do governo diz que ainda não tem ideia
exata dos custos envolvidos para prevenir um possível colapso da empresa, que
se estima serem de 10 bilhões de libras, mas podendo chegar a 14 bilhões (R$
85,8 bilhões), se forem incluídos os juros.
Medidas
a serem tomadas para controlar a situação incluem a reestatização temporária da
empresa, o que necessariamente implicará a alocação de recursos públicos e o
aumento das tarifas dos usuários. Outra opção seria colocar a companhia
novamente à venda. Em todo caso, segundo o ministro de negócios do Reino Unido,
Kemi Badenoch, o governo está empenhado em assegurar a sobrevivência da
empresa.
Grande
parte do setor de saneamento do Reino Unido foi privatizado há cerca de 30 anos.
Durante este período, investidores (representados pelos seus administradores)
foram acusados de reduzir os investimentos nas empresas, comprometendo diversas
atividades. Segundo o órgão do governo responsável pelo controle do setor, outras
empresas inglesas de saneamento também parecem estar em situação semelhante,
como a Yorkshire Water, SESWater e a Portmounth Water. Segundo um especialista
do setor, as vendas de ativos das empresas (asset
stripping), redução de investimentos e corte de custos, são problemas que
vem afetando o setor privatizado há anos (com o objetivo de aumentar o
resultado financeiro das empresas e assim os lucros dos acionistas). Darren
Jones, diretor do comitê de negócios da empresa, disse à rede de comunicação
BBC que dada a situação da Thames Water, não resta outra escolha ao governo
senão reestatizá-la. Também considera que as agências de controle falharam
completamente em fiscalizar as atividades da companhia e sua situação.
A
difícil condição da grande empresa inglesa de saneamento é mais um argumento
contra a onda privatista que até agora ainda vigora em meios governamentais,
empresariais, financeiros e na imprensa de algumas economias capitalistas
(leia-se Brasil, por exemplo). Resquício do neoliberalismo que propugnava o
afastamento do Estado da maior parte das atividades que poderiam ser conduzidas
pelo setor privado de maneira mais econômica e eficiente (essa é a história que
se conta), a ideologia do “estado mínimo” mostra seus resultados. Neste e em muitos outros casos, a iniciativa privada extrai os lucros do empreendimento, mas quando aparecem os problemas, apelam para a ajuda do Estado. Na crise de 2008 o governo americano teve que repassar centenas de bilhões de dólares ao sistema bancário (privado), para que a crise econômica não se transformasse em uma tragédia econômica e social ainda maior do que foi. Não é por
outra razão que países como a França, a Alemanha e até os Estados Unidos
voltaram a estatizar diversas companhias de serviços (eletricidade, saneamento,
gás, comunicação, transportes, etc.) que haviam sido transferidas à gestão
privada nos anos 1980 e 1990.
Em
artigo que publicamos neste blog em 14/01/2023, também sobre a planejada
privatização da Sabesp, escrevemos:
“O reverso da moeda mostra outra imagem.
Várias empresas de saneamento municipais, estaduais ou federais, em vários
países, privatizadas pelo poder público, foram novamente estatizadas. Uma
reportagem publicada no jornal inglês The Guardian em 2015 (https://www.theguardian.com/global-development/2015/jan/30/water-privatisation-worldwide-failure-lagos-world-bank)
informa que:
‘um relatório feito pelo Transnational
Institute (TNI), a Public Services International Research Unit (Unidade
Internacional de Pesquisa de Serviços Públicos) e o Multinational Observatory
(Observatório Multinacional) informam que 180 cidades e comunidades, em 35
países, incluindo Buenos Aires, Johannesburgo, Paris, Accra, Berlim, La Paz,
Maputo e Kuala Lumpur, ‘remunicipalizaram’ seus sistemas de tratamento de água
na década passada. Mais de 100 das (cidades) ‘retornadas’ estavam nos Estados
Unidos e França, 14 na África e 12 na América Latina. Aqueles municípios nos
países em desenvolvimento eram cidades maiores do que aquelas em países ricos. ’ (The
Guardian 30/01/2015 – tradução nossa).
Parece que em todo o mundo já se percebeu
que a privatização de serviços públicos – neste caso o saneamento – não costuma
dar certo, tendo como consequência a necessidade de sua ‘desprivatização’. O portal
americano Food & Water Watch em seu artigo Water
Privatization: Facts and Figures (Privatização da Água: Fatos e Números) (https://www.foodandwaterwatch.org/2015/08/02/water-privatization-facts-and-figures/)
apresenta dados e números sobre a privatização do setor. São informações pouco
citadas no Brasil e raramente divulgadas pela grande mídia brasileira – a maior
parte dela comprometida com a política privatista. Alguns pontos importantes
citados pelo site dizem:
‘A privatização pode piorar o
serviço. Há ampla evidência de que atrasos na manutenção, desperdício de
água, derramamento de esgoto e pior serviço geralmente seguem a privatização. De
fato, o baixo desempenho é a principal razão pela qual os governos locais
revertem a decisão de privatizar e retomar a operação pública de serviços
anteriormente contratados. Leia nosso relatório: Dinheiro
pelo ralo: como o controle privado desperdiça recursos públicos. ’ (Food
& Water Watch)
Os operadores privados podem cortar
custos. Quando os operadores privados tentam cortar custos, as práticas
que eles empregam podem resultar em pior qualidade do serviço. Eles podem
usar materiais de construção de má qualidade, atrasar a manutenção necessária
ou reduzir a força de trabalho. Essas estratégias podem prejudicar o
atendimento ao cliente e retardar as respostas às emergências. (Food &
Water Watch). ’”
O
que acontece hoje no Reino Unido com a empresa Thames Water já ocorreu dezenas
ou centenas de vezes mundo afora e pode se repetir no Brasil, como já vimos
antes. O principal motivo das privatizações, como mostrado no texto acima, não
é necessariamente tornar os serviços mais eficientes, baratos e rápidos. Estas
características podem até ocorrer numa fase inicial, após a privatização, como resultado
do corte geral de custos, visando tornar toda a operação mais econômica. Parte
desta economia é então repassada ao usuário do serviço (com tarifas mais
baixas) e outra parte (bem maior) incorporada ao lucro operacional da empresa,
beneficiando os acionistas. O problema é que o corte de custos continua ao
longo dos anos. Funcionários experientes são substituídos por outros nem tanto, recebendo salários mais baixos, ou com a contratação de terceirizados.
Os equipamentos, peças de reposição, serviços de manutenção, atualização de
tecnologias, ampliação de unidades, etc., necessários para manter a empresa
funcionando devidamente, são comprados quando estritamente necessários e
através de licitações do tipo “menor preço”. Assim, ao longo dos anos os
resultados financeiros da empresa permanecem altos – ou até crescem – mas a
operacionalidade da empresa apresenta cada vez mais problemas (quebras,
desgastes, tecnologias ultrapassadas) e quem sofre as consequências é o cliente.
É, resumidamente, o que agora ocorre na inglesa Thames Water, e o que vem
ocorrendo também em outras empresas privatizadas no Brasil (como, por exemplo, o apagão da empresa de energia no Amapá em novembro de 2020) e no mundo.
Este
é o risco das privatizações, agravado quando a agência de controle responsável
pelo setor – as nossas agências reguladoras – não atua com rigor, como ocorreu
no caso da empresa inglesa e como ocorre em nosso país em vários outros
setores – energia, saneamento, telecomunicações, aeroportos, transportes, etc. Assim,
antes de apoiar a privatização, procure se informar. Depois de comprado, a
troca do produto é difícil e custosa!
Fontes
pesquisadas:
Governo
planeja iniciar em2024 audiências para privatização da SABESP. https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2023-06/governo-planeja-iniciar-em-2024-audiencias-para-privatizacao-da-sabesp.
Acesso em 29/6/2023
Lucro
líquido da SABESP tem alta de 35,4% em 2022. https://sintaemasp.org.br/noticias/lucro-sabesp-22-bilhoes#:~:text=Em%20informe%20oficial%20da%20empresa,R%24%2022.055%2C80%20bilh%C3%B5es.
Acesso em 29/6/2023
Cinco
obstáculos que o governo de São Paulo enfrentará para privatizar a SABESP. https://www.gazetadopovo.com.br/sao-paulo/cinco-obstaculos-privatizacao-sabesp/.
Acesso em 29/6/2023
Privatização
da Sabesp (SBSP3) pode reduzir a tarifa de água e esgoto? O mercado diz que
sim, mas nem todo mundo está tão confiante. Matéria da jornalista Jasmine Olga.
https://www.seudinheiro.com/2023/empresas/privatizacao-da-sabesp-sbsp3-pode-reduzir-a-tarifa-de-agua-e-esgoto-jsmn/.
Acesso em 29/6/2023.
Maioria
dos paulistas é contra privatizar SABESP, segundo pesquisa. https://www.gazetasp.com.br/estado/maioria-dos-paulistas-e-contra-privatizar-sabesp-segundo-pesquisa/1122886/.
Acesso em 29/6/2023.
Thames
Water in crisis talks over potential of £10bn black hole. https://www.theguardian.com/business/2023/jun/28/thames-water-in-crisis-talks-over-potential-10bn-black-hole-cost-possible-collapse?utm_term=649d01c7c23cebf4dca32c867d11b95e&utm_campaign=GuardianTodayUK&utm_source=esp&utm_medium=Email&CMP=GTUK_email.
Acesso em 29/6/2023
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