A
fatura do bem-estar
Na busca da felicidade como 'novo' leitmotiv do mundo
gerencial, muitas vezes os de baixo acabam pagando a conta, avalia escritor
(publicado
originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 16 de setembro de 2012)
RICARDO ANTUNES - O Estado de S.Paulo
Numa primeira mirada, Felicidade S.A. parece mais um
livro de autoajuda a entulhar as prateleiras das livrarias dos aeroportos e,
assim, causar regozijo aéreo em quem lê só quando não tem mais nada que fazer.
Mas as aparências enganam...
Depois de passar anos na editoria de Época Negócios,
entrevistando gestores e consultores, lendo relatórios de pesquisas de diversos
países, perseguindo autores clássicos e contemporâneos, Alexandre Teixeira, em
seu métier jornalístico, realizou uma incursão nas ideias que povoam o mundo
dos que vivem de negócios - etimologicamente, os que negam o ócio. Mergulhou no
ideário gerencial dos que estão no topo. O resultado é forte: se a onda é a do
ideário da felicidade, a pragmática que prolifera é a da corrosão.
Em suas entrevistas, o autor dialoga com os gestores e
suas concepções acerca das relações entre felicidade e dinheiro, liderança e
despotismo, sofrimento e ascensão, homem cordial e patriarcalismo, tempo livre
e tempo poluído fora do trabalho, meritocracia e qualidade de vida, entre
outros. Se, por vezes, o ex-editor de negócios aparenta estar absorto pelo
ideário dos gestores, o repórter pesquisador sempre desconfia. Percebe que o
movimento existente na superfície - a busca da felicidade como o
"novo" leitmotiv do mundo gerencial - está em descompasso com a
guerra das empresas globais em sua competitividade destrutiva. Esse descompasso
faz com que o paralelo acabe por entrar em curto-circuito, e quando isso
ocorre, são os "de baixo" que acabam pagando a conta.
É por isso que o autor afirma que se trata de "um
livro sobre a felicidade no trabalho inspirado, em boa medida, pela ausência
dela", dadas as "reclamações generalizadas sobre as jornadas de
trabalho intermináveis" e a "ditadura do Blackberry", entre
tantos outros elementos. E não é fora de propósito lembrar que BlackBerry era
um grilhão usado durante a escravidão, nos Estados Unidos, que atava os pés dos
negros como forma de impedir sua fuga. Só que agora adentramos na fase do
grilhão digital.
Nas partes referentes às relações entre dinheiro, riqueza
e felicidade, o autor demonstra que o ideário da felicidade é frequentemente
obnubilado pelo frenesi do dinheiro e da riqueza. Chega a ser constrangedor
ouvir gestores lá de cima, no cume do controle, afirmar que buscam mesmo é a
felicidade. Seria interessante perguntar: qual é a base de sustentação dessa
"nova felicidade"? Como vivem os proprietários/altos gestores/grandes
acionistas entrevistados? Serão comedidos no número de automóveis que possuem?
São monges em relação ao número de aposentos em suas mansões e na vastidão de
suas propriedades para viver o gozo e a fruição? São constritos na parafernália
de aparelhos informacionais-digitais (computadores, tablets, ipads, iphones,
celulares, televisores, etc.) que possuem, eles, seus filhos e familiares? Ou
será que a "felicidade" tão almejada no "espaço de
trabalho" dos gestores é aquela que se erige a partir da abundância do
consumo fetichizado e da superfluidade? Se assim for, seria também interessante
indagar como a felicidade nos escalões de cima se sustenta e se fundamenta na
"redução" das necessidades e carecimentos cotidianos daqueles que
vivem no chão das empresas.
O livro apresenta um amplo leque de indicações
sugestivas, especialmente à medida que vai descendo os degraus das hierarquias
dos assalariados nas empresas: o Japão do emprego vitalício, por exemplo, ao
ocidentalizar-se e praticar seu downsizing, não estaria vitimando especialmente
seus jovens, dado que as corporações querem cada vez mais trabalhadores
"diaristas"? A Google, ao oferecer condução para seus
"colaboradores", com Wi-Fi para que possam conectar-se e laborar
antes mesmo do horário de trabalho começar e ainda ofertar lavanderia para seus
"colaboradores", não estaria se apropriando do tempo de trabalho de
seus engenheiros e programadores? E a Atlasian, produtora australiana de
software, ao criar o FedEx Day, "um dia de trabalho a cada trimestre no
qual os funcionários ficam livres para trabalhar no que desejarem, com o único
compromisso de entregar algo à empresa no dia seguinte", não estaria
fazendo o mesmo? O resultado: em 18 realizações do dito-cujo, "550
projetos foram apresentados e 47 projetos ou aprimoramentos foram entregues a
clientes da companhia". Não é preciso dizer que a ideia do FedEx Day se
espalhou pela "aldeia global", pois instilar "ócio
criativo" traz mesmo é aumento da massa de mais valia, através da
subordinação dos trabalhos imateriais à forma-mercadoria.
E foi seguindo essa trilha que o qualificado
livro-reportagem de Alexandre Teixeira, ao tratar da felicidade no trabalho,
mesmo daqueles que dispõem de certo "capital cultural", esbarrou
frequentemente em sua infelicidade. O que não dizer, então, dos que estão lá
"em baixo", cuja felicidade em ter emprego convive cotidianamente com
o risco de perdê-lo?
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