"A vida resumida do homem é um capítulo instantâneo da vida de sua sociedade..." - Euclides da Cunha - Os Sertões
Em qualquer
comunidade as pessoas defendem prioritariamente seus interesses. Isso é
natural, ligado ao instinto de preservação do indivíduo, da família ou do grupo
social a que pertença – o clã, a tribo, o clube de futebol, o partido político,
a igreja, o bairro onde mora, etc. Por vezes é possível até aderir às causas de
outros grupos, desde que haja uma coincidência de interesses. Como, por
exemplo, numa guerra na qual diversas tribos, povos ou países se aliam, para
derrotar um adversário comum, e depois da vitória voltarem à defesa de seus objetivos
específicos – muitas vezes combatendo aliados de há pouco. É assim que as
sociedades funcionam desde milênios.
No
passado remoto, no período Paleolítico, quando os sapiens ainda não haviam inventado a agricultura e viviam em bandos
de caçadores-coletores, esta luta por conflitos de interesses era menor. Os
primeiros passos do homem na dominação da natureza muito provavelmente
começaram com o uso de paus e pedras para acuar e abater sua caça.
Gradualmente, ao longo de dezenas ou centenas de milhares de anos, não sabemos,
nossos antepassados descobriram que lascando pedras era possível obter pontas
de lanças e objetos cortantes eficientes para fatiar a carne. Em paralelo a este
desenvolvimento tecnológico deve ter ocorrido a dominação do fogo,
aproximadamente em torno de um milhão de anos no passado.
Diferentemente do que imaginamos, baseados no ritmo das mudanças em tempos modernos, tais avanços tecnológicos no uso das ferramentas ocorriam muito vagarosamente. Silvana Condemi, paleoantropóloga e François Savatier, jornalista especializado em ciências, em seu livro Neandertal, nosso irmão – Uma breve história do homem escrevem que “a modelagem dos utensílios de pedra neandertais era complicada e sutil (...)” e que “(...) Curiosamente, o conjunto dessas técnicas - a que os pré-historiadores nomeiam indústria musteriense – se manteve quase idêntico por 300.000.” Os aperfeiçoamentos das ferramentas ocorriam de forma bastante vagarosa, ao longo de centenas de gerações. Assim, durante milênios, nossos antepassados – para a formação do homem moderno contribuíram diversas espécies de hominídeos do grupo homo – foram aperfeiçoando, através da prática, a eficácia de suas técnicas de sobrevivência.
“Dentro de um grupo local de bando não
há nada que se assemelhe às trocas econômicas modernas, nem nada parecido com o
individualismo moderno. Não havia nenhum Estado para tiranizar as pessoas nesta
fase do desenvolvimento político; na verdade os seres humanos experimentavam
aquilo que o antropólogo social Ernest Gellner chamou de ‘tirania dos primos’.
Isto é, seu mundo social se limitava aos círculos de parentes que determinavam
o que fazia, com quem se casava, como adorava Deus e praticamente tudo o mais
na vida. As atividades de caça e coleta são realizadas por famílias ou grupos
de famílias.” (Fukuyama, pág. 72).
Premido
pelo gradual desaparecimento de caça, que começa a rarear e se afastar para
regiões setentrionais mais frias com o final do último período glacial há cerca
de 10 mil anos, os humanos, provavelmente as mulheres destes bandos, inventaram
ou descobriram a agricultura. Presume-se que este processo ocorreu através da
observação do crescimento de plantas, cujas sementes coletavam e consumiam. Onde
no verão passado tinham deixado cair sementes de um vegetal; trigo, arroz,
sorgo ou painço, agora haviam plantas destas mesmas gramíneas. Assim, o que
fizeram, foi repetir o procedimento em escala maior com o objetivo de obter
grande número de sementes, o que funcionou. No período de cerca de 10.000 AEC
até 4.000 AEC, segundo o biólogo Edward O. Wilson em seu livro The social conquest of Earth (A
conquista social da Terra), a agricultura e a domesticação de animais foram inventadas
de maneira independente em oito locais do planeta. Nas Américas, entre os
indígenas do Leste dos Estados Unidos, aproximadamente em 4.000 AEC; na
Mesoamérica em 8.000 AEC e na costa Oeste da América do Sul em cerca de 7.000
AEC. Na África subsaariana por volta de 7.000 AEC e no Oriente Médio em 9.000
AEC. Na Ásia entre 8.000 e 7.500 AEC (na China, em dois locais) e em 6.500 AEC
na Oceania (Nova Guiné). Sobre esta segunda revolução (a primeira foi o domínio
do fogo) na história da espécie humana escrem os especialistas Mazoyer e
Roudart:
“Entre 10.000 e 5.000 anos antes da nossa
Era, algumas dessas sociedades neolíticas tinham, com efeito, começado a semear
plantas e manter animais em cativeiro, com vistas a multiplica-los e utilizar
seus produtos. Nessa mesma época, após algum tempo, essas plantas e esses
animais especialmente escolhidos e explorados foram domesticados e, dessa
forma, essas sociedades de predadores se transformaram por si mesmas,
paulatinamente, em sociedades de cultivadores.” (Mazoyer & Roudart,
pág.70).
Em
algumas localidades do planeta, notadamente na China, no Oriente Médio e na
Mesoamérica, a invenção da agricultura levou também à formação de grandes
centros urbanos. A partir do V milênio AEC a região situada entre os rios
Tigris e Eufrates, na Mesopotâmia (atual região compreendendo o Iraque, parte
da Síria e do Irã), viu o aparecimento de dezenas de cidades que ao longo dos
séculos seguintes evoluíram para cidades-estados. Nelas, em paralelo ao
desenvolvimento político, a religião também tomou formas mais sofisticadas:
surgiram as divindades protetoras das cidades, em torno das quais se organizou
um corpo de sacerdotes que gerenciava toda produção agrícola, sua armazenagem e
distribuição. Os religiosos também detinham o monopólio do conhecimento da época,
como a matemática, a medicina a astronomia e a arquitetura da construção de
templos. As cidades-estados também instituíram os primeiros exércitos formados
por guerreiros profissionais, mantidos pelo Estado. Em suma, uma estrutura
politico-administrativa cujo objetivo era manter a hegemonia da elite
governante e da elite religiosa, através do trabalho do povo na agricultura e
outros serviços necessários à cidade (oleiros, marceneiros, pedreiros,
carregadores, balseiros, etc.). Desta estrutura político-social e econômica,
que se espalhou por outras regiões do globo, evoluíram os primeiros impérios e
se desenvolveram novas tecnologias agrícolas, de construção, de metalurgia,
navegação, bélicas, etc., e avançaram os conhecimentos teóricos, ao longo da
história humana até hoje. Tudo começou com a invenção da agricultura.
No
entanto, há historiadores que apontam para o fato de que a invenção da
agricultura não trouxe somente benefícios para a humanidade. Escreve o
historiador Yuval Noah Harari em seu clássico Uma breve história da humanidade:
“Os caçadores-coletores conheciam os
segredos da natureza muito antes da Revolução Agrícola, já que sua
sobrevivência dependia de um conhecimento íntimo dos animais e das plantas que
coletavam. Em vez de prenunciar uma nova era de vida tranquila, a Revolução
Agrícola proporcionou aos agricultores uma vida em geral mais difícil e menos
gratificante dos caçadores-coletores. Estes passavam o tempo com atividades
mais variadas e estimulantes e estavam menos expostos à ameaça de fome e
doença. A Revolução Agrícola certamente aumentou o total de alimentos à
disposição da humanidade, mas os alimentos extras não se traduziram em uma
dieta melhor ou mais lazer.” (Harari, pág. 89).
Ficam
algumas perguntas que, baseados nos conhecimentos que hoje temos das ciências
podemos fazer, como:
A humanidade teria sobrevivido se não
tivéssemos desenvolvido a agricultura?
Na condição de nômades
caçadores-coletores, teríamos desenvolvido uma tecnologia sofisticada,
aumentando as possibilidades de sobrevivência?
Por quanto tempo a espécie homo teria
perdurado, já que as fontes de alimentação estariam cada vez mais escassas,
como provam extinções de animais provocadas por nossos antepassados?
Sem a invenção da agricultura, muito provavelmente não estaríamos aqui
hoje.
Fontes consultadas:
Silvana
Condemi e François Savatier. Neandertal, nosso irmão – Uma breve história do
homem. Editora Vestígio. São Paulo: 2018, 236 p.
Fukuyama,
Francis. As origens da ordem política. Editora Rocco. Rio de Janeiro: 2013, 589
p.
Wilson,
E.O. The social conquest of Earth. Liveright Publishing Corp. New York, NY:
2012, 331 p.
Mazoyer,
M. Roudart L. História das agriculturas no mundo – Do neolítico à crise
contemporânea. Editora Unesp. São Paulo: 2008, 567 p.
Harari,
Noah Yuval. Sapiens – Uma breve história da humanidade. L&PM Editores.
Porto Alegre: 2012, 459 p.
(Imagens: pintura primitivista americana)
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