O ambiente científico-filosófico do Renascimento italiano

quarta-feira, 16 de junho de 2010
“É próprio do ceticismo ser perigoso. Ele desafia as instituições estabelecidas. Se ensinarmos a todo mundo, inclusive os estudantes do segundo grau, os hábitos do pensamento cético, eles provavelmente não vão restringir seu ceticismo aos UFOs, comerciais de aspirina e às mentes canalizadas de 35 mil anos de idade. Talvez comecem a fazer perguntas incômodas sobre as instituições econômicas, sociais políticas e religiosas. Talvez desafiem a opinião de quem está no poder. Então, o que aconteceria conosco?”    -   Carl Sagan   -   O mundo assombrado pelos demônios


O Renascimento em seus diversos aspectos
A diferença básica entre o homem medieval e o homem renascentista era a maneira como ambos encaravam o mundo. O homem medieval habitava um universo ordenado por Deus que, segundo a crença, havia dividido a sociedade em religiosos, nobres e camponeses; não havia possibilidade de se mudar esta ordem social. Cada classe devia, à sua maneira, contribuir para o funcionamento e manutenção da sociedade. Os interesses do todos os membros da sociedade estavam submetidos à vontade de Deus e, como esta já estava estabelecida (segundo a intérprete da vontade de Deus, a igreja) não havia o que mudar – tratava-se de uma sociedade estática. Já que não havia muito no que pensar, as pessoas se preocupavam constantemente com a salvação da própria alma – sobre a qual não tinham certeza – e assim descuidavam-se dos assuntos mundanos (e por que se importar se Deus estava cuidando disso?). A religião tinha um papel primordial para estas vastas populações ignorantes e supersticiosas. Foi somente na Alta Idade Média, a partir do século XIII que aos poucos a sociedade européia passou por alterações de caráter econômico, social e cultural, o que acabou provocando profundas alterações nos interesses intelectuais e espirituais do homem, mudando suas expectativas em relação à vida.
Já o sucessor do homem medieval, o homem renascentista, enxergava o mundo com outros olhos. Seus interesses começavam, pouco a pouco, a se direcionar para este lado da vida: festas populares, comércio, crescimento das cidades, camponeses abandonando seus senhores e emigrando para as cidades. As estruturas sociais haviam se tornado mais flexíveis e os interesses pelos aspectos agradáveis da vida – antes condenados pela Igreja e por uma visão apocalíptica na religiosidade popular – haviam aumentado. Este novo tipo de mentalidade teve importância em vários campos.
O homem mais característico do Renascimento, Leonardo da Vinci (1452-1519), foi uma mente universal. A princípio dedicou-se à pintura e à escultura. Espírito curioso, estudou anatomia, botânica, geologia, astronomia, mecânica e matemática. Leonardo é considerado por muitos autores como o típico cientista do Renascimento, já que foi o primeiro a enfatizar a importância do uso da matemática nas ciências. Além de artista e pesquisador, Leonardo também foi inventor, músico, poeta, sendo considerado um dos maiores gênios da humanidade.
Nas artes, retorna o interesse pelos autores antigos clássicos. A Antigüidade grega e latina volta a ser estudada: a filosofia de Platão, Aristóteles, o epicurismo, o cinismo e o ceticismo, Cícero Sêneca e Lucrécio; todos voltam a se tornar acessíveis para um maior número de pessoas. Os historiadores gregos Tucídides e Heródoto, os romanos Salústio, Lívio e Tácito voltam a ser lidos e comentados; a Ilíada e a Odisséia de Homero, a Teogonia de Hesíodo, são textos que voltam a figurar na ordem do dia. Na literatura, como na pintura, os temas relacionados com a mitologia da Antigüidade tornam-se assunto principal. Um dos aspectos mais importantes do renascimento é o humanismo. Originalmente, humanista era no século XIV aquele que se dedicava à reestruturação dos estudos universitários. Mais tarde, o conceito foi estendido a todos os intelectuais que se dedicavam aos estudos humanísticos, ou seja: a filosofia, a história, a literatura e a poesia, etc.
Não é que os autores clássicos não fossem conhecidos dos intelectuais da Idade Média. Mas o homem renascentista comparou o ideal clássico ao seu próprio mundo e daí tentou tirar novas conclusões. Neste contexto Francisco Petrarca (1304-1374) foi considerado o primeiro humanista, distanciando-se de Aristóteles e valorizando o socratismo, mais voltado ao conhecimento de si mesmo. Outro aspecto importante da cultura humanista é a retomada dos textos originais do Evangelho, em sua versão grega. Principiava então a reavaliação dos escritos originais da religião cristã, antes exclusividade da igreja católica, passando pelo crivo dos humanistas, que identificavam inserções realizadas ao longo dos séculos pelos diversos copistas nos mosteiros. Um dos primeiros filólogos a enveredarem por esse caminho e iniciar uma forte tradição nesta área foi Lourenço Valla, que provou a falsidade de um documento no qual o imperador Constantino (séc.IV) supostamente transferia o controle do império ao papa.
Na filosofia o Renascimento caracterizou-se pela retomada dos textos originais dos filósofos clássicos, que então estavam disponíveis em primeira mão e não através de traduções do árabe, como na Baixa Idade Média. Com relação à filosofia platônica, seu maior expoente foi Marcílio Ficino, que em 1462 recebeu de Cosme Médici uma vila nos arredores de Florença, onde fundaria a “Academia Platônica”. Em suas atividades, traduziu para o latim todos os principais textos do platonismo e iniciou a divulgação das doutrinas herméticas (ensinamentos supostamente relacionados com a mítica figura egípcia Hermes Trimegistro). Outro expoente do platonismo renascentista foi o pensador Pico de Mirândola, que ao lado do platonismo também divulgou a cabala, ensinamento místico com origem no judaísmo medieval. Pedro Pomponazzi (1462-1525) foi um dos maiores aristotélicos do período renascentista. Em seus escritos o filósofo discute a imortalidade da alma e demonstra que não há necessidade de explicações sobrenaturais para fenômenos naturais, antecipando um posicionamento logo seguido pela ciência.
O maior expoente da filosofia política neste período foi Nicolau Maquiavel (1469-1527), autor de uma das obras mais importantes da história da filosofia política, “O Príncipe”. Neste livro, Maquiavel parte das condições sócio-políticas reinantes na península itálica em seu tempo e desenvolve um manual para que o príncipe ou governante conquiste e mantenha o poder. A obra não considera aspectos morais. Efetivamente, explorando as fraquezas humanas (cobiça, inveja, sede de poder) o príncipe consegue tomar e manter o poder. Por esta visão amoral do comportamento humano, a obra popularizou a expressão “os fins justificam os meios”.
Diferença entre a ciência renascentista e a medieval
A visão do universo na Idade Média era bastante diferente da visão renascentista. Na sociedade medieval, o foco das preocupações humanas era para assuntos relacionados com a divindade. O universo havia sido criado por Deus e neste o homem tinha apenas um papel de personagem na história da Salvação. A sociedade, por sua vez, era mantida por Deus e não havia uma possibilidade de mudança, de progresso. Analisando a visão medieval, W.H. Werkmeister, em seu livro A Philosophy of Science escreve:
“No que concerne à ciência e à filosofia, a síntese medieval culminou no todo-abrangente sistema de Tomás de Aquino. O racionalismo escolástico foi aqui fundido ao misticismo cristão, e o conhecimento dos gregos foi soldado aos ensinamentos da Igreja, formando uma visão única do universo. Fins últimos eram vistos por trás de todo processo da natureza. Uma inteligência divina permeava o todo. E a vontade de Deus – mesmo incompreensível em detalhes – dava racionalidade e sentido a todas as coisas. O fato de que uma criatura de Deus pudesse existir à parte do curso da Providência, de que uma única pedra pudesse cair sem o conhecimento e o planejamento do Construtor do Céu e da Terra, era um pensamento intolerável.” [...] ”esta visão tomística do mundo era sublime em sua concepção. Foi pelo menos, como exaltado, comparável à melhor criação do gênio grego. Mas, infelizmente, era amarrada pelas falsas concepções das leis naturais feitas por Aristóteles e o esquema geocêntrico de Ptolomeu.” (Werkmeister, 1940, p. 3, tradução nossa).
Com as mudanças sociais, econômicas e culturais proporcionados por diversos fatores já citados e ocorridas no período do Renascimento, a ciência deixou de considerar o universo explicado por uma filosofia, o aristotelismo; deixou de se preocupar com o “por que” medieval e passou a se interessar pelo “como”. Os filósofos-cientistas deste período (Copérnico, Kepler, Leonardo, Galileu, Servet, entre outros) passaram a realizar experiências. Por sua vez, desta maneira descobriram a existência de “leis” inerentes aos fenômenos naturais, o que permitiu a aplicação cada vez maior da matemática. O desenvolvimento gradual da ciência fez com que o homem vislumbrasse a possibilidade de dominar a natureza, compreendendo suas leis, e ao mesmo tempo podendo extrair dela as riquezas. Em Epistemologia das Ciências Hoje, Carlos Henrique Escobar, escreve:
“Na leitura que “espontaneamente” se faz da revolução no pensamento provocado pela física, se situam, sobretudo, os temas colonialistas do poder do “homem sobre os meios”, mas de um poder decididamente do “homem burguês”, que então se sentia o “homem universal” e contrastava com o homem medieval contemplativo.” (Escobar, 1975, p. 91).
Foi no período do Renascimento que se desenvolveu o fundamento do que se convencionou chamar de “redução naturalista”, isto é, a “exigência de encontrar em todas as coisas e em cada uma delas o princípio explicativo natural, excluindo todos os outros." (Reale, Antiseri, 1990, p. 151). Galileu, o grande cientista do período, foi o iniciador de uma atividade que hoje domina o universo cultural da sociedade: a pesquisa científica.
O aspecto religioso no Renascimento
O período medieval foi dominado pela presença quase hegemônica da igreja católica. Apesar do grande número de seitas heréticas – combatidas fortemente pela Inquisição criada no século XIII – e de opositores à visão tomística, o catolicismo conseguiu manter-se por mais de um milênio. Todavia, por diversos fatores, o paradigma medieval acabou se exaurindo , permitindo o aparecimento de novas interpretações. Thomas Kuhn, referindo-se a mudanças de paradigmas, escreve:
“A transição de um paradigma em crise a outro novo, do qual possa surgir uma nova tradição de ciência normal, está longe de ser um processo de acumulação, ao qual se chega por meio de uma articulação ou ampliação do antigo paradigma. É muito mais uma reconstrução do terreno, a partir de novos fundamentos, reconstrução que muda algumas das generalizações teóricas mais elementares do terreno, assim como também muito dos métodos e aplicações do paradigma.” (Kuhn, 2006, p.139).
A análise aqui feita sobre a mudança de paradigma na ciência, aplica-se também aos paradigmas religiosos. O homem deixou sua visão fatalista, sua completa submissão a Deus e a seus desígnios, e cogitou da possibilidade de uma participação humana maior na história da Salvação. A partir desta visão, iniciam-se os questionamentos da hierarquia e dos dogmas da igreja católica, (já ocorridos a partir do final da Idade Média) e a possibilidade de um contato com a divindade, sem ação de intermediários (os sacerdotes). Paralelamente a este questionamento da teologia e da organização da igreja, surgiram novas forças, que reinvindicavam uma maior autonomia social, econômica e política, sem o controle da instituição religiosa.
A proibição dos lucros, a posse das terras da Igreja e a influência junto ao governante, eram campos onde a hierarquia religiosa competia com a ascendente burguesia comercial. Esta, então, tinha o maior interesse possível em apoiar os movimentos que se antepunham ao ainda restante poderio da Igreja. Neste contexto, a Reforma Protestante e outros movimentos de ruptura institucional com a Igreja, foram apenas o coroamento de um longo processo, que já se iniciara no século XII, após as Cruzadas.
Conclusão
O Renascimento foi uma das fases mais revolucionárias de mudanças de paradigmas da humanidade – se não a maior. Neste período se encontram as origens daquilo que no decorrer dos próximos 600 anos veio a constituir a civilização moderna ocidental. No Renascimento encontramos:
a) Uma nova visão do homem; agente de seu próprio destino, não mais sujeito a Deus, mas sujeito da história. O homem é chamado a construir nações através de sua própria ação; da ação do Príncipe (Maquiavel).
b) O mundo é para ser estudado; o homem deve conhecer as leis da natureza, a fim de dominá-la e desenvolver a tecnologia. “Saber é poder” (Francis Bacon).
c) O homem não precisa de intermediários para conhecer a vontade de Deus ou para contatá-Lo. Não precisa da hierarquia sacerdotal para comunicar-se com a divindade, já que todo crente é um sacerdote e pode interpretar livremente a Sagrada Escritura (Lutero).
d) O homem não aspira mais ao ascetismo, como o homem medieval. A nova maneira de agradar a Deus é através do trabalho duro, no comércio e na manufatura. O sucesso econômico de um homem é indício de ter sido escolhido por Deus (Calvino).
Bibliografia
ADLER, M ; WOLFF P. Foundations of Science and Mathematics. Encyclopaedia Britannica, Inc.: Chicago, 1960, 233 p.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental Vol. I. Editora Globo: Porto Alegre, 1971, 581 p.
ESCOBAR, Carlos Henrique. Epistemologia da Ciências Hoje. Pallas S.A.: Rio de Janeiro, 1975, 176 p.
GOMES, Morgana. A vida e o pensamento de Galileu Galilei. São Paulo: Editora Minuano, 2007, 98 p.
KUHN. T. S. La Estrutura de las Revoluciones Cientificas. Fondo de Cultura Economica de Argentina S.A.: Buenos Aires, 2006, 319 p.
REALE, G. ANTISERI, D. História da Filosofia – Volume II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 233 p.
SAGAN, Carl. O mundo assombrado pelos demônios, Editora Schwarcz Ltda.: São Paulo, 2006, 509 p.
WERKMEISTER, W. H. A Philosophy of Science. Harper & Brothers Publishers: New York, 1940, 551 p.

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