A "civilização ocidental judaico-cristã"

sábado, 28 de dezembro de 2019
Numa economia global todos os desafios e mudanças são universais.”   -   Robert Heller (1932-2012) jornalista britânico


Voltou a circular na imprensa uma vetusta expressão: “civilização ocidental judaico-cristã”. Há muito em desuso, principalmente devido aos modernos estudos de história, sociologia, antropologia e etnologia, a anacrônica locução voltou à tona por força da onda conservadora que nos últimos tempos vem se manifestando nas sociedades europeias e nas Américas.

Nos Estados Unidos a expressão civilização ocidental judaico-cristã voltou à mídia depois da eleição de Donald John Trump à presidência daquele país. O presidente eleito teve, como se sabe, grande apoio dos cristãos fundamentalistas, que representam aproximadamente 25% do eleitorado americano. 

No Brasil, a expressão ficou relativamente esquecida depois da redemocratização, da queda do Muro de Berlim e do advento das comunicações globais. Em uma economia globalizada, da qual participam países não ocidentais, não judeus e não cristãos, não havia mais sentido em se falar em uma civilização ocidental judaico cristã. O conceito da sociedade global mudou a maneira de como as pessoas enxergam o planeta.   

Depois das últimas eleições, quando com apoio de grupos conservadores e do eleitorado evangélico Jair Messias Bolsonaro se elegeu presidente, a expressou voltou novamente a ser empregada. Recentemente mais ainda, com a intenção do presidente Bolsonaro de fundar um novo partido, o Aliança Pelo Brasil (APB). A agremiação, segundo reportagem do jornal Valor, “reconhece o lugar de Deus na vida do povo brasileiro, que é religioso e educado nas bases do cristianismo”. Além disso, o programa do partido relativiza o Estado laico, previsto na Constituição Federal, tem forte tendência nacionalista e se coloca contra o que chama de “globalismo”, provavelmente associando-o ao “esquerdismo” ao qual constantemente se refere o ministro das Relação Exteriores, Ernesto Araújo.

Em tal contexto é sintomático que volte à baila a referência à civilização ocidental judaico-cristã. Passa-se por cima do fato de que a civilização chamada de judaico-cristã é produto histórico da interação de centenas de culturas; a começar pela grega e romana, pela cultura dos germanos, dos celtas, dos povos da Ásia Menor (origem da cultura judaica), das culturas árabes, africanas e asiática. Na base ideológica desta miscigenação de culturas está a filosofia grega, o direito romano e a religião cristã, os quais, por sua vez, também são resultado do amálgama de outras culturas. Para formar o que hoje ainda se quer chamar de civilização ocidental judaico-cristã, é preciso considerar as contribuições de centenas, talvez milhares de povos – mais ainda nos atuais tempos das comunicações globais e da internet.

O mundo atual, a civilização mundial, é produto da interação das inúmeras culturas humanas. É formada pela circulação de produtos e ideias de todo o globo. É o intercâmbio da informação e do conhecimento que promovem o progresso; o apego desnecessário a visões políticas estáticas e anacrônicas, não ajudarão o país na melhor compreensão do mundo e de seu papel nele.

(Imagens: pinturas de Abdoulaye Konaté)

Meio ambiente, quem se importa?

sábado, 21 de dezembro de 2019
"O consumismo representa a outra face da produtividade: a economia capitalista de mercado funciona apenas se houver cada vez mais produção para que se consuma cada vez mais, como denunciava Wallerstein."   -   Domenico de Masi   -   O futuro chegou - Modelos de vida para uma sociedade desorientada


O Brasil está sendo abalado por uma série de catástrofes ambientais ao longo dos últimos meses. Grileiros de terras provocam extensos desmatamentos e incêndios na Amazônia e no Cerrado. Embarcações ainda não identificadas despejam imensos volumes de petróleo no oceano, poluindo a costa da região Nordeste. Além destes impactos, não se percebe qualquer avanço nas questões ambientais urbanas, que já afetam o país há décadas, como a falta de saneamento e a correta gestão resíduos. No campo, há uma escalada na aprovação e no uso de agrotóxicos, muitos dos quais já banidos na Europa e nos Estados Unidos. Apesar de todos estes fatos, não há medidas concretas por parte do governo; não se estabelecem metas, não há planejamento e são pífias as ações de melhoria.

A maior parte da população parece encarar tais acontecimentos com passividade. As longas reportagens sobre a Amazônia e as praias nordestinas, veiculadas pelas principais redes de televisão, parecem não ter afetado a bonomia do telespectador brasileiro. A julgar pela capacidade de se indignar com tais fatos, parece que a proteção aos recursos naturais nunca ocupou lugar importante no rol das preocupações diárias do cidadão médio. Mesmo assim, em uma pesquisa realizada em 2018 pelo IBOPE (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) a pedido da ONG WWF (Worl Wide Fund for Nature) o “meio ambiente e as riquezas naturais” constam como o maior orgulho nacional para os brasileiros entrevistados.

Valorizar uma ideia e se envolver diretamente com ela são coisas diferentes. Por exemplo, ninguém nega o valor da cultura, do conhecimento e de seu principal instrumento: o livro. Mas entre valorizar e efetivamente envidar esforços, horas a fio, na leitura de uma obra às vezes árida, há uma diferença. Falta de tempo, de recursos, de preparo intelectual, de incentivos; são vários os fatores que limitam o acesso ao conhecimento.

Com relação ao meio ambiente a situação é parecida. Para poder efetivamente se envolver em alguma ação de proteção à natureza é preciso ter conhecimento mínimo sobre o problema (suas causas, impacto e consequências), ter recursos (alguma renda, tempo, saúde) e ter contato com algum grupo organizado capaz de exercer influência sobre o fato, entre outros fatores.

No atual situação política e econômica do Brasil os incentivos são poucos, seja por parte do governo ou da sociedade civil. A administração federal, por exemplo, fez uma série de mudanças na política ambiental do país, extinguindo e tirando a autonomia de secretarias e agências, demitindo funcionários experientes, alterando leis, cortando verbas; ações que já são apontadas como tendo contribuído para o descontrole da situação na floresta amazônica. O setor privado, limitado pela queda no faturamento e a falta de perspectivas de crescimento da economia a curto e médio prazos, reduziu investimentos na ampliação e modernização de sua infraestrutura produtiva e, consequentemente, em tecnologias de combate à poluição. Medidas de otimização de processos, aumento da eficiência energética e redução no uso de insumos, também tiveram que ser deixadas para o futuro.

Por fatores culturais, econômicos e até ideológicos, a preocupação com a questão ambiental parece temporariamente estar perdendo força na sociedade brasileira. Enquanto isso, na Europa, pesquisa recente indica que o tema do meio ambiente – principalmente as mudanças climáticas – é o assunto mais preocupante para 40% dos entrevistados, seguido da questão do emprego (34%).  

(Imagens: pinturas de Gotthardt Kuehl)

Cana-de-açúcar na Amazônia

sábado, 14 de dezembro de 2019
"O capital produtivo cedeu espaço para a hegemonia do capital fictício. A financeirização conquistou o mundo. A ideologia vinda da universidade, travestida de ciência, se fez presente sob a grande capa de nome 'neoliberalismo'".   -   Paulo Ghiraldelli   -   A filosofia explica Bolsonaro


Em suas iniciativas de gradualmente abolir o que considera impedimento ao desenvolvimento da região amazônica, o governo Bolsonaro extinguiu a lei que proibia a cultura da cana-de-açúcar na Amazônia, Pantanal e Bacia do alto Paraguai. O novo decreto foi assinado pelo presidente, Jair Bolsonaro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina.

A proibição do cultivo de cana-de-açúcar na região amazônica havia sido decidida em 2009, através do Decreto Federal nº 6961, que estabelecia o zoneamento agroecológico da cultura de cana-de-açúcar. À época o setor sucroalcooleiro brasileiro estava em franco desenvolvimento, com planos de ampliar suas exportações para vários países. O então presidente Lula, transformou-se em uma espécie de garoto-propaganda do uso do etanol como combustível para automóveis.

Por outro lado, instituições internacionais criticavam então o uso de produtos agrícolas para fabricação de combustíveis, ao invés de destiná-los à preparação de produtos alimentícios. Além da cana-de-açúcar, incluíam-se nesta lista o milho, bastante usado nos Estados Unidos para fabricação de etanol automotivo, além da soja e a palma, cujos óleos alimentícios eram transformados em biodiesel. O executivo-sênior da ONU à época, Jean Ziegler, chamou de “crime contra a humanidade” a utilização de parte das safras de alimentos como combustíveis. Hugo Chaves, presidente da Venezuela, grande exportadora de petróleo, também se manifestou contra o etanol. Além disso, havia também a preocupação levantada por muitas ONGs ambientalistas, de que com o aumento da demanda mundial do combustível – o governo planejava tornar o Brasil um dos grandes fornecedores mundiais de etanol – a cultura da cana-de-açúcar acabaria por invadir a Amazônia, contribuindo também com a derrubada da floresta.

Foi neste contexto que se criou o zoneamento ecológico da cultura da cana-de-açúcar. A iniciativa garantia para o mercado mundial de que o Brasil não produziria etanol às custas da floresta amazônica. Com esta vantagem e mais o fato de que o etanol de cana era energeticamente mais eficiente do que o álcool de milho, parecia se abrir uma grande oportunidade para o setor sucroalcooleiro nacional.  


Com essas perspectivas internas e externas o setor investiu no aumento do número de usinas de álcool. No entanto, a partir de 2012, por diversas razões – preço do combustível no mercado interno, queda na produtividade das culturas, concorrência do álcool de milho americano – o setor entrou em uma crise, da qual ainda não se recuperou inteiramente. Parte do etanol que o país hoje consome é importado dos Estados Unidos e produzido a partir do milho.

O Brasil ainda possui extensas áreas, fora da área do zoneamento agroecológico, para as quais a cultura da cana-de-açúcar poderia se expandir. Na Amazônia a cultura da cana, segundo especialistas, por demandar áreas de plantio de grande extensão, forçaria as pastagens e outras culturas a ocuparem outros espaços ainda florestados. Outro aspecto é que a cultura da cana tem um impacto chamado de “efeito de borda”, ou seja, sua influência se estende até um quilômetro dentro de áreas florestais adjacentes, debilitando estes ecossistemas. Estudos mostram que a planta tem alta demanda de água e que sua produtividade no clima quente e úmido da Amazônia é menor do que no Sudeste. 

Para iniciar a produção de etanol será necessário construir diversas usinas de álcool e açúcar na região. Haverá recursos para tal? Caso estas usinas não sejam construídas, como será processada a cana-de-açúcar? Será transportada para o Nordeste ou Sudeste, onde estão os grandes engenhos, mas a que custo? Valerá mesmo a pena plantar a cana-de-açúcar na Amazônia?

(Imagens: fotografias de August Sander)

Notas rápidas (homenagem a G. C. Lichtenberg)

sábado, 7 de dezembro de 2019









Mudanças climáticas: mais rápidas do que esperado 



Não faltam avisos. Há anos que ambientalistas, climatologistas e outras especialidades científicas, ligados à questão do clima e do meio ambiente, vêm divulgando alertas. Dados, números e fatos estão amplamente disponíveis e são diariamente disseminados em relatórios técnicos, matérias jornalísticas e seminários. Só não conhece o assunto quem não quer.

Não há mais como ignorar as mudanças do clima da Terra, provocadas pelo aquecimento da atmosfera terrestre, devido ao aumento da concentração de gases de efeito estufa. A ciência também já tem certeza de que o acúmulo de emissões está sendo provocado pelas atividades humanas, como o uso de combustíveis fósseis e a derrubada e queima de vegetação original – em sua maior parte florestas tropicais. Também contribuem as atividades agrícolas, pecuárias e industriais.

O aquecimento da atmosfera provoca aumento da temperatura dos oceanos, tecnicamente o grande sistema de ar condicionado da Terra, responsável pela regulação da temperatura média do planeta. Além disso, também é nos mares que se originam as nuvens das chuvas, as fortes tempestades tropicais e onde é filtrado cerca de 85% de nossa atmosfera através dos microrganismos que habitam os oceanos. 

A humanidade está interferindo no clima do planeta de tal maneira, que em curto espaço de tempo poderá transformar regiões férteis em desertos, florestas em savanas, inundar planícies, derreter geleiras e mudar a velocidade e direção de correntes marítimas – coisas que em condições naturais só ocorrem ao longo de dezenas ou centenas de milhares de anos.

A maior parte da população mundial ainda não se deu conta da gravidade do fato. Governos, empresas e empresários, em sua grande maioria, não dão importância ao que está ocorrendo. Por outro lado, comenta-se que a maior parte dos cientistas e especialistas não estão relatando todos as implicações do fato. Aparentemente a temperatura da Terra está aumentando em uma velocidade mais rápida do que a esperada pela maioria dos cientistas, o que deverá acelerar ainda mais o processo das mudanças do clima.

A situação é mais urgente do que parecia de início, há quarenta anos, quando o fenômeno foi descoberto. Se a temperatura do planeta efetivamente subir além do esperado e de maneira mais rápida, já enfrentaremos grandes catástrofes ainda antes do final deste século.

A pergunta cuja resposta interessa a nós, brasileiros, é saber de que maneira o governo vem se organizando, preparando ações que possam proteger nosso país dos efeitos deste  fenômeno. 


(Imagem: gravura representando G. C. Lichtenberg)

Livros neste Natal!

domingo, 1 de dezembro de 2019

As quatro fases de convivência com a natureza

sábado, 30 de novembro de 2019
"A velhice é a mais inesperada de todas as coisas que acontecem a um homem."   -   Leon Trotsky   -   Citado em O livro das citações de Eduardo Giannetti


O relacionamento do homem com a Natureza mudou ao longo da existência da raça humana. Os mais antigos registros sobre como nossos antepassados se relacionavam com o mundo natural chegaram-nos através das pinturas rupestres, encontradas em cavernas localizadas no sudoeste da França e noroeste da Espanha e datadas do período glacial, entre 35.000 a 17.000 AEC. Bastante conhecidas, as pinturas retratam animais (alguns dos quais extintos), cenas de caça e, com menos freqüência, figuras humanas vestindo peles de animais. O significado destas pinturas ainda não foi explicado em todos os seus aspectos, apesar das inúmeras teorias apresentadas até hoje. Todavia, tudo indica que neste período os humanos ainda não haviam desenvolvido uma distinção clara entre sua vida diária e a natureza, já que o grau de desenvolvimento tecnológico era insuficiente a ponto de alterar significativamente o meio ambiente onde viviam. Em outras palavras, é pouco provável que o homem se sentisse como um ser estranho e oposto ao mundo que habitava. 

A invenção da agricultura e de ferramentas como a foice e o arado primitivo, há aproximadamente 12.000 anos, provocou uma mudança na maneira do homem se relacionar com a natureza. Surgia a natureza “humanizada”, ocupada e transformada pelo homem; constituída pela aldeia, seus domínios e, principalmente, pela atividade agrícola, que ocupava extensas áreas em torno das moradias e ao longo dos rios, propiciando grandes colheitas. Os excedentes agrícolas permitiram a armazenagem para consumo posterior e troca com outras comunidades por mercadorias de que não se dispunham. O comércio de produtos agrícolas como o trigo, a cevada, o azeite de oliva, e o vinho, associados à manufatura e comércio de produtos cerâmicos, pequenos objetos de metalurgia e joalheria, possibilitaram a ocupação de um numero cada vez maior de indivíduos, resultando na evolução da aldeia para a cidade. 

Com o passar do tempo, outras atividades foram agregadas à agricultura e ao comércio, centralizando a economia da região em uma só cidade, aumentando seu tamanho e domínio sobre outras aldeias e cidades. Desta forma, surgiram as condições econômicas e políticas propícias para que se formasse a elite econômica, os sacerdotes e governantes (que geralmente eram constituídos pelos mesmos indivíduos), os exércitos regulares e as religiões mantidas pelos templos. Comentando este período limítrofe entre a pré-história e a história, Don Cupitt, filósofo inglês contemporâneo, escreve: “(...) as antigas mitologias acertam ao dizer que os deuses foram os primeiros reis, os primeiros senhores da terra e a primeira classe alta. É razoável postular que a crença nos deuses desse tipo essencial se desenvolveu lentamente no período após 7.500 AEC., quando tiveram início as atividades agrícolas e a fixação ao solo. Os deuses corporificavam e eram as concentrações maciças da autoridade sagrada e poder disciplinar, necessária para a evolução das primeiras sociedades estatais. A única maneira de transformar um nômade em cidadão era induzir nele o temor a um deus.” (citado de Depois de Deus, Ed. Rocco, 1999). A cidade e os campos agrícolas faziam parte da natureza dominada e conhecida pelo homem; este era o seu lar. Ele estava familiarizado com seus habitantes, os animais e as plantas, e com suas transformações; as cheias dos rios e a seqüência das estações. Para além dos limites desta natureza “humanizada”, relativamente ordenada e conhecida, encontrava-se o caos, o mundo selvagem, sujeito à própria sorte e ainda não ordenado pela ação do homem. Era um lugar a ser evitado, dominado por forças e entidades estranhas e mais fortes do que o homem. Esta natureza selvagem, contraposta à natureza humanizada – quase sua antípoda –, estava localizada na floresta, nas montanhas isoladas e nos desertos, nos pântanos, nos mares e nas regiões remotas. Este mundo era pouco frequentado; só aventureiros ou fugitivos lá penetravam. Ali habitavam os animais selvagens, pessoas perigosas ou aqueles que por alguma razão haviam se isolado da sociedade. Na maioria das culturas esta região selvagem e desabitada era a moradia dos personagens míticos, associados à religião e às lendas populares. Como não lembrar da “Odisseia”, poema atribuído a Homero, no qual são descritas as viagens de Ulisses pelo mundo “não-humanizado”, habitado por criaturas como os gigantes Ciclopes, os antropófagos Lastrigões e as Sereias, que atraiam para a morte aqueles que as ouvissem. A epopeia babilônica de Gilgamesh faz referência à cidade, oposta à remota região habitada pelo mítico ser Enkidu. Na visão de mundo do Antigo Egito também havia uma fronteira imaginária entre o vale do Nilo, onde se localizava a civilização (com todos os seus benefícios materiais e espirituais para os vivos) e a região externa, principalmente o Ocidente, para onde se estendia o deserto sem fim, habitado por demônios e espíritos malignos.


Esta maneira de enxergar o meio ambiente, a dicotomia “humanizado e não-humanizado” perdura através de toda a história da humanidade, assumindo diversas formas, até que a partir do século XVI as Grandes Descobertas, os avanços da Ciência e a crítica filosófica, passam gradualmente a desmistificar a natureza "não-humana", desembaraçando-a de todo aspecto sobrenatural, que as regiões remotas e desabitadas ainda tinham no imaginário popular. Ao final do processo de mudança de paradigma, aproximadamente no início do século XIX, a natureza selvagem e inexplorada deixava de inspirar medo ao sobrenatural, para despertar a cobiça pelos recursos naturais, prontos a serem explorados. 

Não é coincidência de que o período de “desmistificação” da natureza coincida com o surgimento do capitalismo e do desenvolvimento tecnológico. O clima é de entusiasmo com o desenvolvimento da indústria, dos transportes e do grande numero de descobertas científicas. Em pouco tempo, vaticinavam alguns à época, o progresso deveria beneficiar todas as regiões da Terra, mesmo às mais remotas. Avançava-se sobre áreas remotas da África, para encontrar minas de ouro e diamantes. Derrubava-se a floresta na América do Sul para construir ferrovias, que deveriam melhorar os transportes e trazer riqueza para a região. Vastas áreas de floresta eram dizimadas no Sudeste Asiático para estabelecer plantações de chá, consumido na Inglaterra. Ao longo de todo o século XX a história não foi diferente. Grandes êxodos humanos provocaram um aumento exponencial da população em cidades, sobrecarregando a infra-estrutura de transporte, saneamento e moradia. Milhares de fábricas surgiram em bairros afastados, poluindo mananciais de água e expulsando pequenos agricultores. Vastas áreas de floresta são derrubadas para a criação de gado, enquanto que grandes barragens, construídas para geração de eletricidade, destinada aos grandes centros urbanos, provocam inundações de vastas regiões cobertas por florestas tropicais.

O resto da história nós já conhecemos; até porque ainda hoje convivemos com os fatos. Aos poucos, porém, o homem terá que mudar sua maneira de atuar sobre a natureza, o “mundo não-humano”. A princípio totalmente inserido na natureza, o homem do Paleolítico Superior não se via como algo fora ou à parte de seu meio ambiente. Com o surgimento das primeiras civilizações, o homem passou a encarar o ambiente selvagem (a floresta, o deserto, as montanhas) com temor, como local inseguro, por ser o lugar habitado por feras e seres sobrenaturais. Além disso, sempre pairava no ar a ameaça de que a natureza “humanizada”, o local onde estavam as cidades e os campos, pudesse, por causa de acidente natural (seca, inundação) ou guerra, voltar ao estado selvagem original, ocasionando o desaparecimento dos homens e dos deuses (quantas cidades como Troia e Persépolis não foram queimadas e destruídas, voltando a ser “cobertas pela erva e tornando-se covil de feras”, como relata a Bíblia?). Na era moderna, o homem passou a encarar o meio ambiente natural como região a ser explorada e dominada, por ser fonte inesgotável de recursos, prontos a serem transformados em matéria-prima e produtos, destinados ao consumo humano.


Hoje, nossa civilização percebeu de que há necessidade de mudar novamente nossa visão da natureza. Desta vez, porém, de uma maneira consciente, conhecedores que somos agora de todas as transformações da história. Após vivermos completamente inseridos na natureza por centenas de milhares de anos e depois de a temermos por outros milhares de anos, para em seguida a explorarmos mais algumas centenas de anos, resta-nos ainda pouco tempo para entendermos a natureza e conhecermos as suas limitações, que também são as nossas.

(Imagens: pinturas de Max Ernst)

FESTA DO LIVRO NA USP

quinta-feira, 28 de novembro de 2019
De 27 de novembro a 30 de novembro de 2019

PARTICIPE! LEIA MAIS!

Faça download do meu ensaio "A religião e o riso"

quarta-feira, 27 de novembro de 2019
https://drive.google.com/file/d/1op0E8eQkJeFPkDJPS8YWR1hcuMmhyGxF/view

Moralistas franceses - La Rochefoucauld, La Bruyère, Vauvenargues, Chamfort e Joubert

sábado, 23 de novembro de 2019





(Pesquisa, texto e montagem: Ricardo Ernesto Rose)

(Imagens da esq. para direita: Chamfort, La Rochefoucauld, Joubert, La Bruyère, Vauvenargues)

21 DE NOVEMBRO - DIA INTERNACIONAL DA FILOSOFIA

quinta-feira, 21 de novembro de 2019


“Nunca se protele o filosofar quando se é jovem, nem canse o fazê-lo quando se é velho, pois que ninguém é jamais pouco maduro nem demasiado maduro para conquistar a saúde da alma.”

Epicuro (341 - 270 AEC), filósofo grego 

Livros, quem se interessa?

sábado, 16 de novembro de 2019
"Nada emociona mais o burguês do que um revolucionário de um outro país"   -   Nicolás Gómez Dávila   -   Aforismos 


Não se discute a importância dos livros. Todavia sempre houveram sociedades, em todos os períodos históricos, nas quais os livros, ou certos livros, foram execrados. No período da Inquisição, entre os séculos XIV e XVIII, as obras escritas tinham que obter o nihil obstat quominus imprimatur, o “nada obsta para que seja impressa”, para poderem ser impressas e distribuídas. Cientistas como Copérnico, escritores como Rabelais e filósofos com Espinoza protelaram a publicação de suas obras para o final da vida, quando já sabiam que a Igreja pouco poderia fazer para puni-los. Outra opção era organizar edições anônimas, com local de impressão inverídico. A apreensão de uma publicação que fosse contra os ensinamentos e dogmas da Igreja podia custar meses de tortura, anos de encarceramento ou, no pior dos casos, a queima do autor em um ato público religioso, os Autos de fé.

Mas tal aversão contra a circulação de ideias não foi exclusividade do período que se estende da Baixa Idade Média até a Revolução francesa. O século XIX e, principalmente, o século XX estão repletos de períodos durante os quais se organizaram repressões à publicação e distribuição de livros. Em outras palavras, uma coibição da circulação de ideias que colocassem em questão, ou diretamente fossem contrárias à concepção de mundo das forças políticas, religiosas ou econômicas dominantes de certas sociedades. Os exemplos são inúmeros, e vão desde a censura de obras rotuladas de “capitalistas ou burguesas” no regime soviético, aos livros tidos como “impuros” no regime nazista. Durante este último, o governo hitlerista chegou a organizar em 10 de maio de 1933 uma queima de milhares de livros, como ato de repúdio ao teor de obras escritas por intelectuais como Stefan Zweig, Thomas Mann, Sigmund Freud, Erich Kästner, entre outros.

Mais recentemente, nos anos 1960, 1970 e 1990, ditaduras espalhadas pelo mundo – produto sucedâneo da Guerra Fria – também promoveram sistemático tolhimento da cultura de suas sociedades, principalmente através da proibição de publicação e circulação de livros. Coréia do Sul, China, Cuba, Chile, União Soviética, Argentina, Brasil, África do Sul; a supressão do pensamento crítico sempre foi a maneira mais eficiente de manter povos na ignorância, na apatia e na servidão, garantindo privilégios dos dominadores.


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Sempre gostei de livros. Meus pais nunca foram ricos, mas em nossa casa tínhamos uma biblioteca de razoável tamanho. Além das obras de Monteiro Lobato, Francisco Marins, Francisco de Barros Júnior e uma coleção da editora Melhoramentos sobre as regiões geográficas brasileiras, gostava de ler uma coletânea, da qual não me lembro o nome, em vários volumes, sobre história e pré-história. Mais tarde, já na adolescência, passei para os clássicos mundiais e comecei a me aproximar da filosofia.

Livros, livros. Durante o período de serviço militar, sempre guardava alguns livros no armário para ler nas longas e entediantes horas de folga, quando não estava de serviço. Depois, frequentando o cursinho pré-vestibular, ao invés de estudar as matérias do exame, passava as tardes lendo tudo que podia. A mesada era toda gasta em livros e, às vezes, em discos.

Já trabalhando e ganhando pouco, deixava de gastar dinheiro com o almoço, para comprar livros. No final dos anos 1970, quase diariamente durante os intervalos de almoço, passava na livraria Siciliano da rua Antônio de Barros, no Tatuapé, procurando pechinchas e lançamentos, negociando com o vendedor.

Procurei transmitir esta paixão pelos livros também aos meus filhos. À época, as condições econômicas felizmente me permitiam comprar grandes quantidades de livros, frequentando livrarias e os sebos no Centro Velho de São Paulo, nas manhãs de sábado. Acabei formando uma biblioteca de tamanho razoável, da qual tive que me desfazer em grande parte anos depois.

Os livros são para mim quase um objeto mágico, um oráculo. Neles procurei e encontrei respostas para algumas das minhas perguntas, tomando contato com as ideias de pessoas de todas as épocas e culturas. Mas, ao longo da vida, a leitura de tantos romances, ensaios, tratados, poemas, peças de teatro, relatos, fez com que muitas respostas perdessem a importância e os questionamentos aumentassem.      

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Apesar de sua importância, o livro ainda continua sendo privilégio de apenas uma parte reduzida da população. A crise econômica que persiste no Brasil e que governos seguidos parecem não conseguir debelar, colocou 104 milhões de pessoas, mais de metade da população do país, fora do mercado consumidor. Com uma renda mensal por pessoa de R$ 413 por mês, segundo dados oficiais, é impossível consumir mais do que o essencial para sobreviver – aquisição de livros é impossível.

Acrescente-se a isso o fato de que o número de bibliotecas no Brasil é insuficiente para atender a população. Dos 5.570 municípios brasileiros, segundos dados oficiais, apenas 112 não possuem biblioteca. Estes números, à primeira vista, parecem aceitáveis. Esquecemos, no entanto, que estes centros de cultura, estão mal distribuídos e são insuficientes para atender a população do país. Segundo informações do jornal Gazeta do Povo, em 2017 o Brasil tinha uma biblioteca para cada 30.000 habitantes. Nos Estados Unidos este índice é de uma biblioteca pública para cada 19 mil habitantes. Na República Tcheca, país com a melhor distribuição do mundo, esta proporção é de uma instituição para cada 1.970 cidadãos. Além disso, as bibliotecas públicas são pouco aparelhadas e, acima de tudo, mal distribuídas, principalmente nas médias e grandes cidades. Nas periferias dessas metrópoles, onde se concentram crianças em idade escolar, jovens e trabalhadores, inexiste praticamente possibilidade de acesso ao livro.

A falta de disponibilidade e de incentivo ao uso do livro nas escolas, local onde o jovem aprende a se familiarizar e apreciar o livro, tem feito com que os índices de leitura do país sejam bastante baixos. Some-se a isso o fato de que a maioria das famílias não tem o hábito da leitura, não dispondo de livros em casa, principalmente por motivos financeiros. Assim, de acordo com pesquisa realizada pelo IBOPE para o instituto Pró-Livro em 2014, 44% da população brasileira não tem o hábito de ler e 30% nunca compraram um livro. Dados da mesma pesquisa indicam que o brasileiro lê em média 2,43 livros por ano. Os franceses, por exemplo, leem 21 livros por ano: 17 em versão impressa e 4 na forma digital.
Não é por outra razão que o mercado editorial brasileiro vem mostrando uma crescente queda. Entre 2006 e 2017 as edições tiveram uma redução de 21%. Entre 2017 e 2018 o número de exemplares impressos caiu em 11%, representando 43,3 milhões de exemplares a menos produzidos. Com isso, as tiragens foram menores e o preço médio do exemplar aumentou cerca de 5% em um ano.

As livrarias vem sendo prejudicadas em todo este processo. As pequenas, com pouco espaço e reduzido capital de giro, tiveram que fechar suas portas ao longo dos últimos dez anos, devido à concorrência das lojas e megastores nos shopping centers. Nos últimos anos chegou a vez das grandes redes de livrarias, como a Cultura e a Saraiva, que agora também se encontram em sérias dificuldades financeiras e fecharam algumas de suas lojas. Dados de 2017 da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviço e Turismo mostram que entre 2007 e 2017 21 mil livrarias e papelarias encerraram suas atividades.  

A esta lista acrescente-se ainda o fato de que o mundo, e especialmente o Brasil, atravessa uma crise cultural. Movimentos de diversas origens tornaram-se propagadores de políticas e conceitos anti-intelectuais, desvalorizando e negando a cultura e a ciência. Coloca-se em dúvida a segurança da vacinação, de fatos evidentes como a esfericidade da Terra e de teorias científicas estabelecidas como a teoria da evolução e das mudanças climáticas. Na área cultural volta a imperar um obscurantismo pré-iluminista e um conservantismo farisaico, que prejudicam o necessário debate sobre temas atuais da sociedade. O atual governo e grupos que o apoiam pouco valorizam o conhecimento e a pesquisa, preferindo fundamentarem-se em teorias e crenças veiculadas pelas mídias sociais, muitas vezes respaldadas em fatos inverídicos, as fake news.



Neste contexto cultural e econômico adverso, cabe a nós, ignorantes amigos do conhecimento, valorizar o livro e, evidentemente, outros instrumentos de difusão do saber. Ao longo da história, todas as civilizações que deixaram de valorizar o cultivo e a crítica da cultura, tenderam à decadência e à ignorância e, por fim, ao fanatismo e à barbárie.

(Imagens: pinturas de Umberto Buccioni)

Ainda o saneamento

sábado, 9 de novembro de 2019
"Desde que começaram a enterrar seus mortos, a negociar com o além, a frequentar bailes e refletir sobre números primos, os 'seres humanos' são criaturas que ontologicamente se desviaram de seu rumo."   -   Peter Sloterdijk   -    Pós Deus 


O país enfrenta graves problemas ambientais nos últimos meses. Incêndios na Amazônia e áreas preservadas do Cerrado, ocupações ilegais na Mata Atlântica e, ultimamente, a poluição de centenas de praias do Nordeste por óleo vindo do oceano. O governo demorou em responder aos acontecimentos, seja por falta de organização ou de pessoal, provavelmente por ter reduzido a capacidade operacional do ministério do Meio Ambiente.

No entanto, há outras mazelas ambientais cuja solução – ou pelo menos seu encaminhamento – o Estado brasileiro vem postergando há décadas. Falamos aqui especificamente da gestão do lixo e do saneamento, para os quais não têm sido destinados todos os recursos necessários, mesmo durante o período de crescimento da economia no governo Lula. O suprimento de água potável, a coleta e o tratamento de esgoto são, neste contexto, problemas mais prementes no que se refere à saúde pública do país.

Os índices de saneamento no Brasil ainda são muito baixos, considerando o PIB, o nível de desenvolvimento social e tecnológico e comparados a outros países da América Latina. Em 2019 ainda existem 35 milhões de pessoas que não estão conectadas à rede de abastecimento de água. Na região Norte, por exemplo, cerca de 57% da população continua sem acesso à água tratada, enquanto que no Sudeste são 9%. Com relação ao efluente doméstico são 110 milhões de brasileiros sem acesso; 90% da população da região Norte e 22% do Sudeste.

Os índices de saneamento, segundo muitos especialistas, refletem a desigualdade com que regiões de diferente desenvolvimento econômico são tratadas pelo governo central e pelas administrações regionais. Compare-se o baixo nível de acesso à infraestrutura pública entre áreas rurais do Nordeste com regiões urbanas do Sudeste.

Segundo entidades do setor, seriam necessários investimentos de R$ 600 bilhões para universalizar o saneamento no país até 2030, segundo previsto no Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico) de 2013. Segundo o Instituto Trata Brasil, em declaração ao jornal Folha de São Paulo (FSP 9/10/2019), o Brasil necessita de R$ 22 bilhões de investimentos por ano nesta área. Dados do Ministério de Desenvolvimento Regional informam que entre 2014 e 2017 houve uma queda nos investimentos anuais de R$ 15,9 bilhões para R$ 7,8 bilhões.  

Está em preparação um plano de privatização das companhias públicas de saneamento, com o objetivo de gerar receitas para novos investimentos e transferir parte dos serviços às companhias privadas, que atualmente já atendem 6% dos municípios do país. A proposta, apresentada como a única solução para o setor dada a falta de recursos federais e estaduais para ampliar ou até manter a estrutura existente, tem muitos críticos. Estes citam como exemplo casos de concessão dos serviços ao setor privado nos quais as necessidades da população não são atendidas, caso das cidades de Manaus e Tocantins. No exterior, na Alemanha, França e Inglaterra o setor público vem retomando os serviços de saneamento em diversas cidades.

É preciso reconhecer que, com raras exceções, faltou ao setor de saneamento apoio na gestão das concessionárias através de suporte técnico, administrativo e financeiro, capacitação e atualização tecnológica. Por outro lado, convêm lembrar que administrações privadas visam, acima de tudo, o lucro de seus acionistas. Privatização não é uma panaceia universal.

(Imagens: fotografias de Annie Leibovitz)