Floresta amazônica: a caixa d´água do Mercosul

domingo, 28 de outubro de 2012
"A morte é, num sentido vulgar, inevitável, mas num sentido profundo, inacessível. O animal a ignora, embora ela atire o homem na animalidade. O homem ideal, encarnando a razão, permanece alheio a ela: a animalidade de um deus é essencial a sua natureza; ao mesmo tempo, suja (malcheirosa) e sagrada."  -  Georges Bataille  -  A experiência interior

A revista científica “Nature” publicou recentemente um estudo realizado pela Universidade de Leeds, na Inglaterra, e pelo Centro de Ecologia e Hidrologia do Conselho de Pesquisa Ambiental Britânico. O trabalho ressalta a importância das florestas equatoriais da Amazônia e da República Democrática do Congo no regime de chuvas da região e de outras circunvizinhas. Segundo concluíram os cientistas que conduziram a pesquisa, o ar que passa sobre regiões de densa vegetação carrega duas vezes mais chuva do que aquele que passa sobre áreas com vegetação rala. As florestas, através do processo de evapotranspiração – a evaporação da água das folhas e dos rios –, contribuem para que as nuvens se tornem mais densas e transportadas pelos ventos que vêm do oceano se desloquem por milhares de quilômetros no continente. Através deste processo, batizado de “rios voadores” pelo grande volume de água que é transportado, as nuvens que se originam na região equatorial do oceano Atlântico, adensadas pela água evaporada da região amazônica, vêm irrigar toda a região da bacia do Rio da Prata, no Sudeste e Sul do continente. Uma distância de mais de três mil quilômetros; como se nuvens geradas no Norte da Europa se precipitassem na Grécia ou no Mediterrâneo.
O fenômeno ainda está sendo estudado e tem inúmeras implicações. Desde o fornecimento de água para a agricultura, o abastecimento das grandes cidades – Rio de Janeiro, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba, Montevidéu e Buenos Aires, entre outras –, a geração de energia e todas as atividades que movimentam as economias da Bolívia, Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina. Quantos trilhões de reais não dependem deste aparentemente simples processo natural? Esta a parte mais interessante e intrigante dessa história.
A parte preocupante da história é o desmatamento. Apesar da redução do ritmo de derrubada da floresta, de 28 mil hectares por ano em 2004 para sete mil hectares por ano em 2011, a floresta amazônica encontra-se sob constante ameaça. O avanço da cultura da soja, a criação extensiva de gado e a exploração da madeira – atividades que de tempos em tempos, aqui e ali voltam a aparecer – ainda são os maiores perigos que rondam o ecossistema amazônico. Exemplo disso é o desmate de terras no Pará, realizado em grandes fazendas durante os anos de 2007 e 2008 e passíveis de punição, que continuam impunes segundo recente reportagem publicada pelo jornal O Estado de São Paulo. Outro aspecto preocupante nesta história é que o Código Florestal, depois de anos de discussões e muitas alterações, acabou tomando um formato que beneficiará os grandes donos de terra, exatamente aqueles que em sua maioria não têm interesse em preservar a floresta à custa de área de plantio – como se a terra disponível já não fosse suficiente!
Cientistas costumam enxergar longe. No caso da floresta amazônica prevêem os especialistas que a continuar o ritmo de desflorestamento, mesmo que considerado baixo, a diminuição da área da floresta provocará uma redução de 21% no volume de chuvas na Amazônia até 2050. Com menos chuva, diminui a evapotranspiração, ocorrem menos nuvens e, consequentemente, cairá menos chuva no Sul e Sudeste do continente sulamericano. Ninguém tem certeza de que será assim, dizem alguns. Os indícios, no entanto, são cada vez mais fortes. Pagaremos pra ver?         
(Imagem: fotografia de Walter Roil)

Fora do consumo não há salvação?

quinta-feira, 25 de outubro de 2012
"Embora observações não tenham decidido a questão finito versus infinito, aprendi que os físicos e os cosmólogos, quando pressionados, tendem a favorecer a proposição de que o universo é infinito."  -  Brian Greene  -  A realidade oculta


As "coisas indescritíveis" do mundo do consumo

(Publicado originalmente na newsletter do Instituto Humanitas Unisinos - IHU em 20/10/12)
"É cada vez maior o número de economistas que já mencionam com frequência a "crise da finitude de recursos". Os preços médios de alimentos "devem dobrar até 2030, incluídos milho (mais 177%), trigo (mais 120% e arroz (107%)", alerta a ONG Oxfam (Instituto Carbono Brasil, 6/9). 775 milhões de jovens e adultos são analfabetos e não têm como aumentar a renda (Rádio ONU, 10/9)", escreve Washington Novaes, jornalista, em artigo publicado no jornal O Estado de S. Paulo, 19-10-2012.
Lembrando Hobsbawn, o jornalista afirma "'A sociedade de consumo' 'interessa-se apenas pelo que pode comprar agora e no futuro'. Mas terá de resolver o problema de 1 bilhão de idosos em dez anos".
Eis o artigo.

O historiador Eric J. Hobsbawn, que morreu no começo da semana passada, deixou livros em que caracterizou de forma contundente os tempos que estamos vivendo. "Quando as pessoas não têm mais eixos de futuros sociais acabam fazendo coisas indescritíveis", escreveu ele no ensaio Barbárie: Manual do Usuário (Estado, 2/10). Ou, então, "aí está a essência da questão: resolver os problemas sem referências do passado". Por isso, certamente Hobsbawn não se espantaria com a notícia estampada neste jornal poucos dias antes de sua morte: Na Espanha, cadeados nas latas de lixo (27/9). "Com cada vez mais pessoas vivendo de restos, prefeitura (de Madri) tranca as latas como medida de saúde pública." Nada haveria a estranhar num país onde a taxa de desemprego está por volta de 25%, 22% das famílias vivem na pobreza e 600 mil não têm nenhuma renda.
E que pensaria o historiador com a notícia (Estado, 26/9) de que as autoridades de Bulawato, no Zimbábue (África), "pediram aos cidadãos que sincronizem as descargas de seus vasos sanitários para poupar água. (...) Os moradores devem esvaziar os vasos apenas a cada três dias e em horários determinados"? Provavelmente Hobsbawn não se espantaria, informado das estatísticas da ONU segundo as quais 23% da população mundial (mais de 1,5 bilhão de pessoas) defeca ao ar livre por não ter instalações sanitárias em sua casa. As do Zimbábue ainda estão à frente.
E da China que pensaria ele ao ler nos jornais (22/9) que a prefeitura de Xinjian, no leste do país, "está sob intensa crítica da opinião pública após enjaular dezenas de mendigos no mesmo lugar durante um festival religioso"? Ao lado da foto das jaulas nas ruas com mendigos encarcerados, a explicação de autoridades de que assim fizeram porque os pedintes assediavam peregrinos e corriam risco de ser atropelados ou pisoteados. Mas "entraram nas jaulas voluntariamente". Será para não correr riscos desse tipo que "quatro estrangeiros de origem ignorada" vivem há três meses no aeroporto de Cumbica, em São Paulo, recusando-se a dizer sua nacionalidade e procedência (Folha de S.Paulo, 29/9)? "Em tempos de transformação", disse o psicanalista Leopold Nosek a Sonia Racy (Estado, 7/10), "quando o velho não existe mais e o novo ainda não se estruturou, criam-se os monstros".
Para onde se caminhará? Na Europa, diz a Organização Internacional do Trabalho que, com todo o sul do continente em crise, o desemprego na faixa dos 15 aos 24 anos crescerá 22% em 2013, pouco menos no ano seguinte. Nos Estados Unidos, a taxa de desemprego entre jovens está em 17,4%, talvez caia para 13,35% até 2017 (Agência Estado, 5/9). O desemprego médio nos 17 países da zona do euro subiu para 11,4%.

Pulemos para o lado de cá. Um em cada cinco brasileiros entre 18 e 25 anos não trabalha nem estuda (Estado, 26/9). São 5,3 milhões de jovens. Computados também os que buscam trabalho, chega-se a 7,2 milhões. As mulheres são maioria. E o déficit ocorre embora o País tenha gerado 2,2 milhões de empregos formais em 2011.
As estatísticas são alarmantes. A revista New Scientist (28/7) diz que 1% da população norte-americana controla 40% da riqueza. Já existem 1.226 bilionários no mundo. "Nós somos os 99%", diz o movimento de protesto Occupy. Entre suas estatísticas estão as que os relatórios do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) vêm publicando desde a década de 1990: pouco mais de 250 pessoas, com ativos superiores a US$ 1 bilhão cada, têm, juntas, mais do que o produto bruto conjunto dos 40 países mais pobres, onde vivem 600 milhões de pessoas. Já a metade mais pobre da população mundial fica com 1% da renda global total. Menos de 20% da população mundial, concentrada nos países industrializados, consome 80% dos recursos totais. E 92 mil pessoas já acumulam em paraísos fiscais cerca de US$ 21 trilhões, afirma a Tax Justice Network.
E que se fará, com a população mundial aumentando e os recursos naturais - inclusive terra para plantar alimentos - escasseando? É cada vez maior o número de economistas que já mencionam com frequência a "crise da finitude de recursos". Os preços médios de alimentos "devem dobrar até 2030, incluídos milho (mais 177%), trigo (mais 120% e arroz (107%)", alerta a ONG Oxfam (Instituto Carbono Brasil, 6/9). 775 milhões de jovens e adultos são analfabetos e não têm como aumentar a renda (Rádio ONU, 10/9).

De volta outra vez ao nosso terreiro, vemos que "mais de 90% das cidades estão sem plano para o lixo" (Estado, 2/8). Na cidade de São Paulo, 90% do lixo reciclável vai para aterros sanitários (CicloVivo, 10/8). Diariamente 5,4 bilhões de litros de esgotos não tratados são descartados. Perto de metade dos domicílios não é ligada a redes de esgotos. A perda de água nas redes de distribuição (por furos, vazamentos, etc.) está por volta de 40% do total. Mas 23% das cidades racionam água, segundo o IBGE (Estado, 20/10/2011). E grande parte da água do Rio São Francisco que será transposta irá para localidades com essas perdas - antes de corrigi-las. E com o líquido custando muito mais caro, já que muita energia será necessária para elevá-lo aos pontos de destino.
Enquanto isso, a campanha eleitoral correu morna em praticamente todo o País, com candidatos fazendo de conta que vivemos na terra da promissão, não precisamos de planos diretores rigorosos nas cidades, não precisamos responsabilizar quem mais consome - e mais gera resíduos -, não precisamos impedir a impermeabilização do solo das cidades nem impedir a ocupação de áreas de risco.
"A sociedade de consumo", escreveu Hobsbawn, "interessa-se apenas pelo que pode comprar agora e no futuro". Mas terá de resolver o problema de 1 bilhão de idosos em dez anos (Fundo de População das Nações Unidas, 1.º/10).
(Imagens: fotografias de Bernhard Quade)

Democracia e justiça na política e na economia

domingo, 21 de outubro de 2012
"Nada é mais repugnante do que a maioria; pois ela consiste em uns poucos antecessores vigorosos, em marotos que se acomodaram, em fracos que se assimilaram e na massa que vaga pela noite sem ter a mais mínima noção do que quer." - J. W. Goethe - Máximas e Reflexões

O cidadão e o consumidor brasileiros passaram a ter mais importância para o governo e as empresas. Enganado e ignorado; seja por políticos e empresários inescrupulosos, o brasileiro parece adquirir mais importância agora que as instituições estão sob mais controle, e as empresas - com o aumento do consumo - não podem mais desconsiderar a opinião do consumidor como antes.
No aspecto político, é um grande marco na história recente do Brasil o julgamento do Mensalão – conhecido no jargão jurídico como Ação Penal 470. Tráfico de influência, corrupção e apropriação de recursos públicos raramente foram julgados no País. A condenação e provável punição de figuras políticas de alto calibre é fato inédito e representa um avanço para a democracia no Brasil e o fortalecimento do poder do cidadão. Daqui para frente será mais difícil – e esta vitória só será garantida com a constante mobilização popular – se apropriar de recursos da república, sem qualquer tipo de prestação de contas. Fica mais fortalecido o poder do cidadão comum, aquele que paga seus impostos e espera crescentes melhorias materiais e culturais no País.
Na área econômica os avanços também acontecem. O crescimento da classe média brasileira, aumentando o consumo de produtos e serviços, faz com que governo e empresas sejam forçados a se preocupar mais no atendimento a este extrato da população. No último ano, agências governamentais passaram a atuar de maneira mais efetiva, desatrelando-se de sua histórica submissão ao poder econômico, e passaram a agir em benefício do cidadão-consumidor.
Fato mais marcante foi a pressão do governo através de seus agentes financeiros - o Banco Central, o Banco do Brasil e a Caixa Econômica - forçando a queda dos juros. Pressionados e colocados sob o foco da opinião pública, além de correrem o risco de perderem parte dos seus clientes para os bancos estatais, as instituições financeiras privadas tiveram que acompanhar a iniciativa do governo.
A ANATEL, a Agência Nacional de Telecomunicações, depois de tolerar durante anos serviços de baixa qualidade oferecidos pelas operadoras de telefonia móvel, resolveu finalmente interferir no mercado e cumprir seu papel de agência reguladora e controladora. Neste caso, trata-se também de um fato inédito, e é esperado que a ação de defesa dos interesses do cidadão não fique só neste caso. Medidas parecidas foram tomadas recentemente pela ANEEL, a Agência Nacional de Energia Elétrica, que pode até negar a renovação de contratos às distribuidoras de eletricidade que ultrapassaram os limites na falta de fornecimento de energia elétrica.
No setor automotivo, baseado no novo acordo automobilístico com o governo, as montadoras deverão assumir diversos compromissos quanto ao índice de nacionalização das peças, segurança e, principalmente, consumo do veículo. As fabricantes de veículos deverão cumprir o acordo à risca, já que têm muito interesse no Brasil, o quarto maior mercado mundial de veículos. Outro avanço ocorrerá quando o governo analisar detalhadamente as razões dos altos preços dos veículos no Brasil, mesmo descontando os impostos.
Passamos por mudanças políticas e econômicas que darão mais poder ao cidadão. Mais equidade, justiça e democracia em todas as relações e instâncias da sociedade brasileira são esperadas há tempo. Mesmo assim ainda estamos longe de uma situação ideal.
(Imagem: fotografia de Blanc e Demilly)

O desenvolvimento da questão ambiental

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

"Tradicionalmente, no Brasil, a educação tem sido chave na criação de chances de acesso à classe média. Até as primeiras décadas do século XX, o ensino de segundo grau já era suficiente para engendrar tais oportunidades. Mas a educação vem sendo erodida como marca de classe."  -  Amaury de Souza e Bolívar Lamounier  -  A Classe Média brasileira


As atividades industriais, quando não realizadas dentro das regras de precaução, podem causar poluição, destruição e morte. Na Europa do início do século XIX, nos primórdios da industrialização, pobres e operários, vivendo em péssimas condições, foram as maiores vítimas da falta de saneamento, da incorreta gestão dos resíduos e da poluição atmosférica. Ainda no início do século XX, sem qualquer medida de combate à poluição industrial, ocorrem acidentes que provocam vazamento de produtos químicos e poluição atmosférica, matando centenas de pessoas em diversos lugares do mundo. A falta de conhecimento, porém, fez com que tais eventos fossem considerados fatos isolados, acidentes imprevisíveis. No entanto, no início da década de 1960, novos acontecimentos começam a mudar este panorama. Em 1962, a bióloga norte-americana Rachel Carson publica o livro Primavera Silenciosa, que analisa o efeito dos inseticidas à base de D.D.T. no meio ambiente. Por sua repercussão, chamando a atenção sobre a poluição ambiental exercida pelos produtos químicos, a obra se constituiu em um dos marcos no estudo dos impactos das atividades econômicas sobre o ambiente.
Pouco anos depois, em 1968, é criado o Clube de Roma, formado por cientistas, empresários e políticos, dedicados a estudar a degradação da natureza provocada pelas diversas atividades humanas. As previsões feitas pela instituição, baseadas em estudos da época, não acabaram se concretizando. Todavia, parte do material de pesquisa produzido serviu como alerta para muitos governos e instituições, chamando a atenção sobre os rumos que a economia mundial estava tomando. No âmbito social, surgem nesta mesma época nos Estados Unidos e na Europa diversos movimentos, que darão origem as primeiras ONGs (Organizações Não-Governamentais) atuando no setor ambiental, como a Greenpeace (1971) e a Worldwatch Institute (1974), entre outras.
A década das grandes mudanças no setor ambiental mundial foi a de 1970. A situação, tanto na Europa, quanto nos Estados Unidos era insustentável. Rios poluídos por efluentes domésticos e industriais, aterros fora de controle e solos contaminados por óleos e outros produtos químicos poluentes. Por outro lado, a pressão exercida pelas ONGs, opinião pública e por partidos verdes (na Europa), forçou a criação de uma legislação ambiental mais rígida, órgãos de controle ambiental e realização de grandes obras de saneamento e descontaminação. No âmbito internacional, durante os anos 1980 e início dos anos 1990, realizaram-se diversas conferências internacionais, como a Comissão Brundtland (1987), e a Conferência da ONU para o Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco 92). Estes encontros estabeleceram as bases para a regulamentação de atividades econômicas; como o transporte marítimo de produtos perigosos, a proteção às espécies ameaçadas, a questão das emissões atmosféricas, a proteção das florestas, entre outros temas.
No Brasil, as primeiras leis especificamente ambientais foram criadas na década de 1980, estabelecendo marcos que balizaram todo o desenvolvimento posterior do setor. Foi também em 1988 que a nova Constituição dedicou todo um capítulo à questão ambiental, garantindo a todo cidadão acesso a um meio ambiente limpo e saudável. Ao longo dos últimos 25 anos a legislação brasileira evoluiu rapidamente, apesar dos problemas que o País tem no cumprimento destes marcos legais. Ao mesmo tempo, aumenta gradativamente a conscientização da população, que com a ajuda da imprensa e das ONGs, exerce uma pressão sobre os setores mais retrógados do governo e empresariado.

(Imagens: fotografias de Paul Strand)

O fim da guerra fria e as políticas neoliberais das últimas décadas do século XX

domingo, 14 de outubro de 2012
"Quatro vezes Uagadu desapareceu e sumiu da vista humana: uma vez por causa da vaidade, uma vez por causa da falsidade , uma vez por causa da ganância e uma vez por causa da discórdia. Quatro vezes Uagadu mudou de nome . Primeiro ela se chamou Dierra, depois Agada, depois Gana e depois Sila. Quatro vezes virou o rosto."  -  Leo Frobenius e Douglas C. Fox  -  A Gênese africana - contos, mitos e lendas da África

A Guerra fria terminou quando o império soviético e seus satélites ruíram definitivamente, a partir da queda do Muro de Berlim em novembro de 1989. O desaparecimento da URSS e dos governos aliados do leste europeu teve conseqüências políticas e econômicas que nos afetam até os dias atuais. Paradoxalmente, a ausência da URSS ainda é usada como argumento dos articulistas de política internacional, quando escrevem sobre como seria o mundo – ou certo aspecto da realidade que estão analisando – caso ainda existisse o regime soviético. O binômio USA/URSS de tal modo condicionou a política internacional e a economia capitalista do pós-guerra, que o espectro da Guerra Fria ainda permanece presente no inconsciente dos mais antigos e no imaginário de muitas instituições internacionais.
A genealogia do final da Guerra Fria remonta ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Até esta época a União Soviética e os Estados Unidos vinham travando uma batalha pela hegemonia mundial que envolvia entre seus principais fatores a economia, a estratégia militar e o desenvolvimento tecnológico. Por muitos anos a disputa permaneceu empatada, sem vencedores. A situação começou a mudar de figura no início dos anos 1980, quando diversos acontecimentos começaram a afetar a coesão interna da União Soviética, dos quais destacamos:
a) fatores econômicos:
- Crises de alimentos devido a uma sucessão de planejamentos malfeitos pelos órgãos do governo na área agrícola;
- Aumento da burocracia e da ineficiência da economia como um todo, por falta de modernização dos procedimentos e ausência de recursos para investimento em novos equipamentos;
b) fatores políticos
- Intelectuais reclamando mais liberdade eram aprisionados nos gulags. Tais presos de consciência (como Solzhenitsyn e Sakharov) atraiam a simpatia de todo o Ocidente;
- O governo soviético estava em uma corrida armamentista com os Estados Unidos, o que absorvia grande quantidade de recursos que acabavam faltando em outras áreas. Os investimentos americanos em armamentos eram cada vez maiores, chegando a um ponto a partir do qual a URSS não podia mais competir;
- Crescentes revoltas nas diversas repúblicas, resultado de uma gradual oposição ao regime dos “russos brancos”, governando em Moscou.
Estes apenas alguns fatores que preparam a queda. O golpe final, depois do qual o império soviético não conseguiu mais se recuperar, foi a Guerra do Afeganistão (1979-1989). A guerra – coincidentemente travada contra o mesmo movimento, o Taliban, que vinte anos depois seria o grande inimigo dos Estados Unidos – demandou investimentos em equipamentos e logística de tropas, provocando um imenso rombo nos cofres de Moscou. Além disso, a morte de cada vez mais soldados criou um clima crescente de oposição à guerra e ao governo central. Não é por outra razão que a guerra do Afeganistão foi chamada de “o Vietnã soviético”. Os Talibans em batalha contra os russos, foram treinados, armados e apoiados estrategicamente pelos americanos, através de seu serviços secreto, a CIA.
A estratégia do governo Reagan (1980-1989) era desgastar ao máximo o governo soviético; seja no campo militar, político e, principalmente, no econômico. Já sabiam os americanos que a economia soviética era pesada e burocrática. Nas fábricas, por exemplo, havia vários níveis de hierarquia, o que faziam com que as tarefas eram executadas com vagar e comprometimento da qualidade. O mesmo acontecia em relação às técnicas gerenciais, onde a indústria americana era líder à época (mais alguns anos e os japoneses desbancariam os Estados Unidos).       
Além disso, a livre concorrência entre as empresas no sistema capitalista fazia com que a cada momento eram desenvolvidas novas tecnologias, novos produtos. Vigorava aquilo que o economista austro-americano Joseph Schumpeter chamava de “a destruição criativa”, ou seja, novos produtos, novas empresas, substituíam as antigas, criando novos paradigmas de produção e consumo.
Não por coincidência, foi por esta época que nos Estados Unidos surgiu a reaganomics, o protótipo do neoliberalismo, produto da escola econômica de Chicago, cujo representante mais famoso era o Prêmio Nobel Milton Friedman. Esta política econômica – também aplicada pela primeira ministra Margareth Thatcher na Inglaterra e no Chile de Pinochet – tinha como pressuposto básico um estado mínimo, a hegemonia da economia de mercado e a redução dos benefícios sociais. O objetivo era acabar com o estado de bem estar social, permitindo que “a mão invisível do mercado” (a lei da oferta e da procura) regulasse as relações.
O neoliberalismo de certo modo conseguiu contribuir para que os países capitalistas ocidentais, capitaneados pelos Estados Unidos, alcançassem a “exaustão econômica” da União Soviética. Assim, derrotado o maior inimigo, os Estados Unidos – principalmente as empresas e bancos que dirigem o país – expandiram seu sistema econômico por todo o mundo. Conseqüência imediata desta aparente vitória do capitalismo na forma de neoliberalismo foi, por exemplo, a criação do “Consenso de Washington”, que também arregimentou muitos entusiastas aqui no Brasil. No Brasil este processo exerceu profunda influência na eleição de Collor, na abertura da economia e posterior processo de privatização de parte do setor público no governo Fernando Henrique.
Seguiu-se um período de hegemonia do capitalismo baseado no consumo, espalhando-se por todas as regiões do planeta. Se, por um lado, beneficiou países e grupos sociais, esta nova estrutura também levou outras nações à crise e pauperização de parte de sua população. A supremacia do neoliberalismo terminou – formalmente e como ideal de economia – com a crise dos subprimes, muito depois do desaparecimento da URSS e da Queda do Muro. Mas isto já é outra história.
(Imagens: fotografias de Lewis Hine)

Sociedade ignora assassinatos de jovens

quinta-feira, 11 de outubro de 2012
"Os homens recebem pensões e aluguéis com muito prazer e concentram neles suas preocupações, esforços e cuidados, mas ninguém dá valor ao tempo; usa-se dele a rédeas soltas, como se nada custasse."  -  Lúcio Aneu Sêneca  -  Sobre a brevidade da vida

Em artigo recente publicado no jornal Valor, Atila Roque, diretor executivo da ONG Anistia Internacional, escreve que "o Brasil convive, tragicamente, com uma espécie de epidemia de indiferença", referindo-se à maneira como parte da sociedade e o governo vêm tratando a questão do homicídio de crianças e adolescentes no Brasil. Somente no ano 2010, segundo a ONG, foram mortos 8.686 jovens - o equivalente a 43 aviões da TAM iguais aquele acidentado em 2007 e que justificadamente causou grande consternação na opinião pública. A comparação, feita pelo próprio diretor executivo da instituição, tem como objetivo ressaltar a pouca atenção que o assassinato em massa de parte da população jovem brasileira desperta.
Segundo dados divulgados no estudo "Mapa da Violência 2012 - Crianças e Adolescentes do Brasil", elaborado pelo Núcleo de Estudos sobre Violência da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e coordenado pelo pesquisador Júlio Jacobo Waiselfisz, entre 1981 e 2010 foram assassinados no Brasil 176.044 indivíduos com menos de 19 anos, 90% dos quais do sexo masculino. Os números refletem a maneira descoordenada e desatenta - para dizer o mínimo -, como a questão da segurança pública foi e continua sendo tratada no Brasil, independentemente de governos autoritários ou democraticamente eleitos. Exemplo mais recente do pouco caso com a questão da segurança foi o engavetamento do Plano Nacional de Redução de Homicídios pelo Ministério da Justiça, por ordem da presidente Dilma, que optou por priorizar a ampliação do sistema penitenciário, o combate ao crack e a segurança das fronteiras - este último, particularmente, avançando a passos muito lentos segundo reportagens recentes.   
Do estudo mencionado se conclui que as chances de crianças e jovens morrerem assassinados são atualmente maiores do que eram há 30 anos, o que também nos coloca na quarta pior classificação em uma pesquisa realizada entre 91 países. Os dados comprovam tais fatos: em 1980 a taxa de homicídio entre a população de zero a 19 anos era de 3,1 assassinatos para cada 100 mil indivíduos; aumentando para 7,7 em 1990; alcançando 11,9 em 2000; e atingindo a marca de 11,9 em 2010. Ressalta Atila Roque em seu artigo que houve um aumento de 346,4% de aumento na taxa de homicídios no País nos últimos 30 anos, enquanto que a mortalidade por motivos de saúde (epidemias, desnutrição, viroses) teve uma queda acentuada (mas que também ainda está longe de ser a ideal).
Considerando a população como um todo, a taxa de homicídios no Brasil em 2010 foi de 27 mortes para cada 100 mil habitantes. Institutos internacionais de pesquisa afirmam que existe uma epidemia de homicídios, quando em um país o número de assassinatos excede 10 pessoas a cada 100 mil. Dentre as nações que não estão enfrentando um conflito interno ou externo, o Brasil é o país com o maior numero absoluto de homicídios em todo o mundo.
Esta situação reflete a marginalização à qual é submetida parte da população - seja por motivos econômicos, raciais, culturais ou geográficos. A sociedade brasileira ainda precisará realizar várias reformas econômicas, sociais, educacionais e jurídicas antes que possa se intitular efetivamente como democrática e republicana.
(Imagens: fotografias de Lewis Hine)

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Melhor o quê?
(publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo de 7 de outubro de 2012)
Na língua portuguesa, a única expressão acima de 'terceira idade' no meu ódio é 'melhor idade', que, inclusive, embute um insulto
UGO GIORGETTI
Estatísticas são frequentemente um enigma. Quer dizer que seremos, em dez anos, 1 bilhão? Isto é, de velhos, categoria em que me enquadro muito a contragosto e premido pelos fatos. Então seremos não sei quantos no Japão, seremos outro número exorbitante na Indonésia e, finalmente, chegamos ao nosso querido Brasil, onde já somamos perigosos 23,5 milhões. A partir disso, só uma poderosa imaginação para prever o que virá.
Não é tanto a profusão dos números exatos das estatísticas o que me intriga, embora considere imprudente aceitarmos números definitivos num mundo que muda a cada segundo, mas o que significam esses números. Sim, estamos progredindo, nós os velhos, em direção a um fim menos pior, concordo. Mas de que velhos estamos falando?
Como todas as estáticas abrangentes, sobretudo aqui no Brasil, essa dos velhos suscita algumas perguntas que valem para muitas outras pesquisas. Quando se fala em velhice e seus progressos, imediatamente somos remetidos a imagens de velhos saltitando alegremente por calçadões à beira- mar, fazendo exercícios em verdes parques, passeando com seus cachorros, de bermuda e bonezinho. Serão esses os velhos brasileiros? Serão esses os velhos que estão atingindo no Brasil, de forma digna e vigorosa, os 70 anos? É apenas uma pergunta que faço a quem elabora as estatísticas.
Não acredito numa melhora de vida uniforme, pelo simples fato de que nada é uniforme, para não dizer minimamente igualitário, no Brasil. O que tem a ver os velhos furando filas em caixas de supermercados, felizes da vida, gozando de suas pequenas benesses, e a grande maioria de velhos que nem sequer consegue andar até o supermercado mais próximo? O que tem a ver os velhos que frequentam a Sala São Paulo com aqueles, a imensa maioria, que fica atirada numa poltrona o dia inteiro, à mercê de uma televisão que os desconecta ainda mais do pouco de realidade que lhes resta?
Do jeito que as coisas são, não seremos problema algum, pelo menos no Brasil. Aqui os velhos continuam morrendo cedo, se não de morte propriamente dita, pelo menos da morte do espírito, e não preciso de estatísticas para comprovar isso. Basta estar de olhos abertos. A saúde pública, por exemplo, continua indigna, e é uma das famosas "questões brasileiras" nunca resolvidas. Seremos, antes, uma desculpa para justificar déficits e buracos no orçamento da saúde dos quais sabemos muito bem as causas. Uma desculpa para continuarem supremamente incompetentes, injustos e de uma ineficácia escandalosa.
Então não melhoramos em nada no geral? Melhoramos, concordo que qualquer classe social se beneficiou, umas mais, outras bem menos, dos progressos principalmente em saúde pública e alimentação nas grandes cidades. Mas progredimos à brasileira, com as desigualdades brutais de costume que as estatísticas ocultam e também, digamos, por inércia do sistema. Seria verdadeiramente inconcebível que, ao atingir o patamar de "grande economia mundial", nossa esperança de vida se mantivesse nos 50 anos, como era não faz muito tempo.
Na minha opinião de leigo, apenas de observador atento do que acontece, somos, os velhos do Brasil, uma falsa ameaça. Quando as coisas apertarem haverá um político a pedir que se aumente a idade de aposentadoria, por exemplo. Haverá a costumeira, frágil, reação de velhos dos bairros nobres, um pouco de barulho, alguma polêmica nos jornais falados da TV, mas finalmente tudo vai se acertar. Da pior maneira, é claro.
Estou sendo muito pessimista? Talvez, mas nisso estou exercendo apenas uma prerrogativa dos velhos, não é mesmo? Por que eu seria diferente? Velhos tendem a achar que tudo está errado, em geral pior do que já foi. Pode ser que seja esse o caso. De qualquer maneira, de minha parte, nunca irei a bailes da terceira idade, vou me policiar para nunca furar uma fila dando cotoveladas, não visto bermuda na rua, não tenho cachorro e acho as perspectivas da velhice profundamente desagradáveis. Na língua portuguesa a única expressão que está acima de "terceira idade" no meu ódio é "melhor idade", que, inclusive, embute um insulto a quem tenha o cérebro com dimensão um pouco maior que a de um milho.
Mas não sou chato. Para minha velhice quero apenas seguir tendo um pouco de sorte. Sorte é a única coisa fundamental neste mundo para seguir vivendo, fazendo coisas sem pensar muito em velhice, etc. Principalmente no etc. E manter a elegância até quando der. Não a física, que é impossível, mas a mental. Neste momento me ocorre, não sei por quê, a figura do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, que, metido sempre em impecáveis paletó e gravata, era um dos velhos mais elegantes, afáveis, inteligentes e irônicos que já vi. Talvez tenha pensado nele também por ter escrito um livro, cujo tema é a velhice, e que, graças a Deus, li quando jovem. Não é exatamente uma leitura agradável para velhos. Chama-se Diário da Guerra do Porco, e, suprema ironia, na época foi classificado como ficção científica.
UGO GIORGETTI - É CINEASTA E COLUNISTA DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO

Transporte em São Paulo

domingo, 7 de outubro de 2012


"Sejamos discretos. Não perguntemos aos mortos se eles viveram."

"Quantas vezes não representamos uma comédia, sem esperança de aplausos." 

Stanislaw Jerzy Lec - Últimos pensamentos desordenados (Letzte unfrisierte Gedanken)

A depender dos candidatos a prefeito que se apresentam no horário político, grande parte dos problemas da cidade de São Paulo já têm soluções encaminhadas. A vantagem é só do eleitor, que precisa apenas escolher o candidato que traz as soluções que mais lhe agradem. Construção de novos hospitais, aumento do número de creches, melhoria das escolas; mais linhas de metrô, aerotrem, corredores de ônibus - tudo com passagens mais baratas. É um momento de expectativa muito positiva para o paulistano.
Humor à parte, o trânsito continua sendo um dos grandes problemas na cidade de São Paulo e em toda a região metropolitana. A situação do deslocamento de pessoas já vinha se agravando nos últimos trinta anos, apesar da abertura de novas avenidas entre os anos 1960 e 1980, da construção de um (ainda reduzido) sistema de metroviário, trens de superfície, corredores de ônibus e da introdução de um sistema de rodízio de veículos - se bem que esse tivesse sido criado para reduzir a poluição atmosférica causada pelas emissões.
Mesmo assim, chegamos a uma situação insustentável. A cidade de São Paulo abriga hoje mais de 7,3 milhões de veículos, para uma população de 11,7 milhões de habitantes. Recentemente um jornalista fez o seguinte cálculo: a cidade tem cerca de 15 mil quilômetros de ruas e avenidas. Em média cada veículo tem um comprimento de 2,5 metros. Assim, se todos os 7,3 milhões de veículos paulistanos estivessem enfileirados nas ruas, ocupariam uma extensão de 18,5 mil quilômetros. Ou seja, teríamos a absurda situação de que todos os carros da cidade não caberiam nas suas ruas. Antes disso teríamos a total paralisação do trânsito em São Paulo com um monstruoso congestionamento. 
Para tentar contribuir com uma solução para o problema, o Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) realizou um encontro em comemoração ao "Dia Mundial Sem Carro", em 22 de setembro. Do evento participaram diversas entidades ligadas às questões urbanas, como a Rede Nossa São Paulo, a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
Uma das conclusões a que se chegou durante o encontro foi que pelo menos 30% da frota ativa, ou seja, aproximadamente dois milhões de veículos, deveriam sair de circulação para melhorar o trânsito. Aos proprietários destes veículos seriam oferecidas outras opções de transporte, para que se dispusessem a deixar seus veículos definitivamente em casa, para só usá-los fora da cidade. Um aspecto, abordado por Eduardo Vasconcellos membro da ANTP, é que "as pessoas querem que o transporte público da cidade melhore, sim. Mas não é para elas usarem o ônibus, mas para que os que estão a sua frente liberem espaço no trânsito".  Outro problema, levantado por Alexandre Gomide do IPEA é que "as promessas eleitorais ficam na retórica da melhoria do transporte público, mas os candidatos continuam a construir viadutos só para carros, vias que não podem ser usadas por pedestres, bicicletas ou ônibus".
O transporte continua sendo um dos mais importantes aspectos da gestão pública das cidades, que só poderá ser resolvido gradualmente, através de um conjunto de soluções. Todavia, a ação do poder público deve começar imediatamente, pois a cada ano que passa as dificuldades serão maiores.
(Imagem: fotografia de Lewis Hine)

John Locke e o liberalismo político

quinta-feira, 4 de outubro de 2012
"Escrever é, para mim, a única forma de conviver. E, pois, de viver e de sobreviver. Transviver."  -  Antonio Carlos Villaça  -  O livro de Antonio

John Locke foi um filósofo inglês do século XVIII que exerceu muita influência sobre todo o pensamento político desde então. Um dos aspectos importantes da filosofia de Locke foi o conceito de “tabula rasa”, a idéia da “folha em branco”.  Segundo este filósofo, todas as pessoas nascem sem qualquer idéia ou conceito. Isto quer dizer que não nascemos sabendo o que é certo ou errado, o que é bonito ou feio, entre outras coisas. Ninguém quando nasce já sabe se existe Deus ou não, qual a forma certa de educar os filhos ou qual o lugar que deve ocupar na sociedade. Tudo o que sabemos na vida, seja o que for, aprendemos com a educação, com a convivência, isto é, socialmente. Fora da vida social não se aprende nada. Este noção é importante para nós, já que ficamos sabendo de que todo conhecimento, de qualquer pessoa, também foi aprendido e só varia do nosso em grau. Isto quer dizer, como o próprio Locke afirmava, que ninguém é infalível, não existem instituições e pessoas livres de erro. É preciso, pois, que haja o respeito às opiniões, já que se ninguém é dono da verdade, todo mundo só tem opinião.
 Apesar de hoje existirem teorias mais elaboradas, ainda é conceito comum que em determinado ponto do desenvolvimento do homem, este se juntou para formar o Estado. A coisa evidentemente não sucedeu de maneira tão simples assim, pois desde quando evoluíram de ancestrais primitivos, os antepassados do homem sempre viviam em pequenos bandos, formados por algumas famílias, como os macacos. As teorias mais recentes dizem que depois de viver por dezenas de milhares de anos em bandos nômades, os humanos, provavelmente por fatores climáticos, não encontraram mais abundância de caça e viram como alternativa a prática mais intensiva da agricultura – eles já conheciam o processo de semear e colher certos vegetais. Com a prática mais intensiva da agricultura tiveram que se fixar em determinada região, perto de um lago ou rio, onde houvesse abundância de água. Ali, provavelmente, cada um foi tomando conta de um pedaço de terra e iniciando a plantação. O tempo foi passando e outras famílias se fixaram na região. As relações sociais foram se tornando cada vez mais complexas; era necessário criar certas regras sobre como trocar produtos (o que vale mais a cevada ou o sal?), como evitar fraudes e roubos, como defender propriedades de estrangeiros mal intencionados, etc. Foi nessa hora que os homens daquela aldeia se reuniram, foram pra casa do mais forte (ou o que tinha mais armas) e o elegeram chefe, rei, protetor, legislador, ou algo assim.
Esta é apenas uma hipótese, parecida com a teoria da formação do Estado, segundo Locke. Este dizia que os homens antes de se juntarem para formar um Estado, de acertarem o “contrato social”, já tinham certos “direitos naturais”, ou seja, direito à propriedade, à liberdade e à defesa. Quando os homens voluntariamente se juntaram para formar um Estado, não queriam abrir mão destas liberdades que já detinham antes.
É por este motivo que em um Estado não podem existir opressores e oprimidos. Locke dizia que as injustiças começam quando certos grupos passam a ter mais poder econômico (Locke se referia a terras) e com isso dominam o governo e a sociedade.        
Locke foi chamado de liberal porque era a favor da liberdade para todos os súditos, já que vivia em uma monarquia. Hoje em dia pode parecer uma coisa banal e evidente, mas no século XVIII isto não era nada comum. Salvo a Inglaterra e talvez a Suíça e a Holanda, o restante da Europa (e do mudo) era constituído por reinos absolutistas. O Brasil nesta época era uma colônia abandonada e explorada por uma monarquia decadente e absolutista.
Baseado em sua visão da formação do Estado, Locke também estabeleceu que o fundamento do Estado fosse a liberdade, considerando o fato de que todos são iguais perante a lei, de que todos têm direito à felicidade, à liberdade e de decidir que rumo dar às suas vidas, desde que não prejudiquem a liberdade do outro indivíduo.
O Estado deve fazer as leis através do poder legislativo e de colocá-las em execução através do poder executivo. A ação do Estado é limitada pelos direitos naturais dos cidadãos (direito à propriedade, à liberdade e à defesa) e se este interferir nestes direitos, os cidadãos podem reagir e se rebelar. Como conseqüência disso, os governantes são sempre sujeitos ao julgamento do povo. Mais uma vez vale lembrar que estes conceitos são bastante revolucionários para a época em que foram elaborados.
Na França, a filosofia de Locke foi estudada por Voltaire e por Montesquieu. Este utilizou o liberalismo de Locke para desenvolver seu sistema de governo escrevendo “O Espírito das Leis”. Nesta obra, classifica os tipos de governo e acrescenta à proposta de Locke um terceiro poder: o poder Judiciário (ficando então os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário). O livro de Montesquieu serviu de fundamento para os revolucionários da Revolução Francesa em 1789.
Nos Estados Unidos, então colônia da Inglaterra, o pensamento de Locke influenciou os mentores da independência; George Washington, John Adams e Thomas Jefferson (respectivamente 1º, 2º e 3º presidentes na nova nação).
Em todas as nações do mundo, o ideal do liberalismo político – que nada tem a ver com o liberalismo econômico desenvolvido por Adam Smith – tornou-se conhecido e acabou quase sinônimo de democracia. O estudo do filósofo John Locke nos permite pensar sobre conceitos banalizados e por isso esquecidos, como liberdade individual, direito à propriedade e legalidade de um governo. Trazendo o pensamento de Locke para os nossos dias, podemos nos dar conta de quanto suas idéias ainda não foram totalmente colocadas em prática.    
Bibliografia
Reale, Giovanni, Antiseri Dario, História da Filosofia Vol. II, Paulus Editora: São Paulo, 1990, 889 pgs.
História da Civilização Ocidental Vol I, Editora Globo: Porto Alegre, 1971, 581 pgs.
(Imagens: fotografias de Marc Ferrez)

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 2 de outubro de 2012

O Código Florestal caiu na teia de aranha dos ruralistas

(publicado originalmente na revista ECO 21 de setembro de 2012)

Lúcia Chayb e René Capriles, da Revista Eco 21

Editorial
Após longa caminhada entre as duas casas legislativas do Brasil, com apenas três votos contrários, foi aprovado pelo Senado o novo Código Florestal. O triunfo dos ruralistas incluiu a adesão em massa de deputados e senadores de todos os partidos, inclusive do PT, algo inimaginável há poucos anos. O legislativo negou-se a ouvir os inúmeros e consistentes alertas dos cientistas, da Academia e da sociedade civil organizada.
O novo texto permite que o desmatamento se acentue e que os antigos desmatadores sejam perdoados. Na curta sessão plenária do dia 25 deste mês, dos 61 senadores presentes, apenas Randolfe Rodrigues (PSOL-AP), Roberto Requião (PMDB-PR) e Lindbergh Farias (PT-RJ) se manifestaram contrários aos interesses ruralistas. Pouco antes da RIO+20 a ex-Senadora Marina Silva, afirmou premonitoriamente que “o Brasil não tem mais um Código Florestal, mas uma confusão jurídica. (…) Está sendo abolida, na prática, a função social da propriedade e o direito dos brasileiros a um ambiente saudável.Os donos da terra são agora donos do ar, das águas, da fauna e da flora, para delas dispor como bem entender a lei do mais forte, que fizeram prevalecer”.
Fica claro pelo texto originalmente redigido pelo Deputado Aldo Rebelo que o Código não tem a intenção de proteger as florestas e os biomas em geral, mas permitir a intensificação do agronegócio de exportação baseado principalmente na soja, açúcar, etanol e carne, itens que representam 36% das exportações com um faturamento de mais R$ 180 bilhões anuais e um consumo de 830 mil toneladas de agrotóxicos.
Ao longo dos últimos anos, o debate das consequências da aprovação do novo Código Florestal ficou ausente na maioria das preocupações dos políticos que decidem o futuro do País.
A esquerda e os ambientalistas, de forma geral, não lograram introduzir o tema no quotidiano da população. Ficou quase ignorado o desdobramento do que acontecerá na estrutura agrária. Segundo o presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária, Gerson Teixeira, “a partir da Lei, Bolsas de Mercadorias e Futuros, Bolsas de Valores estão habilitadas a operar no mercado negociando títulos de carbono e cotas de reservas ambientais que colocam a floresta amazônica com suas terras e biodiversidade, no circuito da globalização financeira. Bens comuns do povo brasileiro poderão ser oferecidos como alternativa rentista para o capital especulativo internacional”. 
Isso significa a institucionalização do comércio das florestas no mercado nacional e no internacional. Um dia depois da decisão do Senado, Al Gore, no Global Agribusiness Forum, em São Paulo, alertou sobre o risco de o aquecimento global acirrar a disputa por alimentos e biocombustíveis. “Num mundo mais quente, se não começarmos a agir, o conflito entre plantar milho para produzir combustível ou para alimentação se tornará ainda mais intenso”.
Edélcio Vigna, assessor político do Instituto de Estudos Socioeconômicos, resume sabiamente este momento: “O tempo dos ruralistas de plantar, colher e comercializar, não é o tempo da sociedade que deseja um ambiente socialmente saudável e alimentos seguros e não contaminados”.
O Brasil caiu na teia de aranha dos ruralistas, somente nos resta fazer coro ao apelo da corajosa atriz Camila Pitanga e bradar com ela: “Veta Dilma!”.