O contexto socioeconomico no qual surgiu a Escola de Frankfurt

domingo, 30 de setembro de 2012
"O que explica o sucesso de muitas obras é a relação ali encontrada entre a mediocridade das idéias do autor e a mediocridade das idéias do público."  -  Sébastien-Roch Chamfort  -  Máximas e pensamento

A Escola de Frankfurt surgiu como um anexo à universidade de Frankfurt ainda em 1923. O clima político na Alemanha da época não era dos melhores. A República de Weimar, fundada depois da queda do imperador Guilherme II em 1919, com a derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, já nasceu conturbada. Dívidas externas, desemprego, rivalidades entre diversas correntes políticas, greves, tudo isso assolava a nação alemã. Como se não bastasse, houve uma tentativa de um golpe político, dado em 1922 por um obscuro líder político de grupos direitistas, chamado Adolf Hitler. Nesse ambiente deram-se as primeiras produções intelectuais da Escola de Frankfurt.
Em 1930, Max Horkheimer assume a diretoria da instituição e escolhe alguns intelectuais para fazerem parte da agremiação. O ambiente social e político da Alemanha não havia melhorado muito, ao contrário. Foi no início dos anos 1930 que a Alemanha começava a sentir os fortes efeitos da crise da Bolsa de Nova York (1929). As rivalidades políticas aumentam; de um lado socialistas, comunistas e social-democratas e de outros grupos direitistas de diversos graus de radicalismo. Os liberais perdem gradativamente a força, enquanto aumentava o desemprego, a miséria e a falta de perspectivas.
Em 1933 o partido nacional-socialista tem maioria no Parlamento e consegue guindar Adolf Hitler para o cargo de Chanceler. Começa então um período de crescente autoritarismo e antissemitismo. A Escola de Frankfurt, que sempre teve uma visão crítica, influenciada pelo marxismo (neomarxismo) não tem mais função nessa sociedade. Ainda mais, porque a maioria de seus integrantes era de origem judaica. Este o contexto de totalitarismo político no qual nasceu a Escola de Frankfurt. 
No entanto, o fato de ter nascido em um ambiente político e social como este, diferente do atual, em nada invalida as teorias críticas elaboradas por esta escola de pensamento. Em muitos aspectos, ainda vivemos em um ambiente sócio-cultural semelhante àquele da Alemanha da década de 1930, principalmente no que se refere à valorização da racionalidade, associada à produção industrial e a uma suposta visão objetiva do mundo. Igualmente, nossa sociedade capitalista pós-industrial sustenta cada vez uma idéia de racionalidade, principalmente através de seus frutos diretos; a ciência e a tecnologia – que por sua vez servem à economia.
Outro aspecto é que indústria cultural, identificada e analisada pelos pensadores da Escola de Frankfurt, está muito mais entranhada na própria estratégia de desenvolvimento do capitalismo. Atualmente, muito mais do que na Alemanha nazista e no capitalismo de 1930, a indústria cultural está associada com a produção cultural, de uma maneira quase inseparável.
(Imagens: fotografias de Christophe Lecoq)

Vantagens da agricultura orgânica

quinta-feira, 27 de setembro de 2012
"Nada existe que os homens gostem mais de conservar e que tanto desperdicem como a própria vida"  -  La Bruyère  -  Caracteres

O consumo de produtos orgânicos – principalmente os vegetais – ainda é bastante reduzido em todo o mundo. Se nos países desenvolvidos a parte da população com maior poder aquisitivo e consciente em ralação às questões de meio ambiente e saúde consome mais produtos orgânicos, o mesmo não acontece em outras partes do mundo. Este fato se reflete, por exemplo, na área de agricultura ocupada por orgânicos em todo o mundo, que representa apenas 1% de toda área plantada. No Brasil a situação também não é melhor, apesar do gradual aumento do consumo e das exportações destes produtos nos últimos anos. Mesmo assim, o mercado mundial de produtos orgânicos certificados movimentou cerca de US$ 90 bilhões em 2010.  
Por definição, produto orgânico é aquele para cujo crescimento ou preparo não tenha sido usado nenhum tipo de herbicida, fungicida ou adubo químico no caso de vegetais; conservantes, corantes e outras substâncias químicas sintéticas quando se tratar de produtos acabados. Da mesma forma existem produtos orgânicos de origem animal – carnes e outros produtos derivados de animais – aos quais também não são adicionadas substâncias químicas. 
Sob aspecto legal, a agricultura orgânica foi aprovada no Brasil pela Lei 10.831 de 23/12/2003 e posteriormente regulamentada com a publicação do Decreto 6323 de 27/12/2007. Assim como os produtos, as próprias propriedades onde são produzidos os orgânicos precisam atender a uma série de exigências, sendo auditadas e certificadas por entidades competentes. Para se caracterizar como unidade de produção orgânica, a propriedade deve incorporar aspectos ambientais (como a manutenção das áreas de preservação permanente e uso racional dos recursos naturais); econômicos (seja a conservação das espécies agrícolas e da produção locais); e sociais (a melhoria da qualidade de vida de todos aqueles envolvidos na produção). Além disso, todas as unidades de produção orgânica devem ter um Plano de Manejo Orgânico (PMO), que prevê, entre outros aspectos: a manutenção da biodiversidade, a conservação dos recursos naturais e do solo; a prevenção da contaminação da área por substâncias tóxicas, inclusive espécies geneticamente modificadas.
Recentemente pesquisadores do Centro para Políticas de Saúde da universidade de Stanford realizaram um estudo publicado originalmente na revista americana Annals of Internal Medicine. Foram examinados 237 casos que comparam os níveis de nutrientes e contaminantes em frutas, vegetais, grãos, carne, aves, ovos e leite de origem orgânica e não orgânica. Uma das primeiras constatações é que não foi encontrada nenhuma diferença na quantidade de vitaminas entre os dois tipos de produtos. Todavia, outro aspecto levantado chama atenção: o consumo de produtos orgânicos reduz a exposição aos resíduos de pesticidas e bactérias resistentes a antibióticos – fato evidentemente positivo para a saúde dos consumidores.
Com relação à produtividade existe uma diferença entre a agricultura orgânica e a convencional – esta última cerca de 20% a 25% mais produtiva. Tal vantagem foi determinada através de recentes pesquisas e é bem menor do que se estimava no passado. No caso da soja e do milho – cultivos que ocupam extensas áreas e demandam grandes volumes de agrotóxicos – esta diferença pode cair para 10%.   
(Imagens: fotografias de Oliver Wutscher)

Considerações oportunas (XXVI)

terça-feira, 25 de setembro de 2012
Até onde vai a corrupção no Brasil?
jornal O Estado de São Paulo 23 de setembro de 2012

Valério reclama que está sofrendo um 'linchamento'
Empresário diz ter ficado 'irritado' com o fato de ter sido condenado por peculato; advogado admite delação premiada em nova investigação
Escreve o padre Antônio Vieira:
"Os poderosos têm ódio a quem repreende suas injustiças e abominam a quem lhes fala verdade."
"É tal a jactância dos poderosos, e mais daqueles que cuidam que perdem tudo, que têm por afronta do seu poder cuidar-se que tem limite o que podem."
(Imagens: George Gorsz)

Perguntando é que se aprende (XVII)

domingo, 23 de setembro de 2012
Enquanto países desenvolvidos como a Alemanha estabelecem metas de redução de criminalidade - que por lá já é baixa - para 2020, o Brasil se afunda cada vez mais no pântano da violência. Ainda não dispomos de um sistema nacional de informações sobre criminosos e delitos; faltam estatísticas sobre quantidade e tipos de crimes na maior parte das regiões. Ações preventivas de combate à criminalidade são pontuais e pouco frequentes; a maior parte das ações é corretiva – coloca-se a tranca quando a porta já foi derrubada. O sistema judiciário brasileiro, todos o sabemos, é lento e travado por um emaranhado de leis que confunde até mesmo os melhores promotores.
O Brasil é efetivamente um dos países mais violentos do mudo, com mais de um milhão de assassinatos entre 1980 e 2010; também somos o país com o maior número de mortes violentas de jovens com até 19 anos. Em termos de morte violenta temos números mais altos do que muitos países que estão em guerra interna. As nossas estatísticas escabrosas são de todos os tipos: maior consumidor mundial de crack, segundo maior consumidor mundial de cocaína, campeão de seqüestros e por aí vai... Os roubos e furtos de carros chegaram a 255 mil unidades em 2011, ou seja, cerca de 7% da produção nacional (3,3 milhões de veículos em 2011).
Os atropelamentos com vítimas fatais provocados por motoristas imprevidentes ou embriagados também aumentaram nos últimos anos. Segundo o DENATRAN (Departamento Nacional de Trânsito) no Brasil cerca de dois milhões de pessoas se envolvem anualmente em acidentes de trânsito, com mais de 40 mil mortes. Chacinas em periferias e assassinatos de policiais fora de serviço estão se tornando rotina nas grandes capitais. O pior em todo este quadro é que os índices de criminalidade não aumentam somente nas regiões metropolitanas. Na última década mesmo nas médias e pequenas cidades do País aumentaram os crimes de todos os tipos.
Outro aspecto é a corrupção. O Brasil sempre foi um país onde esta prática era bastante comum, tanto no setor público como no privado; costume entranhado em nossa cultura, herdado dos tempos coloniais e desenvolvido no Brasil imperial e republicano. Alguns dizem que no passado não havia tanto acesso à informação e como atualmente tudo é noticiado, têm-se a falsa impressão de que a trapaça é maior. Na verdade, segundo estes, a corrupção continua igual. Não é isto, no entanto, que dizem as estatísticas e o que se percebe na sociedade: a prática da corrupção se tornou mais usual e os valores envolvidos são bem maiores. As propinas surrupiadas por políticos e administradores públicos e distribuídos por empresas são quase sempre maiores do que os “valores do mercado internacional”. Existe mais divulgação atualmente, mas as falcatruas são mais comuns e envolvem quantias mais generosas.
Como foi que chegamos a esta situação? A falência dos diversos poderes e órgãos do Estado é patente. Entretanto, esta gradual decadência não ocorreu de repente. Nos últimos 50 anos a preocupação principal dos administradores públicos tem sido a economia do País – evidentemente trabalhando para os setores sociais mais abonados e com os quais estavam envolvidos. Trabalhadores e pequenos empresários sempre foram e ainda são meros coadjuvantes em todo esse processo. Aqueles que detinham e detêm o poder político e econômico podiam e podem comprar saúde, segurança, educação e tudo mais. Aos demais, quer dizer a maior parte da população, o Estado brasileiro sempre destina as migalhas. Os grandes negócios se faziam entre amigos, que sempre eram amigos do rei.
E assim chegamos onde estamos. Um país socialmente desestruturado, com uma injusta (neste aspecto também somos campeões) distribuição da renda e de todos os outros benefícios que uma sociedade moderna e civilizada poderia oferecer a seus cidadãos. Mesmo sendo a 6ª (agora provavelmente voltamos à 7ª posição) maior economia do mundo, basta sair da porta de casa e ver o quanto esta riqueza está concentrada em pouquíssimos grupos, beneficiando a poucos. No entorno a decadência, a ausência do Estado, o cidadão deixado à própria sorte.
Nossas elites – os grupos sociais dominantes – não foram só truculentas e egoístas; esta é uma característica da maior parte das elites de todos os países. As nossas classes sociais dominantes foram especialmente ignorantes, isoladas em um país que historicamente sempre foi impedido de ter contato com a cultura e as idéias progressistas de outros povos. Até o período imperial o Brasil não tinha imprensa, a importação de livros era controlada (com uma pequena ajuda da Igreja), não havia qualquer incentivo à cultura e à produção de idéias. Sendo assim, o povo e mesmo a maior parte da elite política e econômica, eram formados por pessoas de poucos conhecimentos (e muita ignorância), avessos a tudo que remotamente pudesse significar mudanças econômicas, políticas e sociais. E assim foi até há pouco (e em parte ainda continua sendo).
Sair desta situação histórica vai demandar trabalho. Investimentos em educação, saúde, moradia, saneamento, reforma judiciária, trabalhista, fiscal, etc., etc., - tudo aquilo que todos sabemos e que qualquer candidato medíocre ou empresário televisivo repetem ad nauseam. Mas, acima de tudo, precisaremos de tempo. Muito, muito tempo. Quem pode esperar?

Redução de emissões é cada vez mais urgente

quinta-feira, 20 de setembro de 2012
"Os governantes, numa palavra, são aqueles que têm a faculdade, em grau mais ou menos elevado, de se servir da força social - seja ela a força física, intelectual e econômica de todos - para obrigar todo o mundo a fazer o que eles próprios, os governantes, querem."  -  Errico Malatesta  - A Anarquia

A primeira fase do Protocolo de Kyoto, acordo internacional que visa reduzir as emissões de gases poluentes, termina em 2012. Nesta primeira etapa de vigência do acordo, países em desenvolvimento, mesmo altamente emissores como a China, Índia, Brasil e México, não tinham obrigação de reduzir sua geração de gases de efeito estufa (GEE). Uma nova fase de negociação deverá começar em breve e com isso mais nações serão incluídas no rol daquelas que devem assumir compromissos de redução - incluindo o Brasil.
Com relação às emissões de gases que provocam o aquecimento global da atmosfera, e como consequência as mudanças climáticas, algumas cidades brasileiras já passaram a assumir compromissos de reduzirem seu impacto; caso de São Paulo e Rio de Janeiro. A melhoria da qualidade do diesel usado nos ônibus urbanos, programas de controle de emissões veiculares e o aumento da frota de veículos biocombustíveis estão contribuindo, aos poucos, para reduzir as emissões nos grandes centros urbanos. Mesmo assim, é o setor de transportes que nas áreas urbanas da América Latina ainda é o responsável pelo maior volume de gases poluentes. O Brasil, com uma frota veicular que aumentou bastante nos últimos anos, é o maior emissor deste tipo de gases na América Latina, contribuindo com 23% do volume de todas as emissões.
Outra fonte geradora de gases de efeito estufa (GEE) é o resíduo, principalmente o doméstico, ainda depositado em aterros, e cuja decomposição libera grandes volumes de metano (CH4); gás que tem um efeito muito mais prejudicial do que o dióxido de carbono (CO²), emitido por motores à combustão interna.
Os grandes focos de emissão de GEE são as grandes cidades. Por isso, prefeitos das maiores cidades do mundo, formando o grupo denominado C-40, decidiram, durante a Rio+20, reduzir um volume total de 1,7 bilhões de toneladas de emissões de GEE até o ano 2030. O grupo congrega 59 cidades em todo o mundo, reunindo 554 milhões de habitantes e respondendo por 21% do PIB mundial. Do Brasil fazem parte do grupo as metrópoles de São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba.
Mas o problema das emissões não se limita somente ao transporte urbano. As indústrias também têm um impacto considerável no volume total dos gases gerados e já estão dando sua contribuição nos países desenvolvidos, assumindo metas individuais de redução, negociadas com os órgãos ambientais de seus países. Acompanhando este esforço, o setor industrial brasileiro recentemente se comprometeu a reduzir suas emissões de CO² até 2020. A iniciativa faz parte do "Plano Indústria"; um acordo de cooperação técnica assinado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) com os Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior e do Meio Ambiente. A cooperação gerará um plano a ser definido até 2015, que quando introduzido proporcionará uma redução de emissões em 5% até 2020. Os primeiros setores industriais a serem envolvidos serão as indústrias de alumínio, cimento, papel e celulose; químico, cal vidro e ferro-gusa, responsáveis pelos maiores volumes de gases poluentes.


O próximo setor a ser envolvido em ações semelhantes é o agropecuário, que em todo o mundo é um dos maiores contribuintes na emissão de GEE. Nesta área, o Brasil já detém algumas iniciativas pioneiras, como o plantio direto e o uso de biomassa em grande quantidade para geração de energia. Por outro lado, o setor é um grande contribuinte no volume de emissões; tanto por causa da criação de gado, quanto da agricultura e a inerente derrubada de vegetação nativa.

(Imagem: fotografia de Fred Korth)

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 18 de setembro de 2012

A fatura do bem-estar
Na busca da felicidade como 'novo' leitmotiv do mundo gerencial, muitas vezes os de baixo acabam pagando a conta, avalia escritor
(publicado originalmente no jornal O Estado de São Paulo em 16 de setembro de 2012)
RICARDO ANTUNES - O Estado de S.Paulo
Numa primeira mirada, Felicidade S.A. parece mais um livro de autoajuda a entulhar as prateleiras das livrarias dos aeroportos e, assim, causar regozijo aéreo em quem lê só quando não tem mais nada que fazer. Mas as aparências enganam...
Depois de passar anos na editoria de Época Negócios, entrevistando gestores e consultores, lendo relatórios de pesquisas de diversos países, perseguindo autores clássicos e contemporâneos, Alexandre Teixeira, em seu métier jornalístico, realizou uma incursão nas ideias que povoam o mundo dos que vivem de negócios - etimologicamente, os que negam o ócio. Mergulhou no ideário gerencial dos que estão no topo. O resultado é forte: se a onda é a do ideário da felicidade, a pragmática que prolifera é a da corrosão.
Em suas entrevistas, o autor dialoga com os gestores e suas concepções acerca das relações entre felicidade e dinheiro, liderança e despotismo, sofrimento e ascensão, homem cordial e patriarcalismo, tempo livre e tempo poluído fora do trabalho, meritocracia e qualidade de vida, entre outros. Se, por vezes, o ex-editor de negócios aparenta estar absorto pelo ideário dos gestores, o repórter pesquisador sempre desconfia. Percebe que o movimento existente na superfície - a busca da felicidade como o "novo" leitmotiv do mundo gerencial - está em descompasso com a guerra das empresas globais em sua competitividade destrutiva. Esse descompasso faz com que o paralelo acabe por entrar em curto-circuito, e quando isso ocorre, são os "de baixo" que acabam pagando a conta.
É por isso que o autor afirma que se trata de "um livro sobre a felicidade no trabalho inspirado, em boa medida, pela ausência dela", dadas as "reclamações generalizadas sobre as jornadas de trabalho intermináveis" e a "ditadura do Blackberry", entre tantos outros elementos. E não é fora de propósito lembrar que BlackBerry era um grilhão usado durante a escravidão, nos Estados Unidos, que atava os pés dos negros como forma de impedir sua fuga. Só que agora adentramos na fase do grilhão digital.
Nas partes referentes às relações entre dinheiro, riqueza e felicidade, o autor demonstra que o ideário da felicidade é frequentemente obnubilado pelo frenesi do dinheiro e da riqueza. Chega a ser constrangedor ouvir gestores lá de cima, no cume do controle, afirmar que buscam mesmo é a felicidade. Seria interessante perguntar: qual é a base de sustentação dessa "nova felicidade"? Como vivem os proprietários/altos gestores/grandes acionistas entrevistados? Serão comedidos no número de automóveis que possuem? São monges em relação ao número de aposentos em suas mansões e na vastidão de suas propriedades para viver o gozo e a fruição? São constritos na parafernália de aparelhos informacionais-digitais (computadores, tablets, ipads, iphones, celulares, televisores, etc.) que possuem, eles, seus filhos e familiares? Ou será que a "felicidade" tão almejada no "espaço de trabalho" dos gestores é aquela que se erige a partir da abundância do consumo fetichizado e da superfluidade? Se assim for, seria também interessante indagar como a felicidade nos escalões de cima se sustenta e se fundamenta na "redução" das necessidades e carecimentos cotidianos daqueles que vivem no chão das empresas.
O livro apresenta um amplo leque de indicações sugestivas, especialmente à medida que vai descendo os degraus das hierarquias dos assalariados nas empresas: o Japão do emprego vitalício, por exemplo, ao ocidentalizar-se e praticar seu downsizing, não estaria vitimando especialmente seus jovens, dado que as corporações querem cada vez mais trabalhadores "diaristas"? A Google, ao oferecer condução para seus "colaboradores", com Wi-Fi para que possam conectar-se e laborar antes mesmo do horário de trabalho começar e ainda ofertar lavanderia para seus "colaboradores", não estaria se apropriando do tempo de trabalho de seus engenheiros e programadores? E a Atlasian, produtora australiana de software, ao criar o FedEx Day, "um dia de trabalho a cada trimestre no qual os funcionários ficam livres para trabalhar no que desejarem, com o único compromisso de entregar algo à empresa no dia seguinte", não estaria fazendo o mesmo? O resultado: em 18 realizações do dito-cujo, "550 projetos foram apresentados e 47 projetos ou aprimoramentos foram entregues a clientes da companhia". Não é preciso dizer que a ideia do FedEx Day se espalhou pela "aldeia global", pois instilar "ócio criativo" traz mesmo é aumento da massa de mais valia, através da subordinação dos trabalhos imateriais à forma-mercadoria.
E foi seguindo essa trilha que o qualificado livro-reportagem de Alexandre Teixeira, ao tratar da felicidade no trabalho, mesmo daqueles que dispõem de certo "capital cultural", esbarrou frequentemente em sua infelicidade. O que não dizer, então, dos que estão lá "em baixo", cuja felicidade em ter emprego convive cotidianamente com o risco de perdê-lo?

"Metas de Sustentabilidade para Municípios"

domingo, 16 de setembro de 2012
"Para o conhecimento do controle, tudo será trazido ao mundo sob o controle de seu saber. O saber do controle chama-se técnica. Cabe à técnica controlar o aparecer reduzindo cada coisa a um instrumento de seu saber fazer. Tudo o que é deve se tornar o objeto de um objetivo para o saber e fazer do homem: nada pode ter uma "vontade" própria."  -  Guy Van de Beuque  -  Experiência do Nada como princípio do mundo

Em época de eleições municipais todos os partidos e candidatos aparecem com novas idéias – geralmente antigas propostas com novas roupagens. Todavia, o que nenhum candidato apresenta é um programa completo, que trate das necessidades de uma forma coordenada; um programa com começo, meio e fim. São soluções pontuais para alguns problemas específicos, sem encadeamento, sem abranger a cidade em todos os seus aspectos. 
A Rede Nossa São Paulo, a Rede Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis e o Instituto Ethos, são ONGs que trazem uma importante contribuição para as próximas eleições, tanto para os candidatos quanto para os eleitores. Acabam de divulgar as “Metas de Sustentabilidade para os Municípios Brasileiros”, (http://www.cidadessustentaveis.org.br/downloads/publicacoes/publicacao-metas-de-sustentabilidade-municipios-brasileiros.pdf), um documento elaborado tendo em vista o desenvolvimento urbano baseado em uma ótica socioambiental. Única no mundo, a proposta apresenta uma série de sugestões em várias áreas, contendo programas e exemplos práticos. De uma maneira bastante resumida, apresentamos abaixo os principais itens tratados pelo documento:
a) Governança, visando fomentar a participação dos cidadãos de uma maneira inclusiva nas diversas decisões político-orçamentários do município;
b) Proteger os bens naturais, preservando áreas e utilizando insumos como água e energia de maneira mais eficiente;
c) Equidade, justiça social e cultura de paz, prevenindo a pobreza e ampliando o acesso aos serviços públicos, promovendo a inclusão social e a segurança;
d) Gestão local para a sustentabilidade, apoiando a implantação da Agenda 21 e de diversas ações de sustentabilidade;
e) Planejamento e desenho urbano valorizado na abordagem de questões econômicas, sociais, culturais e de saúde;
f) Cultura para sustentabilidade, desenvolvendo políticas culturais que valorizem a diversidade, o pluralismo e a defesa do patrimônio cultural;
g) Educação para sustentabilidade e qualidade de vida, promovendo oportunidades de educação para todas as camadas da população, para que se transformem em protagonistas do desenvolvimento sustentável do município;
h) Economia local dinâmica e sustentável, visando estimular a produção e o emprego local, desenvolver princípios de sustentabilidade nas empresas e no turismo;
i) Consumo responsável e opções de estilo de vida, produzindo de maneira ambientalmente correta, utilizando os recursos com eficiência e promovendo a reciclagem com inclusão social de catadores e recicladores;
j) Melhor mobilidade, menos tráfego, reduzindo o transporte individual, melhorando o transporte público e adotando o alternativo, como bicicletas e veículos menos poluentes;
k) Ação local para a saúde, promovendo informações sobre vida mais saudável, investindo na saúde pública com gestão participativa;
l) Do local para o global, assumindo responsabilidades globais pela paz, justiça social e proteção ao ambiente.
Os candidatos ao legislativo e ao executivo nas próximas eleições municipais têm obrigação de pelo menos ler este importante documento. As sugestões aí apresentadas poderão ajudar muito as futuras administrações. Nós, eleitores, devemos conhecer as propostas para fiscalizar e cobrar nossos candidatos.
(Imagens: fotografias de Markus Hartel)

Os objetivos do milênio

quinta-feira, 13 de setembro de 2012
"A agressão física faz parte do ser humano. Apenas quando as pessoas alcançam certo padrão econômico, educacional e cultural é que esse traço é sufocado. À luz do fato de que 95 por cento do crescimento populacional da terra se dará nas áreas mais pobres do globo, a questão não é se vai haver guerra (haverá muitas), mas de que tipo."  -  Robert D. Kaplan  -  À beira da anarquia

Tema pouco tratado nos últimos anos pela imprensa - mesmo pela mídia especializada - a questão dos Objetivos do Milênio volta a ocupar espaço nos debates. As metas, estabelecidas pelos países membros da ONU em 2000, reune um conjunto de propostas, que deveriam ser cumpridas pelos países até o ano de 2015. Os oito principais objetivos são:
Objetivo 1 – Erradicar a pobreza extrema e a fome
·         Diminuir em 50% entre, 1990 e 2015, o número de pessoas com renda inferior a 1US$ ao dia;
·         Reduzir pela metade, entre 1990 e 2015 a proporção de pessoas que passam fome;
Objetivo 2 – Universalização da educação primária
·         Assegurar que até 2015 todas as crianças, meninos e meninas, tenham condições de completar a educação primária;
Objetivo 3 – Promover igualdade entre os sexos e valorização da mulher
·         Eliminar a disparidade entre os sexos na educação primária e secundária, preferencialmente até 2005 e em todos os níveis de educação até 2015;
Objetivo 4 – Reduzir a mortalidade infantil
·         Reduzir entre 1990 e 2015 em dois terços a taxa de mortalidade infantil entre crianças com menos de cinco anos;
Objetivo 5 – Melhorar a saúde das gestantes
·         Reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna entre 1990 e 2015;
Objetivo 6 – Combater a AIDs, a malária e outras doenças
·         Parar e gradualmente reduzir a taxa de contaminação com AIDs até 2015;
·         Parar até 2015 e reverter a taxa de propagação da malária e outras doenças importantes;

Objetivo 7 – Assegurar a sustentabilidade ambiental
·         Integrar os princípios do desenvolvimento sustentável às políticas dos países e reverter a perda de recursos naturais;
·         Reduzir pela metade até 2015 a proporção de pessoas sem acesso à água e ao saneamento;
·         Alcançar até 2015 melhoria significante na vida de pelo menos 100 milhões de moradores de favelas;
Objetivo 8 – Desenvolver parcerias globais para o desenvolvimento
·         Desenvolver sistemas de comércio e financiamento claros, previsíveis, regulados e não discriminatórios (incluindo comprometimento com boa governança, desenvolvimento e redução da pobreza – nacional e internacionalmente);
·         Contemplar as necessidades dos países menos desenvolvidos (exportação livre de cotas e tarifas, redução de débitos);
·         Contemplar as necessidades especiais de países sem acesso ao oceano e ilhas-estado em desenvolvimento;
·         Atuar de maneira compreensiva com os débitos dos países em desenvolvimento;
·         Em cooperação com países em desenvolvimento implementar estratégias visando proporcionar trabalho decente e criativo para jovens;
·         Em cooperação com indústrias farmacêuticas proporcionar acesso a medicamentos essenciais;
·         Em cooperação com empresas privadas, tornar acessível a todos os benefícios das novas tecnologias, especialmente informática e telecomunicações.
Grande parte dos objetivos, já sabemos de antemão, não será cumprida. A crise da economia mundial que se arrasta desde 2008, afetando principalmente os países pobres e em desenvolvimento - considerados os principais alvos das metas -  não deve diminuir durante os próximos anos. Mesmo os países ricos, como os Estados Unidos e diversos países europeus, estão vendo seus indicadores sociais piorarem.
O Brasil apresentou vários avanços, seja em relação à distribuição de renda, quanto ao combate de doenças endêmicas. Mesmo assim, ainda existe muita pobreza, falta de saneamento, a educação ainda vai mal das pernas, o número de assassinatos sem solução aumenta assustadoramente, entre algumas mazelas.  
(Imagens: fotografias de Ara Güler)

Considerações oportunas (XXV)

domingo, 9 de setembro de 2012

Para onde será que vai tanto dinheiro público?

Jornal O Estado de São Paulo online de 9 de setembro de 2012

CPI do Cachoeira frustra terceira tentativa de investigar empreiteiras
A decisão do comando da CPI do Cachoeira de congelar as atividades até o primeiro turno das eleições enterra, na prática, a tentativa de aprofundar as investigações dos laços da construtora Delta com o governo federal. É a terceira vez, em 20 anos, que o Congresso barra o avanço de uma comissão de inquérito que se propôs a investigar as relações das empreiteiras com o poder público.
Escreve Machado de Assis:
" Corrupção escondida vale tanto como pública; a diferença é que não fede".
"Quem pode impedir que o povo queira ser mal governado? É um direito anterior e superior a todas as leis." 
(Imagens: Georg Grosz)

A teoria do aquecimento global

quinta-feira, 6 de setembro de 2012
"Todos nós conhecemos a força das ilusões visuais para levar a mente a perceber as coisas incorretamente, mas a mais poderosa ilusão é a sensação de que existimos dentro de nossas cabeças como um coerente e integrado indivíduo ou eu."  -  Bruce Hood  -  The self illusion (a ilusão do eu) 

Nos últimos meses, voltou a esquentar a polêmica sobre o aquecimento global. Defendem alguns cientistas – os assim chamados “céticos do clima” – de que a temperatura média da Terra não está aumentando e que as mudanças climáticas por isso também não existem. Portanto, a ação das atividades econômicas sobre o clima da Terra é inócua. Todas as emissões de gases, aparentemente causadores do efeito estufa, não têm qualquer influência sobre a temperatura e o clima.
No entanto, um estudo realizado pela agência espacial americana NASA e publicado na revista científica PNAS (Proceedings of National Academy of Sciences), está revelando que efetivamente a temperatura da Terra vem aumentando nos últimos 30 anos. Ao mesmo tempo, um dos mais famosos “céticos do clima”, o climatologista e físico da Universidade da Califórnia, Richard Müller, realizando uma pesquisa em 2011, concluiu que realmente a temperatura do planeta está subindo. Ao mesmo tempo, segundo o climatologista, existem fortes indícios de que os gases provenientes das atividades humanas estejam provocando este escalada da temperatura.
Os gases de efeito estufa são originados principalmente pelos setores de geração de energia do hemisfério Norte, que queimam grandes quantidades de carvão mineral, para manter suas termelétricas em pleno funcionamento. Outro setor altamente emissor é o dos transportes – somente a frota mundial de automóveis, segundo estimativas mais recentes, está em torno de 1,1 bilhões de veículos. E isso sem contar os aviões, trens, navios e outros meios de transporte. Logo atrás destes setores, em volume de emissões, vem a atividade agrícola, que só no Brasil é responsável por mais de 50% das emissões de gases de efeito estufa. As chamadas mudanças do uso do solo quando, por exemplo, uma floresta é derrubada para dar lugar à agricultura, pastagens ou outra forma do uso da terra, liberam para a atmosfera uma grande quantidade de metano – um gás resultante da decomposição de matéria orgânica e muito prejudicial ao clima. Mesmo a atividade agrícola comum, como o plantio da cana-de-açúcar, cujas folhas cortadas apodrecem no solo, é grande geradora de emissões.
Como toda a teoria científica, o fenômeno das mudanças climáticas – resultado do acúmulo de gases na atmosfera em parte gerados pelas atividades humanas – é uma explicação bastante plausível para uma série de fenômenos. No entanto, dada a complexidade do tema, não se trata de uma teoria definitiva e correspondendo totalmente à realidade. Esta "certeza para os leigos" poucas teorias científicas efetivamente podem oferecer. Por outro lado, é preciso considerar que o grau de veracidade desta teoria já é bastante alto, fundamentado por descobertas e dados estatísticos que aparecem a cada semana. Se os argumentos dos “céticos do clima” explicam certos fenômenos de outra forma, sem utilizar a teoria do aquecimento global, há vários fatos que são mais bem harmonizados com o auxílio da teoria.
Independentemente de sua certeza, a teoria do aquecimento da Terra com a ajuda da atividade humana está prestando um grande serviço. Na pior das hipóteses está chamando a atenção para as emissões de gases causadas por nossas poluentes máquinas, pelos resíduos e lixões, pelos desflorestamentos, pelos efluentes domésticos não tratados e vários outros problemas. Se não fosse certa urgência causada por esta teoria, os governos e os grandes emissores de todo o mundo ainda estariam pensando em limpar a poluição depois de gerada – a mentalidade do tratamento de “final de tubo” –, ao invés de evitá-la, através da prevenção à poluição e da ecoeficiência.      
(Imagens: fotografias de Mukesh Parpiani)

da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 4 de setembro de 2012

O Brasil e os carros mais caros do mundo

(publicado originalmente pelo Instituto Humanitas Unisinos em 01 de setembro de 2012)

A Dilma Rousseff decidiu manter a isenção do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para veículos novos como um estímulo ao consumo. Os carros brasileiros ocupam o primeiro lugar quanto a preço e lucros das montadoras.
A reportagem é de Eric Nepomuceno e está publicada no jornal argentino Página/12, 31-08-2012. A tradução é do Cepat.
O Brasil é o quarto maior mercado automobilístico do mundo: está atrás apenas da China, Estados Unidos e Japão. A produção ultrapassa uma marca após outra, e agora mesmo a presidenta Dilma Rousseff decidiu manter, por mais dois meses, a isenção do IPI para veículos novos.
Essa medida, que fez baixar os preços e aumentar as vendas, faz parte da política de estímulo ao consumo interno determinado pelo governo, cujo objetivo é impedir um esfriamento mais acentuado da economia. As projeções iniciais indicam que em agosto foram vendidos 400.000 carros e produzidos 330.000. A produção estimada para este ano beira a marca dos 3,4 milhões de veículos.
Em meio a essa chuva de números, um salta à vista: se é o quarto maior mercado mundial, os veículos brasileiros ocupam o primeiro lugar quando se trata de preços e lucros das montadoras. O mesmo carro pode custar no Brasil até 106% a mais que na França, 76% a mais que nos Estados Unidos, 70% a mais que no Japão e 29% a mais que na Argentina.
Em geral, a culpa sobre o altíssimo preço que um brasileiro paga por um carro é imputado à carga tributária, efetivamente muito elevada, a mais elevada em comparação com a Argentina, França, Estados Unidos e Japão, e o dobre da média mundial.
Mas agora surgem dados, em um estudo que a consultoria IHS Automotive realizou nesses cinco países, que indicam que no Brasil as margens de lucros das montadoras são, de longe, as mais elevadas. Aqui, 10% de um veículo são puro lucro. Nos Estados Unidos, 3%. A média mundial é de 5%.
Embora o mercado brasileiro conte com proteção para a indústria local (os importados têm uma taxa fiscal muito maior que os nacionais) e haja uma forte concentração de vendas em quatro grandes marcas – Volkswagen, Ford, Fiat e General Motors –, o que já asseguraria ampla vantagem para esses fabricantes, as margens de lucro são mais suculentas que em qualquer outra parte, graças aos preços praticados. Na média mundial, 30% dos mercados internos são controlados pelas marcas que concentram, regionalmente e caso a caso, maior poder de vendas. No Brasil, essas quatro concentram nada menos que 81% do mercado. Estimulados pela redução de parte da carga fiscal, os brasileiros compram carros novos a prazo, pagando em até 60 meses. Com essa forte demanda, nenhum dos fabricantes que controla o mercado tem interesse algum em baixar suas margens de lucro, ou seja, baixar ainda mais os preços.
Se se desconta a pesada carga fiscal, ou seja, colocando-a no mesmo nível dos outros quatro países que o relatório compara, o preço final do carro no Brasil continua sendo consideravelmente mais alto. Se se considera que um operário nos Estados Unidos ou do Japão ou da França ganha bem mais que seu colega brasileiro, o quadro fecha de maneira inequívoca: é no lucro da indústria que reside a diferença.
Há, desde já, outros aspectos que compõem o preço de um carro vendido no Brasil e do mesmo modelo na Argentina, França, Japão ou Estados Unidos. Um, em especial, chama a atenção. Nos Estados Unidos, o custo de produção de um carro (matéria-prima, mão de obra, logística, publicidade) significa 88% do preço final. A média mundial indica que esse custo é de 79%. No Brasil, apenas 58%. Ou seja: custa muito menos produzir no Brasil o mesmo carro produzido nos Estados Unidos, embora o preço aqui seja muito maior.
No caso dos importados, o quadro se mostra ainda mais grave. Um modelo básico do Jeep Cherokee, por exemplo, sai para o comprador por 89.500 dólares no Brasil. Em Miami, esse dinheiro seria suficiente para comprar três (a 28.000 dólares cada um) e ainda guardar dinheiro para o combustível de um ano inteiro.
Um Honda do modelo Fit custa, para um brasileiro, 106% a mais que para um comprador francês (onde o carro se chama Jazz). Um utilitário Nissan Frontier vale, no Brasil, 91% a mais que nos Estados Unidos. Se ambos os compradores pagassem o mesmo imposto, mesmo assim esse carro custaria ao brasileiro 31% a mais.
Estudos indicam que enquanto não houver uma verdadeira disputa pelo mercado interno, e enquanto quatro montadoras continuarem concentrando 81% do volume comercializado, os estímulos oferecidos pelo governo aos compradores serão, na realidade, estímulos para que a indústria continue ganhando cada vez mais.
E assim, o país que é o quarto maior mercado mundial continuará sendo o principal motor de lucros de uma indústria tão poderosa quanto beneficiada no Brasil.

Micropoluição das águas

domingo, 2 de setembro de 2012

"O combate, agora sem fronteiras, a que se entregam os mais ricos e poderosos, pela posse do espaço, do dinheiro, dos bens e dos signos, termina, ou melhor, deve chegar, segundo sua dinâmica, a seu término. Porque produz um mundo exatamente sem fronteiras, que a ninguém mais pode pertencer."  -  Michel Serres  -  O Mal limpo - poluir para se apropriar


Na Europa e Estados Unidos, desde a década de 1980 já é grande a preocupação com a qualidade da água. Não que a pureza do líquido não atendesse às especificações estabelecidas por normas sanitárias internacionais, ao contrário. Os consumidores recebem em suas casas água potável da mais alta qualidade, tanto que em algumas regiões da Alemanha e da França a água da torneira tem a mesma qualidade da água mineral, comercializada a altos preços em garrafas, nos restaurantes tradicionais.
O que vem preocupando as autoridades sanitárias daquelas regiões é a presença de diversas substâncias que não podem ser removidas da água pelo tratamento convencional. Análises laboratoriais constataram que águas de rios, lagos e barragens, aparentemente livres de qualquer contaminação, continham pequenas quantidades de poluentes provenientes de medicamentos (hormônios, drogas ilícitas); produtos de beleza; higiene pessoal e limpeza; aditivos para gasolina, entre outros.
No Brasil ainda estamos em um patamar diferente. Damo-nos por satisfeitos quando nossas estações de tratamento de água (ETAs) conseguem eliminar as substâncias patogênicas e tóxicas mais elementares que ainda pululam em nossas águas destinadas ao consumo humano. Recebendo efluentes domésticos e industriais, agrotóxicos e lixo, as águas dos rios que se transformam na água que bebemos precisam receber um forte tratamento químico, antes de chegarem às nossas torneiras – quanto mais suja a água, tanto mais caro o processo para purificá-la. Mas, na prática, ainda estamos bastante afastados do nível de preocupação dos países desenvolvidos, com relação à pureza da água.
Recentemente, no entanto, o Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) do Ministério do Meio Ambiente (MMA), apresentou proposta de desenvolvimento de tecnologias para acompanhamento da qualidade dos rios cujas águas são destinadas ao consumo humano. O objetivo da ação é retirar da água as nanopartículas que possam causar dano à saúde das pessoas. Esses pequenos resíduos, não sendo eliminadas com o tratamento convencional, requerem o uso de tecnologias de ultrafiltração e nanofiltração, por exemplo, capazes de reter moléculas e até vírus. É sabido há tempo que a ingestão de água contendo estes traços de poluentes, mesmo que em mínimas quantidades, pode levar a doenças como o câncer, distúrbios metabólicos e endócrinos, mutações no DNA e outras ainda em estudo. Cogitam os médicos de que a alta taxa de infertilidade feminina e masculina, entre as gerações mais novas, também pode ter relação com estas substâncias dissolvidas na água. O prejuízo, dizem os cientistas, não está na quantidade, mas na ingestão prolongada.
No Brasil ainda estamos tecnologicamente atrasados, às voltas com ações visando reduzir a poluição de recursos hídricos destinados ao consumo humano e tentando diminuir perdas de água tratada durante o processo de distribuição aos consumidores. No entanto, com a melhoria da infraestrutura de saneamento, inevitavelmente a micropoluição da água se tornará tema importante. Inúmeros casos de doenças, cujas causas são atribuídas ao acaso ou ao destino, são efetivamente o resultado da falta do uso de tecnologias adequadas para tratar ou impedir a poluição da águas.
(Imagens: fotografias de Tina Modotti)