"A aparentemente fundamental indagação filosófica: 'Quanto de nossa ciência é mera contribuição da linguagem e quanto é um reflexo genuíno da realidade?' talvez seja uma falsa pergunta, que surge, ela própria, inteiramente de certo tipo particular de linguagem." - Willard Van Orman Quine - De um ponto de vista lógico
Até
o século XVII, quando teve início o desenvolvimento do pensamento científico
com Galileu (1564-1642) e Bacon (1561-1626) e do moderno pensamento
(metafísico) filosófico com Descartes (1596-1650), não se cogitava sobre o
objeto do conhecimento, o mundo exterior. A filosofia grega e a medieval
partiam do pressuposto de que a realidade (o mundo, a natureza) estava dada.
Perguntavam-se os pensadores o que era esta realidade que a razão podia
conhecer. Este pressuposto filosófico, de que a realidade exterior era o que
representava e podia ser conhecida pelo pensamento, chamava-se realismo. Foi
neste contexto que surgiu a metafísica, que durante a maior parte da história
da filosofia sempre foi a sua mais importante disciplina.
As
perguntas iniciais da filosofia foram: “O que existe?”; “O que é isto que
existe?”; “Como é isso que existe?”; e “Por que existe?”. Estas questões
marcaram o primeiro período da filosofia, quando esta ainda perguntava sobre a
natureza e constituição última do cosmos. Daí Aristóteles
escrever que os primeiros filósofos eram físicos, já que se ocupavam do estudo
da physis, a natureza. Atualmente
conhecemos os principais filósofos deste período como pré-socráticos, por terem
atuado antes do aparecimento do filósofo Sócrates.
A
cosmologia (ou fisiologia) era a forma como pensadores como Tales de Mileto,
Anaximandro, Anaxímenes, Pitágoras, Heráclito, Parmênides, só para citar
alguns, procuravam – cada um à sua maneira – explicar a constituição última do
universo, a mudança das coisas e as oposições (frio/calor, verão/inverno,
vida/morte). Ponto comum entre todos estes pensadores era a tentativa de
estabelecer um elemento originário, a partir do qual os seres e suas
transformações pudessem ser explicados. Água, ar, apeíron (ilimitado, indefinido), números, foram algumas explicações
desenvolvidas por estes pensadores. Dentre os cosmologistas ou pré-socráticos
destacaram-se dois filósofos, por sua originalidade, oposição de conceitos e
importância no posterior desenvolvimento da metafísica grega e cristã:
Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eléia.
Heráclito
(535-475 A.C.)
dizia que a realidade era o devir, a constante transformação de tudo, tudo flui
e se transforma em seu oposto: o menino se transforma em um homem adulto e
depois em um velho; a neve se transforma em água e depois volta a se congelar;
uma estação sucede à outra. A metáfora que tornou este pensador famoso foi a do
rio: “É impossível entrar no mesmo rio
duas vezes”, já que nem as águas nem nós somos os mesmos. O Logos (o discurso sobre o ser) é a
mudança e a contradição.
Parmênides
(530-460 A.C.)
negava o movimento e a mudança do Ser, da realidade. Se houvesse realmente
mudança, afirmava, seria possível o Não-Ser, o que é uma contradição. O Não-Ser
não existe, o que leva à conclusão de que só existe o Ser, a imutabilidade. Em
seu poema épico Sobre a natureza e sua
permanência, Parmênides defende três pontos principais a respeito do Ser: 1) O Ser é único. Se fosse múltiplo cada ser seria e não
seria, o que é contraditório; 2) O Ser é eterno. Se fosse substituído por outro
existiriam dois Seres, o que é absurdo. Se tivesse um fim, seria o Não-Ser, o
que é absurdo; e 3) O Ser é imutável. Se o Ser mudasse, se transformaria
no Não-Ser, o que é impossível que ocorra. O devir aparente do ser é uma
ilusão.
Parmênides
estabelece uma importante diferença entre o pensar e o perceber. Ao mudar o
foco do pensamento das coisas que se transformam – característica dos físicos
que estudavam a physis – para o Ser
imutável, o filósofo inaugura a ontologia (o estudo do Ser enquanto Ser),
também chamada na história do pensamento ocidental de metafísica. Todavia, o
pensamento de Parmênides, se levado às suas últimas conseqüências também coloca
um fim definitivo à história da metafísica. De acordo com seu pensamento, só
eram possíveis três afirmações sobre o Ser: “o Ser é”; “o Não-Ser não é”; e “o
Ser é único, idêntico e imutável”, nada mais.
Platão
(427-347 A.C.),
discípulo de Sócrates (469-399
A.C.), é considerado pela tradição filosófica como o
fundador da metafísica. Não por tê-la criado como disciplina, mas por ter
colocado os fundamentos teóricos para que seu discípulo Aristóteles criasse a
disciplina. Platão concorda com Heráclito no que se refere à constante mudança que
ocorre na natureza, no mundo das aparências. Por outro lado está de acordo com
Parmênides, quando este diz que o pensamento deve se concentrar no Ser
imutável, único e eterno. No entanto, diferentemente de Parmênides, que não
conferia nenhuma existência ao mundo das aparências classificando-o de Não-Ser,
Platão concede uma existência “fraca” ao mundo aparente, a fim de poder
construir todo um arcabouço de idéias que se tornarão a base da filosofia
ocidental. O filósofo inglês Alfred North Withehead (1861-1947) dizia que toda
a filosofia era apenas comentário, notas de rodapé, ao sistema filosófico
platônico.
Platão
provavelmente era discípulo ou conhecia bastante os mistérios órficos. Este
culto é baseado na lenda do herói Orfeu que desceu ao reino dos mortos, o
Hades, para salvar sua esposa Eurídice. A narrativa é bastante complexa e é
citada por Homero, Píndaro e Eurípedes. Os cultos órficos eram secretos (daí o
nome “mistérios”) e sua doutrina era aparentada com o pitagorismo, tendo também
influência de cultos orientais. Cogitam alguns autores, que a influência do
orfismo tenha sido decisivo para que Platão desenvolvesse o conceito dos
“Ideais” ou “Idéias”. Este sistema representa de certo modo a síntese das
idéias que vinham sendo desenvolvidas pelos pensadores fisiologistas, por
Heráclito e Parmênides. Explicava o fundamento último da realidade, a mudança
constante e o imutável pelo conceito das Idéias contraposto ao mundo material.
Cada
Idéia ou Ideal é equiparável ao Ser de Parmênides; eterno e imutável. Assim, em
sua alegoria
Platão afirma que existem Idéias de todas as coisas que
encontramos no mundo do devir; existe uma Idéia de cavalo, do qual os demais
exemplares vivos da espécie equus
ferus caballus são apenas uma cópia. As mesas, as cadeiras também têm suas Idéias
neste mundo da perfeição, que também é habitado por conceitos como justiça,
beleza e amor, dos quais nossas versões terrenas são apenas cópias. Para
completar a função de sua alegoria, Platão afirma que nossas almas antes de
nascerem convivem e contemplam todas as Idéias. Ao voltar a viver no mundo das
aparências, a alma se esquece das Idéias que contemplou. É através da prática
da filosofia, que o homem pode recordá-las e tornando-se consciente delas, como
Platão descreveu na famosa Alegoria no livro A República.
A metafísica tem início efetivamente com Aristóteles
(384-322 A.C.).
Diferentemente de seu mestre Platão, o Estagirita não julga a natureza como
mundo das aparências, ilusório e contraposto a um mundo perfeito, o das Idéias.
Aristóteles parte do pressuposto de que o devir é verdadeiro e que sua
característica é exatamente a multiplicidade e a transitoriedade. A essência
das coisas não está em um além de Idéias, mas nas próprias coisas, cuja
essência é estudada pela metafísica. No livro IV da sua Metafísica, escreve
Aristóteles: “Há uma ciência que
investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido a sua
própria natureza” (Aristóteles, 2006). Outros aspectos do ser são estudados
pelas ciências específicas – física, geometria, biologia, etc. A metafísica
estudará o que é a essência e aquilo que faz com que haja essências
particulares e diferenciadas. Em outras palavras, a ciência que estuda o Ser
enquanto ser, sem levar em conta as diferenças entre os seres. Aristóteles
desenvolveria a metafísica, transformando-a em uma ciência que estudaria
fundamentalmente três coisas: 1) O ser
divino, a realidade imutável, o que Aristóteles chamou de Primeiro Motor. Todas
as coisas estão em constante mudança porque existe nelas um impulso que faz com
que almejem a perfeição do Primeiro Motor; estado que, segundo Aristóteles,
nunca alcançarão; 2) As
causas primeiras de todos os seres, que explicam o porquê, o quê e o como das
coisas; 3)
Atributos e propriedades de todos os seres, através dos quais podemos
determinar a essência de um ser particular. Esta essência é a realidade última
de um ser, sem a qual não existe. A essência é chamada de substância, foco de
estudo da metafísica; termo que será muito importante durante toda a filosofia
medieval – principalmente a tomista – até os modernos como Descartes, Leibniz e
Espinosa.
A metafísica aristotélica será a base de toda a
metafísica ocidental e é balizada por alguns conceitos, como: 1)
Primeiros princípios: causalidade, não contradição e terceiro excluído;
princípios lógicos que também são ontológicos; 2)
Causas primeiras: que explicam o que é a essência de determinado ser, assim
como origem e motivos de sua existência; e 3)
Outros atributos como: matéria, forma, potência, ato, essência, acidente, substância
e predicados.
A metafísica cristã é uma adaptação da metafísica
aristotélica ao cristianismo. Contribuíram para esta fusão de sistemas e idéias
correntes de pensamento como o neoplatonismo, o estoicismo e o gnosticismo. O
maior desafio do nascente cristianismo era contemporizar a nascente fé – que
partia de idéias oriundas do judaísmo tardio – com a filosofia grega
racionalista.
Entre os séculos V e XII a filosofia, e com esta a
metafísica, ainda era fortemente influenciada pelas idéias de Platão, pois em
suas origens a síntese do cristianismo com a filosofia grega ocorreu sob a
égide o neoplatonismo, já que por esta época a obra de Platão e Aristóteles era
desconhecida para a cultura latina. No século XII aparecem as primeiras traduções
do árabe para o latim de textos originais dos dois pensadores, e a partir daí
as idéias de Aristóteles passaria a exercer influência hegemônica, tanto sobre
a filosofia como a teologia, através de Tomás de Aquino.
No século XVI e XVII surgem novas formas de interpretação
da metafísica. Pensadores da época já não aceitavam mais idéias que não
pudessem ser estabelecidas pelo intelecto. Esta nova mentalidade assume as
seguintes características: 1) Incompatibilidade entre fé e razão; 2) Redefinição do termo “substância”, elemento
importante na metafísica aristotélica e medieval. Para Descartes, por exemplo,
há três substâncias: a pensante (alma intelecto), a extensa (corpos) e a
infinita (Deus). Já Hobbes (1588-1679), negava a capacidade de conhecer a
substância divina (Deus) e a anímica (alma). Aos sentidos era dada somente a
substância corpórea (a matéria).
Em sua filosofia Hobbes nega a possibilidade de
elaboração de uma metafísica, permanecendo limitado ao âmbito da física. O
pensador foi assim um dos primeiros detratores modernos da metafísica,
inaugurando uma linha de pensamento que a partir do século XVII e XVIII –
notadamente depois de Kant (1724-1804) – teria um numero cada vez maior de
adeptos. Ao longo de século XIX a metafísica, em sua forma tradicional, não
estaria mais presente nas principais correntes de pensamento.
Referências:
A
evolução da metafísica e a crítica kantiana. Disponível em:
Chauí,
Marilena. Convite à filosofia 13ª edição. São Paulo. Editora Ática: 2006, 424
p.
História
da Filosofia Orfeu,
orfismo e mistérios órficos. Disponível em:
Reale,
G.; Antiseri D. História da Filosofia Vol I. São Paulo. Paulus Editora: 1991, 683
p.
(Imagens: fotografias de Cecil Beaton)