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quarta-feira, 31 de julho de 2019

Na perspectiva do paradoxo (II)

sábado, 27 de julho de 2019
"Um dos paradoxos dolorosos do nosso tempo reside no fato de serem os estúpidos os que têm a certeza, enquanto os que possuem imaginação e inteligência se debatem em dúvidas e indecisões."   -   Bertrand Russel (1872-1970), filósofo inglês


"Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira, um discurso populista." (presidente Bolsonaro)


"Daqueles governadores de...paraíba, o pior é o do Maranhão. Não tem que ter nada com esse cara." (Idem)

"Tentou impor a ditadura no Brasil na luta armada" (Idem sobre a jornalista Miriam Leitão)

"Não sou economista, falei que não entendia de economia, quem entendia afundou o Brasil, tá certo?" (Idem)

"Se não puder ter filtro, nós extinguiremos as ANCINE." (Idem)

"[...] Assim que deve ser feito e não de forma rasa como ele faz, que coloca o Brasil em situação complicada. [...] Um dado desse aí, da maneira de divulgar, prejudica a gente" (Idem sobre dados do desmatamento divulgados pelo INPE)

"Olha, o valor (de 40% da multa do FGTS) não está na Constituição. Acho que não está. O FGTS está no artigo sete da Constituição. O valor é uma lei. A gente pode pensar lá na frente (em mudar esse percentual). Mas antes disso a gente tem que ganhar a guerra da informação. Não quero manchete amanhã no jornal dizendo que o presidente está estudando reduzir o valor da multa. O que estou tentando levar para o trabalhador é o seguinte, menos direito e emprego ou todos os direitos e desemprego" (Idem)

"Uma pessoa conhecida. Nossos sentimentos à família, tá ok?" (Idem, sobre a morte de João Gilberto)

"Pretendo beneficiar filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou, mas não tem nada a ver com o filé mignon essa história aí. É aprofundar o relacionamento com a maior potência do mundo” (Idem)

"O que o Brasil não pode é abrir mão das riquezas em prol de mais tarde essas riquezas serem exploradas pelo estrangeiro. Número dois: hoje pela lei, 80% das propriedades da Amazônia têm que ser preservadas. É justo você comprar uma propriedade e 80% você não poder mexer? Não poder fazer nada?" (Idem)

"A indústria deles continua sendo fóssil, de plástico, carvão e a nossa não. Eles têm muito a aprender conosco." (Idem, respondendo à chanceler Angela Merkel))

"Eu tenho vergonha do que eu recebo do Exército, isso eu tenho vergonha. Se eu mostrar pro meu filho que eu sou general de Exército, e ganho líquido R$ 19.000, eu tenho vergonha” (General Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional)

"Um idiota inútil" (general Luis Eduardo Rocha Paiva, conselheiro da Comissão de Anistia do governo federal, referindo-se ao vereador Carlos Bolsonaro)

"Vejo uma comunicação falha há meses da equipe do Presidente. Tenho literalmente me matado para tentar melhorar, mas como muitos, sou apenas mais um e não pleiteio nem quero máquina na mão. É notório que perdemos oportunidades ímpares de reagir e mostrar seu bom trabalho". (Vereador Carlos Bolsonaro) 

"Em Israel, o Jair Bolsonaro tem um monte de parcerias para trazer tecnologia aqui para o Brasil. Em vez de as universidades do Nordeste ficarem aí fazendo sociologia, fazendo filosofia no agreste, [devem] fazer agronomia, em parceria com Israel" (ministro da Educação Abraham Weintraub)

"No passado, o avião presidencial já transportou drogas em maior quantidade. Alguém sabe o peso do Lula ou da Dilma?” (Idem)

"Evidentemente, não tenho nada a esconder." (ministro da Justiça Sergio Moro)

"Tem algumas coisas que, eventualmente, eu possa ter dito. Tem algumas coisas que causam estranheza." (Idem)

"Nunca atuei com motivação ideológica ou político-partidária." (Idem)

"A pedra que a mídia rejeitou, que os intelectuais rejeitaram, que tantos artistas, que tantos autoproclamados especialistas rejeitaram... Essa pedra se tornou pedra angular do 'edifício de um novo Brasil', esse raio vívido de amor e esperança que à terra desce." (ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, referindo-se ao presidente Bolsonaro)


(Imagens: pinturas de Daniel Celentano)


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quarta-feira, 24 de julho de 2019

Mudanças climáticas e o litoral de São Paulo (2ª parte)

sábado, 20 de julho de 2019
"Vivemos, ainda, sob o reinado da Lógica: este é, naturalmente, o ponto aonde eu queria chegar. Mas, hoje em dia, os métodos da Lógica só servem para resolver problemas de interesse secundário."   -   André Breton   -   Manifesto do Surrealismo 


(continuação parte 2. - Descobertas / críticas)


Em 1988 o físico James Hansen, funcionário da Agência espacial americana (NASA) foi o primeiro cientista a ser convocado pelo congresso americano a fim de dar seu testemunho sobre o fenômeno da mudança do clima provocada pelos humanos. Gradualmente, a partir do final do século XX a ciência consegue reunir um número cada vez maior de dados que comprovam a influência antrópica (humana) sobre o clima da Terra, de forma acentuada, segundo os registros, especialmente a partir do final do século XVIII e início do XIX, quando começa a Revolução Industrial, com ampla utilização de combustíveis fósseis; carvão mineral e derivados de petróleo.

As mudanças climáticas não foram rapidamente aceitas como forma de interpretação científica dos fenômenos que estavam ocorrendo. Setores da economia mundial, principalmente as companhias petrolíferas, se colocaram contra a teoria, chegando a financiar pesquisas que pudessem falsificar a ideia científica. Segmentos econômicos como o da geração de energia no hemisfério Norte, com uso intensivo de carvão mineral; indústrias de fertilizantes que liberam óxido nitroso (N²O); setor de transporte rodoviário, marítimo e aéreo, com emissões de CO²; a cadeia produtiva de toda a indústria petroquímica; e o setor agropecuário. Todavia, o setor da economia mundial imediatamente mais afetado caso a origem antrópica do aquecimento definitivamente fosse comprovada seria a indústria petrolífera, pois certamente haveria necessidade de reduzir o uso dos combustíveis fósseis ou propor sua taxação.

Assim, durante grande parte dos anos 1990, grandes conglomerados do setor petrolífero contrataram universidades, equipes de cientistas e laboratórios a peso de ouro – além de organizarem um forte lobby junto aos governos, principalmente o dos EUA – para reunir dados que pudessem provar que o fenômeno não era influenciado pelas emissões de gases resultantes da queima de combustíveis. Todavia, indícios e provas científicas comprovavam, cada vez mais, o fato de que as emissões das atividades humanas estavam acelerando o aquecimento da atmosfera – e dentre estas, os maiores volumes de gases eram gerados pela queima de combustíveis fósseis.

Há alguns anos a imprensa americana revelou que nos anos 1960 a Universidade de Stanford já havia preparado um relatório para o American Petroleum Intitute (Instituto Americano de Petróleo), atestando que as emissões de dióxido de carbono, resultantes da queima dos derivados de petróleo, poderiam provocar o efeito estufa no planeta (então já conhecido e explicado pela ciência); o que ocasionaria o aumento da temperatura da atmosfera, derretimento de geleiras e aumento do nível dos oceanos. O setor petrolífero, a exemplo do que também fez por longo período a indústria de cigarros americana, fez de tudo ao longo das três décadas seguintes para omitir os dados pesquisados pela universidade e desacreditar outras pesquisas que chegavam a conclusões semelhantes. Um desses estudos publicado na revista Nature,

atribuiu um nível de confiança na casa dos 90 por cento ao facto de ‘a influência humana ter, no mínimo, duplicado o risco de uma onda de calor que exceda [um] limiar de magnitude’ das temperaturas médias de verão, como aconteceu na Europa em 2003 e em mais nenhum outro ano desde 1851. As ligações tornar-se-ão cada vez mais claras no futuro, tanto porque a ciência está a ficar melhor como porque os eventos de clima extremo se estão a tornar cada vez mais extremos.” (Wagner & Weitzman, 2016)

No entanto, apesar do acúmulo de comprovações da teoria das mudanças climáticas e de sua origem antrópica, ainda existem grupos e (poucos) cientistas que colocam em questão o fenômeno. Estes, dividem-se basicamente em duas categorias: 1) os que terminantemente negam a ocorrência de um gradual aquecimento da atmosfera terrestre; e 2) os que aceitam a possibilidade do aquecimento mas definitivamente discordam de que seja de origem antrópica. Entre os cientistas estão aqueles que, em sua maioria bem intencionados e sem vínculos com entidades e grupos de interesse, interpretam os indícios até agora disponíveis como inconclusivos. Segundo a Wikipedia, estes cientistas “negacionistas climáticos” representam cerca de 1% dos climatologistas em atividade; um número muito reduzido, portanto.

Outros grupos de negacionistas das mudanças do clima são formados por grandes indústrias, políticos e formadores de opinião, geralmente representados por think tanks financiados por estas agremiações. São geralmente grupos de tendência conservadora e libertário, como o norte-americano Heartland Institute, fundado em 1984. Na década de 2000 o instituto tornou-se um dos principais patrocinadores do negacionismo climático. (Wikipedia). No Brasil estes grupos são praticamente inexistentes. Segundo estudo da Universidade de Oxford em parceria com a agência Reuters, no Brasil o espaço reduzido dos céticos ambientais se devia a uma “combinação entre cultura jornalística, poucos ou nenhum grupo de pressão ligados ao setor petrolífero e à virtual ausência de vozes fortes céticas na elite científica, política e econômica.” (Wikipedia). 

(Imagens: pinturas de Hans Grundig)

A política de gestão de resíduos e os catadores

sábado, 13 de julho de 2019
"A imagem do homem imposta pelo Antigo Testamento é a de Jó. Quer dizer, a imagem do homem humilhado por Deus, voltado para a sua insignificância, a sua fraqueza e os seus pecados."   -   Jacques Le Goff   -   O Deus da Idade Média

A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), promulgada em 2010 no final do governo Lula, teve seu prazo de implantação postergado por duas vezes e ainda está no papel. O marco legal que deveria ordenar a destinação dos resíduos sólidos urbanos, eliminando os lixões e instituindo programas de reciclagem, ainda é letra morta em grande parte do país. O ambicioso programa, que demandaria anos de implantação, segundo o ministério do Meio Ambiente à época de sua criação, ainda não saiu dos papéis – ou dos computadores – de seus gestores. À grande parte dos municípios faltam conhecimentos técnicos para preparar estudos e projetos de implantação do sistema, recursos financeiros e, além de tudo, vontade política.

Uma das categorias que mais seria beneficiada com as providências previstas na PNRS é a dos catadores; profissionais encarregados da coleta e separação de parte dos fluxos de material reciclável. Organizados em cooperativas e especializando sua atuação por área ou tipo de material, os catadores terão a oportunidade de se aperfeiçoarem, agregando máquinas e equipamentos às suas atividade, aumentando sua produtividade e renda.

Atualmente, porém, a situação dos catadores é bastante diferente. O número destes profissionais cresceu 48% entre 2014 e 2018 – de 180,5 mil para 268 mil – segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio (Pnad) Contínua, compilados pelo Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV) e publicados pelo jornal Valor. No entanto, o volume de material coletado que chega às cooperativas vem diminuindo. Causa desta redução na quantidade de recicláveis é a queda no consumo, provocada pela crise econômica. O volume do material recolhido por quatro das sete unidades de reciclagem do Grande ABC, por exemplo, teve queda de 7,5% entre 2017 e 2018, segundo o jornal Diário do Grande ABC. Dados da associação Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre) apontam queda entre 2012 e 2017 no consumo de plástico (-15,4%), alumínio (-15,2%) e de papel (-9,8%). 

Outro fator da queda no volume coletado pelas cooperativas é o aumento de catadores independentes, trabalhando por conta própria. Muitos desses profissionais entraram na atividade por causa do desemprego, já que antes trabalhavam em outros setores da economia, principalmente a indústria da construção civil. São, em sua maioria, pessoas sem qualificação profissional, tendo apenas o ensino fundamental incompleto, ou sem nenhuma instrução. Estes profissionais informais têm renda mensal aproximada de R$ 690,00, cerca de 30% da renda média nacional.

A implantação da PNRS é, junto com a melhoria dos índices de saneamento, um dos mais importantes temas na agenda ambiental urbana brasileira nos próximos anos. Segundo a Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústria de Base (ABDIB), cerca de 29 milhões de toneladas de lixo são destinada incorretamente a cada ano para 3 mil lixões e aterros irregulares. Somente de lixo plástico, segundo o Fundo Mundial para a Natureza (WWF), o Brasil gera 11,3 milhões de toneladas anuais, dos quais apenas 145 mil toneladas (cerca de 1,2%) são recicladas. E isto no país que é o quarto maior gerador de lixo do mundo, atrás apenas dos EUA, da China e da Índia. Nestas condições, a implantação de uma política de gestão dos resíduos urbanos se faz urgente.

(Imagens: desenhos de Lovis Corinth)
     

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quarta-feira, 10 de julho de 2019

As formas de governo propostas por Platão

sábado, 6 de julho de 2019
"Platão diferencia educação negativa, orientada para o ganho, e educação positiva, orientada para a virtude. Aristóteles, porém, distingue educação orientada para a atividade e educação orientada para o ócio."   -   Domenico de Masi   -   O futuro chegou - Modelos de vida para uma sociedade desorientada


Platão (428 a.C. – 348 a.C.), filósofo grego discípulo de Sócrates foi o iniciador da tradição filosófica ocidental. Escreveu grande parte de sua obra filosófica na forma de diálogos, nos quais fazia seu mestre, Sócrates, como principal personagem e porta-voz de suas idéias. Algumas destas idéias desenvolvidas pelo filósofo ateniense tornaram-se os fundamentos da filosofia ocidental, mais especificamente da metafísica ocidental. Dentre estas, o conceito das Idéias ou Ideais é o mais famoso. Segundo Platão – e nisso teve grande influência sua ligação com os cultos órficos – estamos destinados a viver diversas vezes, durante as quais passamos por um processo de purificação e temos a chance de evoluir. Toda vez, antes que nossas almas ocupem um novo corpo, passamos um período no mundo das Idéias ou Ideais. Nesta dimensão além da vida terrena, segundo Platão, temos a chance de contemplar as formas perfeitas. Assim, contemplamos a forma perfeita da mesa, ou seja, o arquétipo de todas as mesas que são construídas em nosso mundo material. Contemplamos a forma perfeita de um cavalo, da qual todos os cavalos terrestres são cópias imperfeitas. Nesta dimensão contemplamos também o Bem, a Virtude, a Beleza e outros conceitos abstratos.

Ainda segundo Platão, todas as coisas que existem no mundo onde vivemos, são apenas uma cópia imperfeita deste mundo das Idéias (o filósofo nunca fez uma lista de todos os entes Ideais que têm uma cópia no mundo material). Assim que nascemos, trazemos em nós a lembrança deste mundo ideal, que com o passar do tempo, no entanto, vai se apagando. É através da busca do conhecimento – principalmente pela prática da filosofia – e de uma vida virtuosa, que aos poucos passamos a nos lembrar dos conceitos deste mundo perfeito, os Ideais.

A mais famosa metáfora da filosofia ocidental – o mito da caverna – faz alusão a esta visão da condição humana. A história é relatada pelo personagem Sócrates no livro VII da República de Platão e conta a história de prisioneiros acorrentados no fundo de uma caverna, sem contato com o mundo exterior. Do lugar onde se encontram, só enxergam as sombras do que acontece fora, sendo projetadas na parede caverna. Pensam que aquilo que vêem é o mundo real. Um dia, porém, um dos prisioneiros consegue sair da caverna e enxergar a vida fora da caverna. Ao voltar para a gruta, tenta convencer seus companheiros sobre a realidade do mundo lá fora.

A metáfora do mito da caverna representa o processo de aprendizado do homem, em direção à sabedoria. Uma passagem d ‘A República deixa isto claro:

“Quanto a mim, minha opinião é esta: no mundo inteligível, a idéia do bem é a última a ser apreendida, e com dificuldade, mas não se pode aprendê-la sem concluir que ela é a causa de tudo o que de reto e belo existe em todas as coisas; no mundo visível, ela engendrou a luz e o soberano da luz; no mundo inteligível, é ela que é soberana e dispensa a verdade e a inteligência; e é preciso vê-la para se comportar com sabedoria na vida particular e na vida pública” (Platão: 2004, p. 228)

Para Platão, no entanto, todo o processo educativo tem como função principal preparar os futuros governantes e governados para a formação de um Estado ideal. Para o filósofo, este Estado deverá ser governado pelos filósofos, já que estes são os mais preparados para administrar uma República. Diz Sócrates na Republica:

“Aliás, Glauco, nota que não seremos culpados de injustiça para os filósofos que se formarem entre nós, mas teremos justas razões a apresentar-lhes, forçando-os a encarregar-se da orientação e da guarda dos outros. Diremos a eles: “Nas outras cidades, é natural que aqueles que se tornaram filósofos não participem nos trabalhos da vida pública, visto que se formaram a si mesmos, apesar dos governos destas cidades; ora é justo que aquele que se forma a si mesmo e não deve o sustento a ninguém não queira pagar o preço disso a quem quer que seja. Mas vós fostes formados por nós, tanto no interesse do Estado como no vosso, para serdes o que são: os reis das colméias; demos-vos uma educação melhor e mais perfeita que a desses filósofos e tornamos-vos mais capazes de aliar a condução dos negócios aos estudos da filosofia. “(Ibidem p. 231).

O topo da sociedade platônica deve ser ocupado pelos filósofos, os governantes, “os reis das colméias”, já que “apenas na condição de o político se tornar filósofo (ou vice-versa) é que se torna possível construir a Cidade autêntica, ou seja, o Estado verdadeiramente fundado sobre o valor supremo da justiça e do bem” (Reali e Antiseri: 1990, p. 163). A virtude típica dos governantes da república platônica é a sabedoria, caracterizada pela alma racional, aquela que aprendeu a contemplar o Bem (por sua atividade filosófica).

A segunda classe na hierarquia do Estado platônico é a dos guerreiros, nos quais prevalece a força irascível (volitiva) da alma. Platão compara os guerreiros aos cães de raça, dotados ao mesmo tempo de mansidão e ferocidade. A virtude típica desta classe é a fortaleza e a coragem. Os guardas têm como função permanecer atentos aos perigos externos e aos internos. Internamente tem como função zelar para que a classe mais baixa, a dos agricultores, artesãos e comerciantes não produza riquezas demais, o que pode gerar ócio, luxo indiscriminado e amor exagerado pelas novidades. Outra tarefa importante desta classe é zelar para que as tarefas confiadas a cada cidadão correspondam à sua índole e que cada um tenha a educação conveniente.

A terceira classe na hierarquia social estabelecida por Platão é a dos lavradores, artesãos e comerciantes. Nestes prevalece o espírito concupiscível na alma, o apego e a sede por prazeres dos sentidos. Esta classe social desempenha seu correto papel na sociedade platoniana quando tem a virtude da temperança, disciplinando seus desejos e prazeres e submetendo-se às classes superiores.

Esta ordenação do Estado platônico é na realidade uma grande metáfora da alma humana – assim com o é também o mito da caverna. As três classes representam tendências inatas no homem que levam a alma para o desejo, para a ira e para a sabedoria. Neste aspecto a obra A República, apesar dos detalhes quanto ao governo que apresenta, é uma analogia sobre a vida humana, sob a ótica das Idéias. Escreve Werner Jaeger:

O Estado de Platão versa, em última análise, sobre a Alma do Homem. O que ele nos diz do Estado como tal e da sua estrutura, a chamada concepção orgânica do Estado, onde muitos vêem a medula da República platônica, não tem outra função senão apresentar-nos a “imagem reflexa ampliada” da alma e da sua estrutura respectiva. E nem é nunca atitude primariamente teórica que Platão se situa diante do problema da alma, mas antes numa atitude prática: na atitude do modelador de almas. A formação da alma é a alavanca com a qual ele faz o seu Sócrates mover todo o Estado.” (Jaeger: 2003, p. 752).

As diversas formas de governo, Platão trata mais profundamente em suas obras A Política e As Leis. Nestes livros Platão considera a hipótese, bastante real, aliás, de que nem todos os Estados teriam governantes perfeitos como a sua República. A experiência que o nosso filósofo teve em Siracusa, localizada na Nova Grécia (sul da atual Itália), parece tê-lo trazido de volta à realidade política. Platão chega então à conclusão de que é necessário elaborar constituições escritas, para que os governados possam ter mais controle sobre o governante, na forma de um compromisso entra as partes (se bem que uma, o governante, sempre tivesse mais poder).

Novamente, utilizando-se da dialética, Platão deduz que existem três espécies de constituições históricas, formas corrompidas da constituição ideal que se encontra no mundo das Idéias. A primeira dentre ela é aquela aplicada quando um só homem governa, imitando o político ideal; a monarquia. A segunda forma é quando vários homens ricos governam, imitando o político ideal. Quando o povo governa, temos a democracia. Cumpre notar que o conceito de democracia à época de Platão não é o mesmo que o atual. Efetivamente a democracia ateniense tinha como votantes somente os homens livres, que representavam aproximadamente 30% de uma população. Estrangeiros, escravos e mulheres não tinham direito a voto.

No entanto, quando estas formas de governo se corrompem, a monarquia se transforma em uma tirania; a aristocracia em oligarquia; e a democracia degenera em uma anarquia. Para assegurar a continuidade da ordem, mesmo com a decadência na forma de governo, Platão recomenda o respeito à liberdade, dosada com a manutenção da autoridade “com justa medida”.

A concepção política de Platão influenciou bastante a cultura ocidental. Basta analisarmos a estrutura social da Idade Média, para constatarmos que ela se aproxima bastante das três classes platônicas: a Igreja, os nobres e os servos, representando respectivamente os governantes-filósofos, os guerreiros e os camponeses e artesãos. Outro aspecto é que a classificação das formas de governo também tem paralelos na história. No entanto, seja em relação às classes quanto às formas de governo é preciso ter em conta que se trata somente de uma teoria, elaborada por um grande gênio, mas apenas uma forma esquemática – como tantas outras – de interpretar a realidade. Cabe a nós estudarmos seus fundamentos e utilizá-los para aprofundar nossas análises da nossa realidade.

Bibliografia:
Jaeger, Werner. Paidéia. São Paulo. Martins Fontes: 2003, 1413 p.
Platão. A República. São Paulo. Editora Nova Cultural: 2004, 352 p.
Reale, Giovanni. Antiseri, Dario. História da Filosofia Vol 1. São Paulo: Editora Paulus: 1990, 693 p.

(Imagens: pinturas de Thomas Hart Benton)

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quarta-feira, 3 de julho de 2019