Economia em alta, vida em baixa

segunda-feira, 28 de março de 2011
"Nós já não temos que nos defrontar com a pergunta: "Por que, em geral, existe alguma coisa?", senão com a resposta: "Existe alguma coisa e somente ela faz sentido".   -   Jean-Luc Nancy -  O sentido do mundo

Apesar do crescimento do consumo, do aumento da classe média, e das boas perspectivas econômicas para o futuro, o país ainda continua com os mesmos problemas estruturais das décadas passadas. Estradas em péssimo estado de conservação, hospitais desaparelhados e sem médicos, aeroportos congestionados, portos sem estrutura, transporte público insuficiente e caro, dezenas de milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado; e muitas outras mazelas. Isto sem falar na questão da educação, fator importantíssimo para o desenvolvimento, que demora a sair de seu mais baixo nível na história recente. Obstáculos não nos faltam, apesar de sermos a sétima maior economia do mundo e das mídias nos lembrarem a toda hora das maravilhas do consumo. Ascender alguns degraus na escala econômica e poder consumir o básico é o mínimo que se espera em uma sociedade medianamente civilizada. Viver dignamente, no entanto, é mais do que isso. Sendo o sétimo país mais rico do mundo e tendo tantas deficiências, como não será difícil a situação do povo em economias mais pobres que a nossa? Esquece-se, no entanto, que mesmo colocados entre as sete nações mais ricas do globo, somos ainda um dos países com a pior distribuição de renda, ou seja, poucos têm acesso a muito e muitos têm acesso a pouco.
Os benefícios que poderiam resultar do PIB de 2,2 trilhões de dólares que o país produziu em 2010 – boas escolas, bons hospitais, aposentadorias decentes, saneamento e acesso a educação e cultura –, são apenas tema de campanha política. Ainda que mais de 35% deste valor seja formado por impostos, que teoricamente deveriam se transformar em benefícios para a sociedade, são poucas as políticas públicas devidamente estruturadas, destinadas a devolver este dinheiro transformado em melhorias para a sociedade.
Temos então um quadro contraditório. Por um lado, somos um país que está começando a ocupar um lugar de destaque entre as nações em desenvolvimento, graças à pujança de sua agricultura, de sua moderna indústria, das grandes obras de infraestrutura e das oportunidades que um mercado interno em franco crescimento oferece aos investidores. Por outro temos uma carência de mão-de-obra especializada, tanto de nível técnico quanto superior, fruto do nosso sistema de ensino e das crises econômicas, que reduziram a demanda por estes profissionais. Cerca de 30% da população brasileira (57 milhões de pessoas) é formada por analfabetos e analfabetos funcionais. Mais de 40% da população não tem acesso à coleta e tratamento de esgoto. A rede de saúde é mal administrada, não tem verbas suficientes – reduzidas mais ainda com o corte do orçamento no início de 2011 – e os hospitais públicos são, com raríssimas exceções, sujos e desorganizados.
A economia está se contrapondo à vida; fatos ocorridos nas últimas semanas ilustram esta situação. Apesar da negativa das empreiteiras, é claro que a revolta dos trabalhadores no canteiro de obras da barragem de Jirau, em Rondônia, foi provocada principalmente pelas deficientes condições de trabalho. No rico interior de São Paulo, trabalhadores migrantes são submetidos a condições de trabalho degradantes, o mesmo acontecendo em obras de uma ferrovia a poucos quilômetros da capital. Na periferia pobre de São Paulo, moradores ficam semanas sem água. E tudo isto na sétima economia do mundo! (imagens: Oskar Kokoschka)

O consenso de Washington e seus efeitos na educação

sábado, 26 de março de 2011
"A ignorância é a condição necessária, não digo da felicidade, mas da vida mesmo. Se soubessemos tudo, não poderiamos suportar a existência por uma hora sequer. Os sentimentos que a tornam doce para nós, ou tolerável em certa medida, têm origem na falsidade e são alimentados pelas ilusões".   Anatole France   -  O jardim de Epicuro

Pressupostos econômicos:
Durante o início da década de 1990, fortemente influenciado pelos ditames do Banco Mundial, o Estado brasileiro assumiu uma nova postura com relação à economia e à educação. Estas diretrizes, que acabaram por influenciar o desenvolvimento posterior do país, foram engendradas em um contexto econômico-social bastante específico. Lembremos que no final da década de 1980 ocorreu a Queda do Muro de Berlim (1989), o que resultou na falência de todo o já decadente sistema socialista, liderado pela antiga União Soviética. A queda do Muro significou a vitória da economia de mercado contra a economia “planejada”, autoproclamada economia socialista. Todas as estruturas dos governos socialistas ruíram em poucos meses, e rapidamente se instalou nos ex-países socialistas uma pseudo-economia de mercado (arquitetada pelos executivos do Banco Mundial e FMI), que por falta de estrutura passou a se fundamentar em favores políticos e na corrupção. Com isso, a Rússia entrou em uma crise econômica e social, da qual até hoje não se recuperou completamente.
Nos países capitalistas, principalmente a Inglaterra e os Estados Unidos, onde governava a dupla Margareth Thatcher e Ronald Reagan, o clima era de vitória pela derrocada dos países comunistas. Na imprensa neoliberal o sociólogo americano Francis Fukuyama proclamava à época o “fim da história” – numa irônica alusão à Marx, que no Manifesto Comunista lançava a idéia do “fim da história”. Afirmava Marx que depois da eliminação do capitalismo e da abolição do Estado, vigoraria a sociedade comunista em todo o mundo. Para Fukuyama, com a queda dos regimes socialistas, a democracia liberal e a sociedade de mercado haviam dominado o planeta, eliminado toda oposição socialista. (Hoje sabemos que mesmo sem ter oponentes, o capitalismo não melhorou a situação dos trabalhadores, deixando bilhões de pessoas na miséria, à margem do sistema. Além disso, com a crise de 2008, os ferrenhos defensores da economia de mercado tiveram, em todos os países, que depender da ajuda do Estado como indutor do crescimento econômico).
Thatcher por seu lado, sempre foi grande incentivadora das privatizações na Inglaterra, tirando o apoio do Estado a diversas atividades econômicas. Reagan sofreu muita influência de sua equipe econômica, em grande parte constituída por egressos da Universidade de Chicago, meca do pensamento liberal de Milton Friedman (Prêmio Nobel em 1976).
Forma-se assim, a partir do final dos anos 80 e início dos anos 90, uma situação política, social e econômica que iria influenciar o desenvolvimento da economia mundial – e de outros setores sociais – dali em diante. Algumas características deste período foram:
- Redução da ação do Estado, processos de privatização;
- Economia de mercado, valorização do capital e da livre-iniciativa;
- Suspeita em relação a grandes projetos estatais, já que significavam grandes aportes de capitais e mais domínio do Estado;
- Privatização das companhias estatais, desvalorização da carreira pública;
- Concessão de serviços, antes monopólios do Estado, ao capital privado, entre outros;
- Crença incondicional de que a economia de mercado seria a solução para todos os problemas econômicos e sociais; entre outros fatores.
A questão da educação:
No Brasil governava Fernando Collor, eleito com uma proposta nitidamente neoliberal, com o apoio maciço do grande capital nacional e internacional, das classes médias dependentes e das massas iludidas. Vigorava, desde o governo Sarney, a abertura da economia brasileira, o que forçou a acomodada indústria nacional a melhorar seus produtos. No governo Collor e FHC ocorrem as grandes privatizações de estatais (telefonia, ferrovia, energia, entre outras), seguindo o receituário estabelecido pelo Banco Mundial e FMI: o “Consenso de Washington” – uma série de diretrizes a serem seguidas na área econômica e social pelos países em desenvolvimento. Por essa época, o Banco Mundial impôs uma série de restrições aos países em desenvolvimento interessados em obter financiamento. Estas medidas previam redução dos investimentos em infraestrutura; entre outros uma redução das verbas destinadas à educação. Criaram-se Medidas Provisórias e Decretos, visando desincompatibilizar gradualmente o Estado de suas funções de mantenedor do ensino público, incentivando o aumento da participação privada. O ensino deveria ser dirigido para a racionalidade empresarial: eficiência, objetividade e lucros.
A situação pode ser resumida da seguinte maneira. Por um lado, havia todo um clima mundial de entusiasmo com a livre empresa. O desaparecimento das burocracias estatais no bloco soviético anunciava novos tempos em todo o mundo. Os países em desenvolvimento, como o Brasil, eram influenciados também por estas idéias, como vimos acima. Inegavelmente, esta situação trouxe benefícios e desvantagens. Na parte econômica livrou o país de uma série de obstáculos, estabelecidos ao longo de décadas de políticas estatizantes, nepotismo, populismo e manutenção de privilégios. A abertura de mercado fez com que empresas – nacionais e estrangeiras localmente estabelecidas – perdessem o monopólio do mercado; propiciou o acesso a produtos e serviços melhores, através da concorrência.
Por outro lado, este tipo de mentalidade fez com que fossem reduzidos os investimentos em vários setores da infra-estrutura, inclusive a educação. Ao invés de inserirem a educação brasileira em novos patamares de qualidade e atuação – como efetivamente aconteceu na indústria, por exemplo – esta mentalidade mercantilista apenas degradou mais ainda a o já baixo nível do ensino no Brasil, colocando o país em um dos mais ínfimos patamares educacionais no mundo. Agora, para que o país recupere a qualidade do ensino publico da década de 1960, ainda serão necessários muitos anos de trabalho. Valeria a pena colocar a educação como prioridade máxima na estratégia de médio e longo prazo do país – apesar dos interesses em contrário, já que um povo ignorante é mais facilmente manipulável.
Aspecto positivo que podemos citar de todo este processo foi a adoção do ensino à distância, o EAD. Todavia, tal fato foi muito mais um resultado do desenvolvimento tecnológico mundial, com os computadores e a internet, do que iniciativa do governo brasileiro. Este, como de costume, foi atropelado pelos fatos e só contribuiu na elaboração de algumas leis que procuram organizar este inovador sistema de ensino.
Para resumir, podemos dizer que de todo este processo a educação brasileira muito pouco se beneficiou, ao contrário. Resta saber até quando grande parte da população brasileira, que depende do ensino público, continuará vivendo a reboque da história.
(imagens: Fernand Léger)

Energia solar: grande potencial inexplorado

sexta-feira, 18 de março de 2011

"A liberdade do dinheiro exige trabalhadores presos no cárcere do medo, que é o cárcere mais cárcere de todos os cárceres. O deus do mercado ameaça e castiga; e bem o sabe qualquer trabalhor, em qualquer lugar." - Eduardo Galeano - O teatro do bem e do mal


O consumo de energia elétrica no Brasil só tende a aumentar. Somente durante o ano de 2010, o uso de eletricidade aumentou em 7,8%, segundo a Empresa de Pesquisas Energéticas (EPE) do Ministério das Minas e Energia. A tendência durante os próximos anos, segundo especialistas, é que o consumo se mantenha crescente. Por isso, o país precisará aumentar os investimentos na geração de energia elétrica e criar políticas de uso eficiente deste recurso. Um exemplo de sucesso nesta área é o da Alemanha, que entre 1990 e 2009 reduziu o consumo energia elétrica através de investimentos em eficiência e aumentou a participação das energias renováveis em sua matriz elétrica.
Grande parte de nossa energia elétrica – cerca de 85% – é de origem renovável, gerada nas cerca de 107 hidrelétricas com capacidade de geração acima de 30 Megawatts (MW) e nas 82 pequenas centrais hidrelétricas, com capacidade de geração de até 30 MW, espalhadas pelo país. No entanto, o potencial brasileiro de geração de energia não poluente não se limita à água. Também dispomos de grande quantidade de biomassa, vento e luz solar; outras fontes de energia renovável. A luz do sol, particularmente, apesar de muito mais abundante devido à posição geográfica do território brasileiro, ainda é uma fonte energética pouco explorada.
O Brasil possui taxas de insolação – incidência de luz solar – muito mais altas que os Estados Unidos, Alemanha, Espanha e China. No entanto, são exatamente estes países que fazem os maiores investimentos para aproveitamento da luz do sol; seja em energia solar térmica com aquecimento de água quente, ou em fotovoltaica gerando eletricidade. Apoiados em programas governamentais de incentivos à fabricação e ao uso de painéis solares, estes países são os maiores mercados de geração e consumo de energia solar. Visando reduzir cada vez mais o custo dos painéis solares, principalmente os fotovoltaicos, empresas da Alemanha, por exemplo, planejam investir 360 milhões de euros (cerca de R$ 830 milhões) só no desenvolvimento de novas tecnologias baseadas na nanotecnologia.
No Brasil os investimentos em energia solar ainda são bastante limitados. Apesar de já existirem leis em diversos municípios brasileiros incentivando o uso de energia solar para preaquecimento de água de banho, o custo do equipamento ainda continua sendo um obstáculo à larga disseminação desta tecnologia. Fabricados no Brasil, estes painéis solares térmicos ainda estão longe dos bolsos da maior parte da população. Para incentivar o uso desta tecnologia, no âmbito do programa de moradia do governo “Minha casa, minha vida”, a Caixa Econômica Federal já financiou a instalação de aquecedores solares em mais de 40 mil novas residências.
A energia fotovoltaica, através da qual se gera eletricidade a partir da luz solar, também é pouco utilizada no Brasil, não excedendo uma capacidade total instalada de 3 MW. O principal obstáculo ao maior uso desta tecnologia continua sendo o alto preço dos painéis fotovoltaicos, todos importados, aliado à falta de incentivos governamentais.
O uso da energia solar poderia contribuir para a descentralização do sistema de geração de energia, evitando o risco constante de apagões. Paralelamente, esta fonte energética também poderia suprir os picos de demanda, reduzindo a carga sobre todo sistema e evitando colocar em funcionamento as poluentes termelétricas. Além disso, o abastecimento de comunidades isoladas na região norte – providência em parte já prevista no programa “Luz para todos” do Ministério da Minas e Energia – poderia ser ampliado com o uso de painéis fotovoltaicos.
O que o país realmente precisa é de uma política energética, aliada às características de cada região. Não podemos continuar baseando grande parte de nossa geração elétrica em recursos hídricos, provocando grandes impactos ambientais e sociais, a exemplo das barragens do rio Madeira (Jirau e Santo Antonio) e do rio Xingu (Belmonte). Com isso, eterniza-se o modelo do sistema monolítico de geração e distribuição, mantendo o país sujeito aos constantes apagões. Enquanto isso, o imenso potencial eólico e solar, principalmente no nordeste, permanece inexplorado; o mesmo acontecendo com a biomassa de todo o país. Tais fontes energéticas poderiam proporcionar uma diversificação e descentralização na geração de energia, meta a ser perseguida em uma nação com a extensão territorial como a do Brasil.
(imagens: John Graz)

"O que é metafísica", porta de entrada ao pensamento de Martin Heidegger

sexta-feira, 11 de março de 2011
A fama ou a vida?
O que mais se deseja?
A vida ou a riqueza?
O que vale mais?
Os fortes apelos geram grandes sacrifícios.
O acúmulo de bens é fonte de grandes perdas.
Aquele que está contente, não se envergonha.
Aquele que sabe parar, está livre do perigo e vive longamente.
Lao Tsé - Tao Té Ching
A obra de Martin Heidegger desenvolve-se em um contexto de reformulação da filosofia, especificamente da metafísica. Esta já vinha sofrendo críticas com o positivismo (na realidade desde a crítica kantiana), a filosofia de Nietzsche e a fenomenologia, entre outras correntes de pensamento. A própria evolução das ciências – principalmente da física teórica – também exerceu uma influência sobre o desenvolvimento da filosofia entre o final do século XIX e início do século XX. Freud, na psicologia, Max Planck e Einstein, na física, reformularam a visão de nós mesmos e do mundo. É nesse contexto que se desenvolve a formação acadêmica e a práxis filosófica de Heidegger. Bastante influenciado pela religião – especialmente o catolicismo – no início de sua carreira universitária, escreve sua tese de habilitação ao ensino universitário sobre Duns Scotus, em 1916 (“A doutrina das categorias e do significado em Duns Scotus”).
O grande problema na filosofia de Heidegger é a questão do ser. Escreve Heidegger no primeiro capítulo de sua obra máxima “Ser e tempo”: “E não é só isso: no solo da arrancada grega para interpretar o ser formou-se um dogma que não apenas declara supérflua a questão sobre o sentido do ser, como lhe sanciona a falta. Pois se diz: “ser” é o conceito mais universal e mais vazio. Como tal, resiste a toda a tentativa de definição”. (Heidegger, 2009, p. 37).
O texto “Que é metafísica” é uma aula inaugural dada na Universidade de Friburgo em 1929, onde Heidegger assumiria uma cátedra de professor regular. O público desta palestra era constituído pelo corpo docente e discente daquela universidade. Por esta época, Heidegger já havia lançado “Ser e tempo” (1927) obra que havia provocado uma série de mal entendidos, entre grande parte do público leitor de filosofia. Segundo muitos, “Heidegger era promotor do niilismo, da filosofia do sentimento, da angústia e da covardia, do irracionalismo que combatia a validez da lógica" (conforme Ernildo Stein no Prefácio a “Que é metafísica”, 1989, p. 28).
Consciente de que seu público na palestra é formado em grande parte por cientistas e estudantes de ciências (mais entusiastas ainda que seus mestres!), e que este tipo de crítica à sua obra está pairando no ar, Heidegger decide fazer uma analítica da existência científica, e a partir dela responder à pergunta sobre o que é metafísica. O filósofo, no entanto, não tenta definir o que é metafísica.
A sua preleção “Que é metafísica”, Heidegger já inicia afirmando à sua audiência que não falará sobre metafísica. Iniciando sua apresentação, tenta definir o universo de atuação da atividade científica. Heidegger escreve: “Se quisermos apoderar-nos expressamente da existência científica, assim esclarecida, então devemos dizer:
Aquilo para onde se dirige a referência ao mundo é o próprio ente – e nada mais.
Aquilo de onde todo o comportamento recebe sua orientação é o próprio ente – e além dele nada.
Aquilo com que a discussão investigadora acontece na irrupção é o próprio ente – e além dele nada.” (ibidem, p. 37). Conclui sua argumentação dizendo que a ciência nada quer saber do nada, que rejeita o nada, o qual para ela não existe.
Mais à frente, Heidegger afirma que “o nada é a negação da totalidade do ente, o absolutamente não-ente” (Ibidem, p. 37). Continuando sua preleção, o filósofo diz que é através do tédio que se manifesta o ente, e da angústia é que se apresenta o nada. A argumentação seguinte é que somente na angústia do nada é que surge a compreensão do fato de que “o ente é” e não “nada”. O ser-aí do homem encontra-se assim “suspenso dentro do nada”. Esta questão, a pergunta pelo nada, é tão importante para Heidegger, porque compreende a totalidade da metafísica. Além disso, “a questão do nada põe a nós mesmos – que perguntamos – em questão. Ela é uma questão metafísica” (Ibidem, p. 44). Ao final de sua palestra, Heidegger praticamente sintetiza o programa de sua filosofia, nas seguintes palavras: “A filosofia somente se põe em movimento por um peculiar salto da própria existência nas suas possibilidades fundamentais do ser-aí, em sua totalidade. Para este salto são decisivos: primeiro, o abandonar-se para dentro do nada, quer dizer, o libertar-se dos ídolos que cada qual possui e para onde costuma refugiar-se subrepticiamente; e por último, permitir que se desenvolva este estar suspenso para que constantemente retorne à questão fundamental da metafísica que domina o próprio nada: por que existe afinal ente e não antes Nada?” (Ibidem p. 44).
Para discorrer sobre as objeções feitas à obra de Heidegger e às respostas dadas por este, era necessária uma curta introdução ao tema da obra “Que é metafísica”, como dissemos no tópico anterior. O posfácio à “Que é metafísica” foi escrito pelo próprio filósofo em 1943, como tentativa de esclarecer como é preciso ler e compreender o texto. Portanto, o posfácio, pelo fato de ter sido escrito quatorze anos depois da preleção original, e tentar explicar aos leitores o que o autor pretendia dizer com o texto original, mostra que a obra “Que é metafísica” tinha uma importância excepcional para o próprio Heidegger. Tanto assim, que ele mesmo pede que o leitor o considere (o posfácio) um “prefácio mais originário”.
Heidegger inicia o posfácio falando das interpretações que o pensar sobre a metafísica suscita. O filósofo está ciente de que seu texto (a preleção inicial, “Que é metafísica”) levantou muitas dificuldades de compreensão e muitas questões, mas enfatiza a necessidade de se perguntar. As dificuldades do texto, escreve Heidegger, são de duas espécies: “Umas surgem dos enigmas que se ocultam no âmbito do que aqui é pensado. As outras se originam da incapacidade e também, muitas vezes, da má vontade para pensar.” (Ibidem, p. 48). O autor resume as “objeções e falsas opiniões” sobre a obra em questão, em três pontos principais:
“1 – a preleção transforma o “nada” em único objeto da metafísica. Entretanto, porque o nada é absolutamente nadificante, leva este pensamento à opinião de que tudo é nada, de tal maneira que não vale a pena, quer viver, quer morrer. Uma “filosofia do nada” é um acabado niilismo” (Ibidem, p.48). Com referência a este ponto, responde Heidegger que se trata de uma opinião apressada, superficial, que transforma o conceito de nada em absoluto nadificador, igualando-o ao que não tem substância. Contrariamente a esta posição, devemos tentar experimentar no nada a “amplidão daquilo que garante a todo o ente (a possibilidade de) de ser”.
“2 – a preleção eleva a disposição de humor isolada e ainda por cima deprimente, a angústia, ao privilégio de única disposição de humor fundamental. Entretanto, porque a angústia é o estado de ânimo do “medroso” e covarde, renega este pensamento a confiante atitude de coragem. Uma filosofia da angústia paralisa a vontade para ação;” (Ibidem, p.48). Em relação a esta crítica, Heidegger argumenta que neste caso a angústia não é um sentimento de medo ou temor. Ao contrário, trata-se de uma disposição de realizar o supremo apelo do homem; descobrir que o ente é. Com isto, nesta disposição para a angústia, o homem atinge a misteriosa possibilidade da experiência do ser.
“3 – a preleção toma posição contra a “lógica”. Entretanto, porque o entendimento contém os padrões de todo o cálculo e ordem, este pensamento transfere o juízo sobre a verdade para a aleatória disposição de humor. Uma “filosofia do puro sentimento” põe em perigo o pensamento “exato” e a segurança do agir.” (Ibidem, p.48). Com relação a esta crítica, Heidegger afirma que seu pensamento não se limita a apenas a lógica matemática, baseada apenas em raciocínios de somar dos cálculos. Não se trata apenas de pensamentos de cálculo “com o ente sobre o ente”, mas do pensamento que se “dissipa no ser pela verdade do ser” (Ibidem, p.50).
Ao final do posfácio, Heidegger adiciona ao seu texto um ponto de vista que ainda não havia aparecido do texto original do “Que é metafísica”, associando a visão do filósofo à visão do poeta. “O pensador diz o ser. O poeta nomeia o sagrado.” Esta afirmação – caso constasse da apresentação feita na universidade de Freiburgo – provavelmente teria trazido mais críticas ainda, dizendo que além de ser niilista, angustiante e ilógico, a análise de Heidegger seria também por demais literária, longe do rigorismo filosófico convencional.
A obra “Que é metafísica”, embora curta, contém o cerne do pensamento de Heidegger, pelo menos no que se refere ao problema do ser e da função da metafísica. O próprio autor deve ter considerado a preleção um documento básico em sua obra, já que vários anos depois ainda se preocupou em escrever um posfácio ao trabalho. O estudo deste curto mas difícil texto pode ser considerado a porta de entrada para o restante da obra de Heidegger.
Bibliografia
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo. Martins Fontes: 2007, 1.210 p.
FLEISCHER, Margot. Org. Filósofos do século XX. São Leopoldo. Editora Unisinos: 2006, 334 p.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis. Editora Vozes: 2009, 598 p.
HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. Col. Os pensadores. São Paulo. Abril Cultural. 1989, 241 p.
REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario, História da Filosofia – Vol III. São Paulo. Paulus Editora: 1990, 1.113 p.
(imagens: Ernst Ludwig Kirchner)

Código florestal: a história os julgará!

sexta-feira, 4 de março de 2011
"A totalidade daquilo que se acha na natureza é imutável desde o início e por toda a eternidade, porque nada existe em que pudesse se transformar. Nada existe fora do universo que possa penetrar nele e provocar tal transformação". Epicuro - Carta a Heródoto

Nas últimas semanas, vários ambientalistas e cientistas vêm associando a possível mudança do Código Florestal à ocorrência de novas catástrofes, como as havidas na região serrana do estado do Rio de Janeiro. Para o ex-secretário-executivo do Ibama no Rio de Janeiro, o analista ambiental Rogério Rocco, alguns prefeitos já se adiantaram, adotando leis semelhantes às propostas na alteração do Código. Em recente declaração à revista Carta Capital, Rocco afirmou: “Os prefeitos são os maiores defensores da abolição do Código Florestal em áreas urbanas. E assim se posicionam em aliança com o mercado imobiliário, que busca a otimização máxima do território para a construção civil. As imagens registram com muita precisão que as áreas atingidas pelas chuvas na Região Serrana do Rio de Janeiro são exatamente as margens de rios, as encostas e os topos de morro, que se constituem sob o regime de preservação permanente”.
A possibilidade de haver uma mudança no Código Florestal deveria servir de alerta para todos aqueles preocupados com a preservação da Mata Atlântica. Esta, não custa lembrar, é um dos ecossistemas mais ricos de todo o planeta e se encontra em real perigo de desaparecimento, ocupando menos de 8% de sua área original. Com a mudança do Código a floresta ficaria mais sujeita ao desflorestamento; áreas desmatadas, dependendo das condições, não precisariam ser mais recuperadas; áreas de floresta sob proteção poderiam seriam reduzidas, seja nas encostas e topos de morro, na beira dos rios, nas várzeas ou no cômputo geral da propriedade. Em suma, a nova redação do Código criaria condições legais para que estados e municípios diminuíssem o grau de proteção das diversas áreas florestais do país, especialmente a Mata Atlântica.
Mais um aspecto preocupante em relação à eventual aprovação das alterações no Código Florestal, é o fato de que cerca de 80% da área da Mata Atlântica encontra-se nas mãos de proprietários privados. A possibilidade de aumentar a área de desmate com amparo legal, poderia servir como incentivo para que muitos donos de terra na região do bioma derrubassem mais floresta. A criação de unidades de conservação (UCs) em áreas privadas seria, segundo a ONG WWG-Brasil, uma das maneiras de aumentar a proteção da vegetação.
Uma outra opção seria a criação de reservas particulares (RPPNs), ainda em número bastante limitado na região. Mais uma possibilidade de proteger o bioma seria o uso de ferramentas econômicas, como o pagamento a agricultores que mantivessem remanescentes da floresta em suas propriedades. É possível também recompensar àquelas propriedades que, mantendo a floresta em pé, protegessem as nascentes e assim fossem produtoras de água, abastecendo riachos e rios.  
Permanece definitivamente o perigo, como mencionado no início deste artigo, de que a alteração do Código Florestal possa contribuir para reduzir a área de vegetação e assim aumentar o risco de deslizamentos de terra e soterramentos, como vem ocorrendo há décadas, de maneira cada vez mais violenta. Além disso, ficará na história o fato de que a alteração da lei – se esta efetivamente vier a ocorrer – contribuiu para destruir parte dos biomas brasileiros, especialmente a Mata Atlântica. Assim, a história os julgará!
(imagens: grafites de Keith Haring)