Gestão hídrica é tema global

sábado, 30 de abril de 2016
"Os pensamentos que podem ser verificados por nós são, por assim dizer, uma pequena região clara dentro do todo, que Martin Heidegger descreveu com uma metáfora famosa como 'a clareira'. Nós nos encontramos numa clareira no meio de uma floresta, ou melhor, no meio de uma selva enorme."  -  Markus Gabriel  - Por que o mundo não existe

A água e sua gestão é tema cada vez mais presente na mídia. E não apenas naquela que trata de temas ambientais, mas também na mídia voltada para temas de ciência e de economia. Estadistas, cientistas e empresários, percebem cada vez com maior clareza, que a preservação dos recursos hídricos é essencial para que a humanidade possa continuar vivendo decentemente sobre o planeta. A escassez do líquido coloca em risco a agricultura, as concentrações humanas e todas as atividades econômicas; podendo provocar revoluções, guerras, migrações e suas consequências para a humanidade: sofrimento, dor e morte.

Em artigo recentemente publicado no jornal O Globo, a jornalistas Ana Lucia Azevedo reata o drama de um dos maiores incêndio já ocorridos na Chapada Diamantina, na Bahia. O fogo teve início em final de 2015 e, alimentado pela seca do fenômeno climático El Niño, só foi debelado em janeiro de 2016. A região é conhecida como a Caixa D' Água da Bahia e é o nascedouro de 80% dos rios do estado, inclusive do rio Paraguaçu, que fornece 60% da água consumida em Salvador. Os incêndios, que se espalham por áreas de difícil acesso, destroem os ecossistemas que propiciam a abundância de água na região.
Ao mesmo tempo, o jornal de economia e finanças Valor publica um artigo assinado por José Graziano Silva, diretor-geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e ex-ministro do primeiro governo Lula, alertando para as influências do fenômeno El Niño sobre os padrões de precipitação pluviométrica e temperatura em várias partes do planeta, inclusive no Sul e Nordeste do Brasil. O texto alerta para a perigo de "fome, desnutrição, escassez ou contaminação de água"..."bem como perdas de colheitas acompanhadas de desertificação de terras agrícolas." em várias regiões do globo.A revista Scientific American, em artigo assinado por John Wendle em sua edição de abril de 2016, faz uma relação entre a seca, os abusos governamentais e a violência social. Segundo a publicação científica, entre 2006 e 2007 o nível do lençol freático da Síria baixou dezenas ou até centenas de metros, dificultando aos agricultores o acesso à água. Assim, entre 2007 e 2010, a Síria sofreu "a seca mais devastadora de sua história". A falta de água ajudou a precipitar a crise econômica e social, afundando o país em uma guerra civil. Segundo a revista, o que ocorre na Síria é um prenúncio do que está em andamento em todo "o Oriente Médio em maior escala, o Mediterrâneo e outras partes do mundo." ..."O Crescente Fértil - o lugar onde a agricultura nasceu, há cerca de 12 mil anos - está secando. A seca na Síria destruiu plantações, matou animais e deslocou cerca de 1,5 milhão de fazendeiros." 
A região Sudeste e, especialmente, o estado de São Paulo, ainda não se recuperaram completamente da crise hídrica de 2014-2015. Os reservatórios não atingiram seus volumes médios e a quantidade de chuvas deve diminuir nos próximos seis meses. Por isso, causou certa apreensão a informação de que a Sabesp pretende abolir o bônus e a multa na conta de água. Especialistas dizem que ainda não é hora de relaxar o controle, apesar do governador Alckmim ter declarado que "a questão da água está resolvida no estado". As mudanças das condições climáticas, associadas ao mal uso dos estoques de água, podem comprometer o futuro deste recurso.
(Imagens: pinturas de Cândido Portinari)

Áreas contaminadas

sábado, 23 de abril de 2016
"Recorda-te de que, ainda que sejas de natureza mortal e com um limite finito de vida, te debruçaste, mediante a investigação da natureza, no que é infinito e eterno, e contemplaste o que é agora, será e sempre foi no tempo transcorrido."  -  Epicuro  -  Antologia de textos

A ocorrência de contaminações do solo por atividades econômicas são cada vez mais frequentes em todo o mundo, inclusive no Brasil. Este tipo de poluição ambiental ocorre quando líquidos ou sólidos de alguma toxicidade, penetram ou permanecem em contato com o solo. Depois de certo tempo, geralmente pela ação da chuva, estes resíduos acabam atingindo camadas mais profundas do subsolo, contaminando o lençol freático. Dentro do solo estes poluentes tóxicos podem se deslocar por longas distâncias, movendo-se junto com a água, por entre as camadas de terra.
A contaminação dos solos e dos lençóis freáticos por produtos tóxicos está ligada à armazenagem e manipulação destes produtos. Lixões, aterros industriais, galpões e tanques de armazenagem, manuseio e descarte de produtos químicos, efluentes, fertilizantes, agrotóxicos, etc., são geralmente os locais e atividades que podem provocar o vazamento de produtos tóxicos. Não é coincidência então que cerca de 77% das áreas contaminadas identificadas no estado de São Paulo, estejam em terrenos ocupados por postos de combustíveis. Outras áreas muitas vezes poluídas por derramamentos tóxicos são as áreas ocupadas por fábricas desativadas.
A agência ambiental do estado de São Paulo publicou em seu relatório de 2014 ter identificado 5.148 locais contaminados em todo o estado. Especialistas do setor estimam que a quantidade de sítios contaminados seja bem maior, já que estas áreas só podem ser identificadas a partir do momento em que a autoridade ambiental tem acesso à informação. Por vários motivos, inclusive o fato de não quererem arcar com os custos de remediação do local, empresários não comunicam a existência desta poluição.
O problema é mundial mas sua solução depende da legislação e da vontade das autoridades em recuperarem o solo. A China é provavelmente o país com a maior quantidade de áreas contaminadas, devido à grande atividade industrial e ao pouco controle das agências de meio ambiente sobre este tipo de poluição. Do solo a contaminação vai para a água, comprometendo o abastecimento de água de diversas cidades, como o noticiário nos informa com certa regularidade. Em outras regiões, como na Europa e os Estados Unidos, o problema da contaminação de solos vem sendo tratado com mais atenção há vários anos. Os EUA já em 1999 identificaram 190 mil áreas contaminadas - numero que atualmente deve ser bem maior. O ministério do Meio Ambiente da Alemanha estimava em 2010 que o país dispunha de 170 mil os sítios contaminados, em todo o país. 
A União Europeia dispõem de uma legislação unificada referente à contaminação de solos desde 2002. Nesta região a questão já avançou tanto, que já não se considera apenas a questão da contaminação do solo urbano. Assim, um dos temas bastante discutidos atualmente é a poluição de solos agrícolas através do cádmio, elemento presente nos fertilizantes fosfatados usados em grande quantidade na agricultura - inclusive no Brasil. No entanto, devido à grande extensão da área agrícola brasileira e à falta de um controle adequado do solo na maior parte das propriedades agrícolas, é provável que esta discussão demore a chegar ao Brasil, já que temos outras prioridades no controle da poluição ambiental. Assim, se conseguirmos identificar o maior número possível de áreas contaminadas e aumentar o ritmo da descontaminação, já será um grande avanço.
(Imagens: pinturas de Lasar Segall)

Mudanças climáticas e a agricultura

sábado, 16 de abril de 2016
"De um modo geral, não admiro os americanos papa-Bíblias - metodistas, batistas e outros vermes. Mas tente imaginar o que seria um metodista semianalfabeto se ele não fosse metodista, e sim ateu!"  -  H.L. Mencken  -  O livro dos insultos

Na Conferência sobre o Clima (COP-21), realizada em Paris em dezembro último, foi acordado de que a grande maioria da nações do mundo deverá dar sua contribuição para reduzir as emissões de gases que causem o efeito estufa (GEE); o aquecimento da atmosfera. O Brasil tem como objetivos principais a eliminação total do desmatamento ilegal na Amazônia e a redução de GEE na atividade agropecuária.
O setor agrícola foi responsável por 37% do PIB (2014) e por 48% das exportações brasileiras (2015), empregando uma importante parte da mão de obra brasileira, principalmente nas pequenas propriedades agrícolas. Dentre as mais importantes commodities agrícolas brasileiras figura o café, responsável por cerca de 3% das exportações e 7% do PIB agrícola do país. Depois de mais de 150 anos na pauta das exportações brasileiras, o café continua sendo uma importante cultura, já que o país ainda é o maior exportador e o segundo consumidor do produto em todo o planeta. A maior parte do café brasileiro é produzida no estado de Minas Gerais, nas regiões do Triângulo Mineiro, Sul/Sudeste e na Zona da Mata.      
A cultura do café deverá ser afetada pelas mudanças climáticas. Estudo publicado em 2004 pela EMBRAPA (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária) previa uma redução considerável na área plantada de café nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Paraná, ao longo deste século, ocasionada pelo aumento da temperatura média durante o ano. Pragas e problemas no desenvolvimento da planta, seriam as consequências mais comuns do previsto aumento da temperatura.
No entanto, a influência das mudanças climáticas sobre a cultura do café era vista com ceticismo por grande parte dos produtores até há pouco. A recente estiagem (2014-2015), todavia, fez com que o setor abrisse os olhos para o fenômeno. Diminuição da vazão de córregos e rios, queda do nível do lençol freático e secagem de nascentes, foram algumas das consequências imediatas percebidas pelos agricultores.
Instituições como a EMATER MG (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais), a Fundação Hans Neumann, a universidade Federal de Lavras e ONGs como a associação 4C, estão desenvolvendo técnicas para ajudar a agricultura cafeeira a fazer frente às consequências das mudanças climáticas. Práticas para a conservação do solo e das águas; sombreamento dos cafeeiros com outras culturas (abacate e teca); barreiras naturais de proteção contra o vento com árvores frutíferas; adubação mais econômica com gesso bruto; entre outras, estão sendo disseminadas entre os produtores e cooperativas. Os primeiros resultados já indicam uma melhor produtividade e proteção das plantas e da área de plantio a médio e longo prazos.



Em 2010 o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento lançou o "Plano Setorial de Mitigação e Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura" ou Plano ABC. Entre outras iniciativas o plano prevê a recuperação de pastagens degradadas; a integração entre a lavoura, a pecuária e floresta comercial (eucalipto); a ampliação do sistema de plantio direto; a recuperação de florestas naturais; o aproveitamento energético de resíduos agrícolas. Entre 2010 e 2020 o plano deverá impulsionar iniciativas no setor agrícola, visando prepará-lo para as mudanças causadas pelo clima.
(Imagens: pinturas de Andrew Wyeth)

Obras contra enchentes na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP)

sábado, 9 de abril de 2016
"A crença na existência de tijolos elementares distinguíveis e eternos é o fundamento último de todo o método cartesiano, ou seja, de todo o método analítico."  -  Marc Halévy  -  A era do conhecimento

No verão de 2016 a região metropolitana de São Paulo (RMSP) foi afetada por fortes chuvas, que provocaram perdas materiais e de vidas humanas. O fenômeno não é novo, mas toma proporções cada vez maiores, devido ao crescimento da urbanização em toda a região. Impermeabilização do solo, ocupação das áreas de várzea, redução das áreas verdes, insuficientes redes de drenagem, acúmulo de resíduos; são os principais fatores causadores das enchentes. Outro aspecto é que a maior parte da chuva que cai sobre a RMSP corre para os córregos e rios que deságuam no Tietê, aumentando seu volume em várias vezes.
A calha do Tietê se formou há cerca de cinco milhões de anos e é habitada e navegada há mais de seis mil anos. O rio deve ter provocado centenas de enchentes ao longo de sua história, inundando as margens e avançando sobre as várzeas. Terminadas as chuvas, as águas voltavam ao seu leito normal. O "piratininga" do nome da cidade, São Paulo de Piratininga, quer dizer "peixe seco", numa alusão aos peixes que secavam no solo, depois que as águas do rio baixavam.
Fundada a cidade, as enchentes do rio Tietê passaram a afetar a população a partir do final do século XIX, quando a região situada entre o centro velho e o rio Tietê - os atuais bairros da Luz, Bom Retiro, Barra Funda, Brás, Pari e Canindé - começa a ser ocupada. Assim, a maior enchente do Tietê ocorreu no verão de 1929, na qual as águas do rio ocuparam grande parte daqueles bairros da cidade por vários dias. A construção de avenidas e o aterramento de áreas de várzea para a abertura de loteamentos entre as décadas de 1940 e 1970, aumentaram o impacto das enchentes sobre a vida da cidade.  
Em 1998 o governo estadual deu início a um programa de aprofundamento e ampliação da calha do rio, a fim de eliminar o alagamento do rio. Depois das obras, terminadas em 2006, o Tietê ficou mais largo e 2,5 metros mais profundo, ao longo de seus 24,5 km de trecho urbano. As obras, no entanto, não foram suficientes para evitar novas enchentes na RMSP. Reportagem publicada recentemente no jornal O Estado de São Paulo, informa que o governo estadual planeja novas obras relacionadas ao Plano Diretor de Macrodrenagem da Bacia do Alto Tietê (PDMAT). As obras devem incluir um novo rebaixamento da calha do rio em mais 2,5 metros entre a barragem da Penha, na zona leste da cidade, e a usina hidrelétrica Edgard de Souza, em Santana do Parnaíba, aumentando a capacidade de vazão do rio. O projeto também prevê o rebaixamento da calha do rio Pinheiros na altura do Ceagesp, além de outras obras ao longo dos rios Aricanduva, Pirajussara, Juqueri e Tamanduateí, que também compõem a bacia. Para controlar o fluxo de água que corre para os rios, o PDMAT construirá 160 piscinões. Na bacia do rio Juqueri, que passa pelos municípios de Franco da Rocha e Mairiporã, serão construídos 45 reservatórios, com uma capacidade total de armazenagem de 5,6 bilhões de litros.
Críticos do projeto afirmam que será difícil aprofundar ainda mais a calha do Tietê e que não existem áreas suficientes para construir tão grande número de piscinões. Uma alternativas seria fazer a retenção (armazenagem) da água nas próprias residências, prédios e galpões, promovendo o uso da água pluvial nas privadas, na limpeza do chão, na regação de jardins, etc,.
(Imagens: pinturas de Lucas Cranach, o Velho)

Dialética do materialismo: Marx entre Hegel e Feuerbach

sábado, 2 de abril de 2016
"Mas há uma crença fundamental contra a qual a razão é inteiramente inútil: trata-se da crença na própria razão. Crença tanto mais cega quanto ela não dispõe de nenhum pano de fundo para se mostrar como tal, de nenhum antídoto para combatê-la."  -  Silvia Pimenta Velloso Rocha  -  Os abismos da suspeita - Nietzsche e o perspectivismo 

Resenha do livro “Dialética e Materialismo, Marx entre Hegel e Feuerbach”
de Benedito Arthur Sampaio e  Celso Frederico, Editora UFRJ, 2005, 128 p.

Apresentação
Esta obra insere-se na discussão do fim do “socialismo real”, focando o ano de 1843 e a obra “Crítica da Filosofia do Direito”, de Hegel. Baseado na filosofia materialista de Feuerbach e com enfoque filosófico na teoria da alienação, Marx lançou-se à crítica de Hegel. O livro pretende também ressaltar a grande influência de Feuerbach sobre Marx. A obra mostra as influencias filosóficas de Marx e como ele conseguiu conciliar o materialismo de Feuerbach com o idealismo de Hegel.

1843
Em 1843 Marx escreve a “Crítica à Filosofia de Hegel”. Como nessa época o pensamento de Marx ainda não estava maduro e sujeito a diversas influências, retrospectivamente tentaram diversos autores imputar idéias ao pensamento iniciante de Marx.
É fato que nessa época Marx já diferia do pensamento dos jovens hegelianos: era feuerbachiano, mas criticava o caráter apolítico de seu pensamento; não havia feito ainda análise da sociedade burguesa e escrito contra a propriedade privada; sua concepção política aproximava-se do socialismo.  
Diversos autores, como Della Volpe, Cornu, Lukács e outros, dão diversas interpretações do pensamento de Marx em sua juventude, sobre a existência e o significado da dialética materialista nesse período da vida de Marx. Entre 1843 e 1844 Marx trabalhava como redator do jornal “Gazeta Renana” e foi neste período – a fim de escrever seus artigos – que se ocupou pela primeira vez com problemas econômicos.  Por outro lado, seguindo um costume da intelectualidade alemã da época, todo problema discutido tinha que ser analisado filosóficamente, ser discutido pelos pares e sob a ótica da filosofia de Hegel, dominante na época. A filosofia de Hegel, porém, é uma das mais complexas filosofias de todos os tempos.

Hegel havia, de certo modo, decretado o fim do iluminismo na Alemanha, ao classificá-lo como fase de pensamento ultrapassada. Mas é exatamente no período em que Marx começa a escrever na Gazeta Renana, que renasce o interesse pelos ideais iluministas na Alemanha, agora associados à política (socialismo e comunismo) e à crítica de Hegel, em seus aspectos políticos e religiosos. Esta crítica também era projetada no Estado Prussiano da época, fortemente autocrático.
Deste modo, os textos de Marx na Gezeta Renana serviram como base para implantar os problemas econômicos e políticos de seu tempo no texto filosófico; foi o ponto de partida de Marx para a elaboração filosófica de seu pensamento.
A filosofia de Hegel e de seus sucessores, os “jovens hegelianos” era caracterizada por uma crítica a qualquer utopismo. Os autores do livro citam como exemplo uma passagem da “Filosofia do Direito” de Hegel, onde este escreve que “é insensato pretender que alguma filosofia possa antecipar-se a seu mundo presente”. Todavia, o pensamento de Hegel também tinha uma crítica ao presente embutida, ao atual momento histórico, ou seja, ao momento histórico daquela época, conforme a interpretação.
Baseados nesta interpretação diferente de Hegel é que os jovens hegelianos -  incluindo Marx – iriam  opor-se a um estado autoritário, conservador e feudalizante, que era o Estado prussiano da época, governado pelo rei Guilherme IV. Marx, baseado na filosofia de Feuerbach, redige nesta época (1843) a sua “Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”. O cerne da crítica de Marx à Hegel é que este em sua obra “Filosofia do Direito” descreve o próprio Estado moderno, mas que este, segundo Marx, não é a forma definitiva do Estado descrito por Hegel. Em outras palavras, a famosa frase de Hegel “o racional é real” foi interpretada por Marx como verdadeira, no entanto, afirmando que “o real não é racional” (ou seja, as condições sociais e econômicas não são as ideais / racionais). Assim como para Feuerbach o conceito de Deus era uma projeção do homem e este deveria apropria-se de suas projeções, para Marx (baseado em Feuerbach) o Estado descrito por Hegel era o Estado burguês e que o homem deveria reapropriar-se do Estado e transformá-lo em uma sociedade democrática.

Propriedade, Sociedade Civil e Estado em Hegel

Em 1845 Marx retoma a questão do Estado e da realidade entendendo-o agora como um processo objetivo, “engendrado pelo conjunto das atividades humanas, pela praxis social articulada universalmente, o que lhe permitia formular uma revolução filosófica, cujo princípio configura uma totalidade humana ativa, autodeterminada, um sujeito social e não uma pluralidade de seres individuais, separados e inertes”.
Em sua análise, mais tarde criticada por Marx, Hegel divide a sociedade em três estágios: a família, a sociedade civil e o Estado. Somente o Estado, diz Hegel, “è a substância que chegou à consciência de si”, formando uma realidade concreta e absoluta.
Para Hegel é através da propriedade que as relações pessoais ganham sua primeira ordenação jurídica. É através do encontro das vontades que se estrutura o contrato de convivência entre os indivíduos. Neste contrato social, a convivência entre os indivíduos será baseada numa conciliação de pessoas, baseado e um objeto material. Este pensamento terá uma profunda influência sobre Marx, quando este estrutura seu conceito de “relações de produção”. Isto prova que a influência de Hegel sobre Marx não se limita a aspectos filosóficos e metodológicos, mas inclui sua teoria econômica.
As concepções do funcionamento do Estado em Hegel tiveram forte influência em sua visão econômica, esta fortemente influenciada pelo liberalismo britânico do século XVIII. Muitas destas concepções de Hegel serão mais tarde incorporadas por Marx, de uma maneira diferente. Desta forma, “o regime comunista de Marx (estágio da evolução social que corresponderia ao Estado político de Hegel, isto é, o momento de “negação da negação” na vida social) promete eliminar de uma vez para sempre o capital e com ele o fundamento econômico e jurídico das relações humanas alienadas do mundo moderno” (pag.44).

Feuerbach, as mediações e a praxis social

A crítica de Feuerbach à filosofia de Hegel (do qual foi discípulo), começa com o início da filosofia, que em Hegel se principia com um objeto extremamente abstrato. Para Feuerbach, ao contrário, “o começo da filosofia é o finito, o determinado, o real”. Feuerbach afirma em sua teoria da alienação que o ser absoluto, ou seja, Deus, e o Espírito Absoluto da evolução intelectual hegeliana é a alienação da essência humana, tomando o absoluto como um sujeito autônomo, um fantasma. Considerar o predicado como sujeito, o pensamento como ser, separá-los e dar predominância e autonomia ao primeiro é, segundo Feuerbach, o grande engodo do método hegeliano e do cristianismo. Esclarecer e iluminar este grande mal-entendido é a tarefa da filosofia. A verdadeira contradição, segundo Feuerbach, está entre a razão abstrata e a percepção. Ao pensamento abstrato, chamado Ser, ilusão dos filósofos idealistas, opõem-se os seres concretos da experiência sensível, e não o nada. O nada, nada é, por não exercer nenhuma influência sobre os sentidos.
A passagem de Marx do materialismo feuerbachiano ao materialismo dialético se dá através da incorporação de conceitos de Hegel, através da negação da negação. O vir-a-ser não se encontra em um pensamento abstrato, mas na vida social empírica dos homens.
Feuerbach afirma que a projeção das qualidade humanas na idéia de Deus tem um aspecto positivo, já que mostra à humanidade as virtudes de que é capaz. A “redenção do homem” não significa o reatamento da aliança com um suposto deus, mas o reatamento da aliança entre os homens. Por isso, ainda segundo Feuerbach, cabe substituir a filosofia por uma antropologia.
A única mudança possível, segundo a filosofia de Feuerbach, é a conscientização pessoal (pela educação, por exemplo), o auto-esclarecimento, livrando o ser humano de sua alienação em relação à religião e à filosofia. Todavia, no aspecto político, a filosofia de Feuerbach não tem nenhuma pretensão transformadora, limitando-se ao aspecto pedagógico. Esta limitação da ação, reflete-se na própria concepção da verdade. Para o autor do “A Essência do Cristianismo” o observador será tanto mais sensível à verdade, quanto menos exercer seu poder sobre a realidade. Esta visão contemplativa choca-se com a visão da verdade de Marx, para quem a verdade se apresenta depois da intervenção do homem na natureza (como o processo da pesquisa científica e atividade industrial).
O Estado, para Feuerbach, deve ser o gerenciador dos conflitos e das necessidades. Seu conceito de Estado espelha-se na democracia burguesa, na qual o Estado é responsável para resolver todas as contradições da sociedade, cabendo aos indivíduos uma atitude passiva.

Estado, sociedade civil e horizontes metodológicos na “Crítica da Filosofia do Direito em Hegel”

A crítica de Marx à filosofia de Hegel foi feita tomando por base a filosofia de Feuerbach, fazendo uso do novo conceito de alienação de Feuerbach. Refutando as teses de Hegel, Marx afirma em “Crítica da Filosofia do Direito em Hegel” que o Estado preconizado por este é apenas uma idéia abstrata, ilusoriamente cultuado como se fosse um sujeito concreto, devendo ser combatido. Por outro lado, Marx também constatava uma clara diferença de interesses entre a organização política (o Estado)  e a sociedade civil.
Marx passou a admitir a idéia de um Estado como ente independente, que a simples crítica de Feuerbach não poderia mudar. Em 1843 Marx ainda considerava o Estado como Idéia, e não como instrumento de interesses particulares. Somente se afastará desta linha de pensamento em 1845, quando afastando-se de Feuerbach criará um novo materialismo que concede à realidade e ao Estado uma racionalidade ativa, decorrente prática social coletiva.

 Della Volpe e a dialética da particularidade

Della Volpe afirma que o texto de Marx de 1843 – “Crítica da Filosofia do Direito em Hegel”, apesar de não ser completamente original já apresenta algumas idéias que o pensador irá desenvolver mais tarde, ao longo da carreira. A primeira crítica da dialética idealista de Hegel foi, entretanto, feita por Feuerbach, antes de Marx.
(Imagens: pinturas de Henri Rousseau)