Perguntando é que se aprende (XIX)

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Nós brasileiros temos um problema de memória: esquecemos dos fatos, e se não fosse a mídia, certos acontecimentos perderiam seu registro para sempre. Já escrevia o filósofo George Santayana (1863-1952) que “Aqueles que não conseguem lembrar o passado, estão condenados a repeti-lo”. Nada mais verdadeiro para um país que, por exemplo, esquece do mal que determinados políticos lhe fizeram. Passados alguns anos, os mesmos aventureiros são reeleitos e voltam a ocupar cargos, através dos quais podem, de novo, tirar proveito do cidadão - ou mais especificamente dos impostos que este paga. Esta a razão da extrema importância da lei da “Ficha Limpa” que, volta e meia, alguns parlamentares tentam alterar e tornar mais branda, para que a impunidade possa continuar.

Sob outro aspecto a falta de memória é providencial; fez com que a sociedade brasileira desenvolvesse uma grande tolerância em relação a indivíduos e organizações que praticam atos ilegais. A questão do trabalho escravo, por exemplo. Um país com mais de 300 anos de regime escravocrata deveria ter uma forte aversão contra qualquer atividade ou situação, que de longe lembrasse tal prática monstruosa. A condição é tão grave, que duas ONGs lançaram em 2012 o “Atlas do Trabalho Escravo no Brasil”, dando um perfil dos trabalhadores que correm alto risco de se tornarem vítimas desta prática e mostrando as regiões onde existe a maior possibilidade de tal fato ocorrer.

No estado de São Paulo, é freqüente a descoberta de trabalhadores escravos – muitas vezes imigrantes clandestinos – atuando em confecções, que fabricam roupas para marcas e lojas de departamentos famosos. Identificados o local e constatado o crime, os proprietários (ou seria melhor dizer os “feitores de escravos”) recebem uma multa e são obrigados a assinar um Termo de Ajuste de Conduta (TAC) emitido pela Delegacia do Trabalho. Punição bastante leve, para um crime tão fortemente repudiado.

Recentemente foi identificada mais uma “casa de trabalhos forçados” em Americana, interior do estado. Segundo o jornal Folha de São Paulo, “O caso foi enquadrado como análogo ao trabalho escravo, por falta de registro em carteira, condições degradantes, moradia precária, aliciamento de trabalhadores e indícios de jornada abusiva.” As marcas e empresas envolvidas direta ou indiretamente aparecem no jornal, mas logo serão esquecidas. Além disso, o envolvimento direto é sempre difícil de provar, já que os “feitores” – aqueles que exploram a mão de obra escrava – preferem assumir a culpa pelo crime, ao invés de perder o rico cliente. Uma lista de exploradores do trabalho escravo encontra-se no site http://portal.mte.gov.br/trab_escravo/portaria-do-mte-cria-cadastro-de-empresas-e-pessoas-autuadas-por-exploracao-do-trabalho-escravo.htm. A relação é extensa, mas limitada aos casos efetivamente identificados; o quadro real deve ser muito pior.

A reforma do Código Penal pretende incluir a exploração do trabalho escravo na lista dos crimes hediondos inafiançáveis, conforme http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/DIREITOS-HUMANOS/198528-TRAFICO-DE-PESSOAS-PODE-SE-TORNAR-CRIME-INAFIANCAVEL.html. É estranho que a escravidão ainda não tenha sido considerada crime hediondo. Talvez seja porque porque só agora se tornou mais comum, tendo sido inexistente no passado? 

A grande pergunta é se no futuro todos os envolvidos com trabalho escravo e tráfico de pessoas serão efetivamente punidos. Ou será que a “falta de memória” dos órgãos competentes continuará esquecendo de aplicar a lei aos criminosos?

Redução da área de unidades de conservação preocupa

domingo, 24 de fevereiro de 2013
"O povo é em todos os tempos a mesma criança travessa, a quem se engambela com um doce ou um boneco."  -  José de Alencar  -  Alfarrábios Vol. XIII

Nos últimos 30 anos o País perdeu mais de 45 mil quilômetros quadrados em áreas naturais protegidas, localizadas em unidades de conservação (UC). Esta área é o equivalente ao território do estado do Rio de Janeiro e mais do que a extensão territorial da Holanda (41,5 mil Km²). O estudo foi realizado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e relaciona todos os casos de redução, declassificação e reclassificação (RDR) de unidades de conservação em todo o País, a partir de 1981. Segundo reportagem publicada no jornal O Estado de São Paulo, a “redução” de uma unidade de conservação (UC) ocorre quando esta tem sua área reduzida; “declassificação” quando a UC deixa de existir; e “reclassificação” ao se alterar a categoria de proteção de uma UC, seja para critérios mais restritivos ou mais flexíveis. 
Segundo dados do estudo elaborado pela UFPE, foi principalmente a partir de 2004 que os casos de RDR aumentaram principalmente na região Norte, por conta de obras de infraestrutura de eletricidade na Amazônia. A região, que tem aproximadamente 40% de sua área ocupada por unidades de conservação e terras indígenas, deverá sofrer um impacto cada vez maior de ações de RDR. Isto porque, seu território é bastante extenso (5,2 milhões de Km² e cerca de 60% do território nacional) e possui uma grande concentração de áreas sob proteção – além de abrigar uma grande quantidade de rios que a médio e longo prazo serão represados, visando geração de energia elétrica. Além disso, novas extensões de terra na Amazônia também são cobiçadas pelo setor imobiliário, pelo agronegócio e, eventualmente, pelo setor de mineração. Segundo dados da WWF, visando viabilizar empreendimentos hidrelétricos, foram excluídos mais de 90 mil hectares das UC, ou seja, passaram de área protegida para área de empreendimento.
Enquanto o Brasil encontra dificuldades para gerenciar suas unidades de conservação, outros países como a Costa Rica apostam na conservação e na ampliação das áreas sob proteção. Neste pequeno país da América Central, com pouco mais de 51 mil Km², a extensão coberta por vegetação natural pulou de 29% para 52%, entre 1985 e 2012. Neste período, com o objetivo de compensar as emissões geradas por suas atividades econômicas, o governo da Costa Rica investiu pesado em parques naturais, remuneração de produtores rurais para manterem a vegetação natural em suas propriedades e na recuperação de áreas desmatadas. Desde 1996, quando o governo costarriquenho criou a política de remuneração dos produtores rurais – principalmente pecuaristas que possuem a maior parte das terras do país – já foram investidos 400 milhões de dólares. Partes destes recursos provêem de um imposto sobre a gasolina e a outra parte de recursos do Banco Mundial.
A iniciativa trouxe grandes benefícios à Costa Rica, tanto na conservação de seus recursos naturais, quanto na geração de receitas com o turismo. O Brasil, com seu grande potencial turístico, poderia seguir o exemplo deste país. Uma melhor utilização turístico-ecológica de inúmeras UCs na área da Mata Atlântica, por exemplo, poderia gerar receita para futuros investimentos, além de contribuir para colocar mais turistas em contato com as riquezas naturais de que ainda dispomos. Mais informações sobre UC no Brasil em http://www.icmbio.gov.br/portal/.
(Imagens: fotografias de Anthony Luke)

Número de espécies e sua extinção

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013
"Quando se há de começar a fugir deste perigo? Antes que nos colha a morte. Quando há de chegar a morte? Não o sabemos; poderá ser logo."  Padre Manuel Bernardes  -  Nova Floresta Tomo II

Uma das grandes questões da moderna biologia é estabelecer o numero de espécies vivas existentes na Terra. Se, em uma primeira abordagem, o problema pode parecer restrito a biólogos ou outros cientistas que estudam o assunto, em uma análise mais profunda percebe-se que o tópico tem implicações em vários outros ramos do conhecimento - talvez até para a sobrevivência humana. Se, por um lado, o número de espécies estava mais ou menos definido no passado, a exploração e o estudo de novos ambientes - as regiões geladas dos polos, as florestas tropicais e o fundo dos mares, entre os biomas principais - acabou mostrado a existência de espécies vivas nunca imaginadas. Fato é que até o momento já foram catalogadas cerca de 1,3 milhões de espécies e a cada ano são descobertas cerca de 15 mil novas.
Em grandes profundidades dos oceanos, perto de falhas geológicas que expelem água quente a altíssimas temperaturas - apesar de nessas profundidades a temperatura da água estar entre 2 a 3 ºC -, habitam espécies únicas, só encontradas naquelas regiões, completamente desconhecidas do homem até meados década de 1990. Em outra situação, cientistas descobriram, por exemplo, que certas espécies de bactérias sobrevivem em águas bastante ácidas, perto de vulcões e gêiseres, em condições onde qualquer outro tipo de vida pereceria em segundos. Escavações de minas e poços depararam com tipos de bactérias que sobrevivem em profundidades de 2, 3 até 5 quilômetros na terra, suportando altas temperaturas, pressões colossais e total ausência de luz e oxigênio. Recentemente, estudiosos americanos da Universidade Estadual de Montana encontraram sinais de vida nas águas do lago Whillans, após perfurarem uma camada de 800 metros de gelo, na Antártida. Nos oceanos, mesmo a pouca profundidade, é cada vez maior o número de microrganismos identificados pela pesquisa, formando verdadeiros ecossistemas independentes, cujos habitats distam poucos quilômetros um do outro, demonstrando a grande variedade de espécies.
A ciência classifica atualmente os seres vivos em cinco reinos: monera (bactérias), protista (protozoários), fungi (fungos), vegetal e animal. Destes, somente alguns tipos de fungos, os vegetais e os animais são pluricelulares. Os demais são organismos unicelulares, únicos habitantes da Terra por cerca de dois bilhões de anos - antes que os seres pluricelulares aparecessem há cerca de 600 milhões de anos -, e que mesmo hoje constituem a maior parte da biomassa viva existente no planeta. Dada esta grande diversidade de seres vivos, ainda não é possível para os cientistas estabelecerem o numero de espécies existentes. As estimativas mais conservadoras atuais dizem existir entre três e dez milhões de espécies; entre os pesquisadores mais entusiastas estes números variam de 50 a 100 milhões.
A revista de divulgação Science Magazine publicou em seu volume 339 um artigo assinado por diversos cientistas, entre os quais o ecólogo Robert May, da universidade de Oxford. Sob o nome Can we name the earth´s species before they go extinct? (Poderemos denominar as espécies da Terra antes que se tornem extintas?), o estudo apresenta dois pontos bastante importantes para a discussão da questão ambiental. Primeiramente, os autores dizem que o número de espécies não é tão vasto quanto alguns setores da ciência afirmam - apesar de May ser autor de estimativas bastante otimistas no passado. A quantidade de tipos de seres vivos, segundo o artigo, é de aproximadamente de cinco milhões.
Os dados nos quais os pesquisadores da universidade de Oxford se baseiam, são os mesmos disponíveis para os outros cientistas. Desta forma, dizem os críticos, trata-se apenas de uma nova interpretação daquilo que já existe, sem, no entanto, apresentar mais indícios comprobatórios. Outro aspecto, levantado pelos autores, é de que a taxa de extinção de espécies é muito mais baixa do que se estima, variando entre 1% a 5% por década; muito abaixo dos índices "alarmantes" divulgados por ONGs e institutos de pesquisa de todo o mundo nos últimos anos.
Também neste ponto Robert May e seus colaboradores estão defendendo apenas uma interpretação diferente de fatos existentes, já que até o momento não existe um consenso definitivo sobre o ritmo de extinção das espécies. Grande parte das informações hoje disponíveis é baseada em inferências, como por exemplo, a velocidade de destruição dos ecossistemas originais; ocorrendo de forma bastante acelerada, se comparado aos períodos históricos pré-industriais. 
O artigo deverá atrair muitas críticas de diversos setores das ciências biológicas e ambientais. Ainda é muito grande a dificuldade em estabelecer o número das espécies existentes sobre a Terra. A diversidade de biomas e de adaptações da vida às mais diversas condições, como assinalado acima, dá motivo para imaginar que possam existir muitos tipos de criaturas ainda a serem descobertas. Quanto ao ritmo da extinção, é cada vez mais temerário dizer que ocorre de forma mais lenta do que o estimado até agora, quando as informações disponíveis indicam exatamente a aceleração do ritmo de destruição dos ecossistemas.
Afirmações como as produzidas por este estudo precisam ser avaliadas e largamente debatidas por especialistas, ambientalistas, políticos, empresários e outras instituições envolvidas com o tema. Isto porque tais ideias, mal ou tendenciosamente interpretadas, podem dar força a grupos de interesse que se colocam contra o aumento das áreas de proteção para biomas (e espécies) naturais - seja nos continentes ou nos mares. Além disso, podem relativizar a importância do fato de que a economia mundial vem destruindo os ecossistemas naturais - e com isso as espécies - de forma cada vez mais rápida.  
(Imagens: fotografias de Eduardo Gageiro) 

Correta gestão dos resíduos em 2014?

domingo, 17 de fevereiro de 2013
"Com efeito, nós somos um povo inculto. Ainda não afirmamos em cousa alguma a nossa individualidade, o nosso caráter nacional. A filosofia e a ciência, entre nós, continuam a ser espécie de roupa feita em Paris, que é uma profanação descoser e recortar, e como tais nenhuma influência têm podido seriamente exercer sobre a evolução de nossas idéias religiosas."  Tobias Barreto  -  Estudos alemães

Além dos problemas usuais, os prefeitos eleitos em 2012 têm um desafio adicional pela frente: atender a Lei 12.305 de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional dos Resíduos Sólidos. Baseado neste dispositivo legal, completado pela Lei Complementar 140 de 2011, os administradores municipais terão prazo até 2 de agosto de 2014 para implantarem em seus municípios sistemas de reciclagem de lixo e aterros sanitários, construídos dentro dos padrões técnicos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Trata-se de uma tarefa bastante difícil – mas não impossível – ainda que somente 5% dos municípios brasileiros apresentaram seus planos de gestão de resíduos, habilitando-se para obter financiamento do governo federal para início dos projetos. Uma das maiores dificuldades alegada pelas administrações anteriores era que faltava capacitação técnica para elaboração dos estudos e coleta das informações necessárias para estruturar o plano de gestão. Agora, dado o adiantado da hora, caberá aos novos prefeitos a tarefa de elaborar o projeto, obter sua aprovação e o financiamento, para iniciar as obras do aterro e implantar o sistema de coleta seletiva em seus municípios.

A correta gestão dos resíduos sólidos urbanos continua sendo um dos maiores problemas ambientais do Brasil, junto com o tratamento do esgoto doméstico. De acordo com o relatório “Panorama dos Resíduos Sólidos no Brasil de 2011”, elaborado pela Associação Brasileira de Empresas Pú­blicas e de Resíduos Especiais (Abrelpe), dos 5.565 municípios brasileiros, 3.371 ainda destinam seus resíduos para lixões (1.607) ou aterros controlados (1.764). Estas áreas não foram preparadas para um correto recebimento dos resíduos, não dispondo de instalações para o tratamento dos gases (metano) e escoamento do chorume (o efluente líquido que se forma com a decomposição do lixo). Em 2010, segundo o mesmo estudo, 11 milhões de toneladas de lixo foram parar em lixões. São Paulo é o estado que conta com o maior número de municípios munidos de aterros sanitários aprovados. Segundo a agência ambiental estadual (CETESB), o estado possui somente 23 aterros municipais em situação inadequada; 3,5% do total de municípios do estado.  
Especialistas no tema dizem que um dos principais obstáculos para a implantação de aterros sanitários e programas de coleta seletiva é a falta de especialistas na área. Mão de obra qualificada, por uma série de razões socioeconômicas, está geralmente concentrada em cidades de grande e médio porte. No entanto, segundo dados do IBGE de 2012, o Brasil possui somente 288 cidades – de um total de 5.564 – com mais de 100 mil habitantes. Desta forma, o governo federal precisará alocar recursos adicionais para capacitação de pessoal, a fim de que os municípios também disponham de profissionais qualificados, preparados para gerir o plano de gestão de resíduos do município, e não fiquem somente dependentes de prestadores de serviços. Mesmo assim, é quase consenso entre os especialistas que o prazo final estabelecido pela lei – agosto de 2014 – não poderá ser mantido pela grande maioria dos municípios brasileiros.

A correta gestão dos resíduos é mais um degrau que a sociedade brasileira precisará subir, se pretende tornar-se mais civilizada e cidadã – e neste esforço os prefeitos terão um grande papel a cumprir.   
(Imagens: fotografias de Gianni Borghesan)

Arte na Idade Média e no Renascimento

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
"Afinal, numa sociedade dominada por um discurso, aquele do capitalista, em que a mortalidade deve ser ocultada, senão negada, em favor das possibilidades de consumo, a história metapsicologicamente subvencionada pode dar voz a esse recalcado. E o faz, simbolizando a angústia e desconstruindo a expectativa, simultaneamente infantil e obsessiva, de que uma pílula ou uma promessa de eternidade deem sentido à vida."  -  Clovis Pereira  - Thânatos e civilização 

Há uma grande diferença entre a visão da arte no período medieval e no renascentista. Na Idade Média, principalmente no primeiro milênio, a arte era completamente influenciada pela religião cristã. Os temas dos afrescos, que se desenvolveram em Bizâncio e depois foram incorporados pelo cristianismo ocidental, giravam basicamente em torno de pinturas retratando os santos da Igreja, Jesus e Maria. Alguns textos importantes foram ilustrados com iluminuras (ilustrações em manuscritos feitos por monges copistas), mas de pouca sofisticação pictórica. Na arquitetura, imperava o estilo românico, a partir do século X, até pelo menos até o início do século XIII. O estilo era uma arquitetura eclesiástica, que havia herdado muitas técnicas de estilo e construção dos antigos templos romanos e simbolizava o poder das ordens monásticas que dominavam o universo da cultura medieval desde o século VI. As igrejas românicas eram geralmente construídas junto a mosteiros e faziam parte de uma sociedade estática e fechada em si.
O estilo gótico (nome pejorativo, dado pelos intelectuais renascentistas a este estilo) foi gradualmente substituindo o românico, a partir dos séculos XIII e XIV. As catedrais góticas eram construídas em cidades com grandes recursos financeiros – já que sua construção era cada e requeria muitos anos de investimento –, geralmente provenientes de fundos arrecadados com festas religiosas e pelo fato das cidades serem locais de peregrinação. A cidade de Colônia, por exemplo, era famosa por possuir as ossadas dos três reis magos, o que atraiam anualmente milhares de peregrinos. A catedral gótica era o centro da vida da comunidade. Abrigava geralmente uma escola e uma biblioteca e, por vezes, era usada como câmara municipal. A catedral gótica, segundo Burns é “expressão do novo espírito secular, que resultara do crescimento das cidades e do progresso do esclarecimento” (Burns, 1971, p. 388).
Convêm lembrar que a Idade Média não é um período uniforme, que se estende por cerca de 1000 anos entre o século V e o século XV. A partir do século X, a cultura ocidental sofre uma série de transformações – algumas delas têm origem no século VIII com o renascimento carolíngio – que implicam mudanças sócias, econômicas e culturais. O comércio e as comunicações entre as comunidades voltam a crescer, depois de séculos de paralisia. A cultura volta a expandir-se com a proliferação das escolas dominicais dos mosteiros e a fundação das primeiras universidades. É neste período que a doutrina da Igreja começa a tomar corpo, com a instituição da eleição do papa por um grupo de cardeais (século XI), da criação dos sete sacramentos, da Inquisição e do Purgatório (século XIII).
Estas mudanças culturais e sociais também provocam alterações nas artes. A partir do século XIII podemos observar uma arte ainda tipicamente medieval, convivendo com o início do humanismo na Itália (que em seguida daria origem ao Renascimento). Este movimento tem suas origens nas cidades de Florença, Pisa, Gênova e Veneza, que desde o século XII viviam um intenso crescimento do comércio e da cultura. Sobre este período escreve Luc Benoit: “Por outro lado, a clientela dos artistas modificava-se e a riqueza tinha mudado de mãos. A Igreja perdera sua autoridade e seu poder. A aristocracia feudal arruinada pela guerra foi substituída por chefes de bandos (condittieri), por banqueiros, por grandes burgueses que tinham suas fontes de receita nas cidades livres alemãs e italianas. Em Veneza, em 1407, fundou-se a Casa di San Giorgio, o primeiro banco público da Europa. A arte encaminhou-se para os palácios particulares, para os palacetes dos burgueses enriquecidos pelo comércio, de que resultou do quadro feito à medida das habitações urbanas.” (Benoist, s/d, p.49).
Sintetizando, poderíamos caracterizar a visão artística do período medieval e renascentista da seguinte maneira:
Idade Médial:
- Universo cultural dominado pela religião e a preocupação com o além;
- Desvalorização do corpo, do prazer e da curiosidade intelectual;
- Universo estático, dominado pela vontade divina;
- Sociedade hierarquizada em três classes: nobres, religiosos e servos;
- Quase não havia apoio à arte, só fomentada pela igreja;
- Pouca tradição artística (afrescos e iluminuras) e poucos artistas (monges geralmente);
Renascimento:
- Preocupação com este mundo, humanismo, naturalismo;
- Valorização e reinterpretação do corpo, curiosidade intelectual, pesquisa científica;
- Universo dinâmico, antropocêntrico, heliocentrismo, universo infinito (G. Bruno);
- Sociedade em transformação, formação da burguesia comercial, queda do feudalismo;
- Apoio à arte nas cidades, mecenas, igreja apóia a nova arte de influência clássica;
- Escolas de artistas, artistas famosos (Michelângelo, da Vinci, Rafael, Dürer), desenvolvimento das artes plásticas, poesia e literatura.
Esta divisão é apenas uma generalização, já que a arte na Idade Média foi encarada de várias maneiras e a passagem para o Renascimento também não se deu abruptamente. Por outro lado, não é possível abstrair a arte do ambiente social e econômico, como Friedrich Engels já havia escrito.
Bibliografia:
ECO, Umberto. Arte e Beleza na Estética Medieval. Rio de Janeiro. Editora Globo: 1989, 224 p.
BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental Vol I. Porto Alegre. Editora Globo: 1971, 581 p.
BENOIST, Luc. História da Pintura. Lisboa. Publicações Europa-América: s/d, 115 p.
ROMEIRO, Artieres E.; DALLA VECCHIA, Ricardo B.; KRASTANOV, Stefan V. Estética. Batatais. CEUCLAR, 2007, 100 p.
(Imagens: fotografias de Wiiliam Gedney)

Energia: o futuro e o presente

domingo, 10 de fevereiro de 2013
"Posso dizer com orgulho que empreguei dias e noites em não ler nada e que com energia férrea aproveitei cada minuto livre para adquirir pouco a pouco uma falta de cultura enciclopédica."  Karl Kraus  -  Aforismos

As sociedades industriais modernas não podem sobreviver sem o uso intensivo de energia. A energia, não importando sua fonte de origem – petróleo, gás, água, biomassa, luz solar, urânio ou vento – é imprescindível para o desenvolvimento de um país. Não é por outra razão que cientistas elaboraram parâmetros de avaliação do desenvolvimento material e cultural de uma sociedade, baseados no uso das energias disponíveis no meio ambiente onde floresce esta comunidade. O principal aspecto nesta avaliação não é a fonte de energia utilizada, mas a tecnologia aplicada para o uso desta energia; já que é esta que vai espelhar o grau de desenvolvimento tecnológico – significando conhecimento científico e técnico – da sociedade em questão.
Ao longo dos últimos 230 anos aproximadamente, o uso das fontes energéticas tem se desenvolvido rapidamente. Se até quase o final do século XVIII as máquinas para aproveitamento da energia cinética (movimento e força) e calorífera (calor) eram bastante primitivas e ineficientes, o grande salto foi dado quando técnicos-artesãos, principalmente da Inglaterra, desenvolveram máquinas capazes de utilizar a energia cinética gerada pelo vapor d´água, queimando carvão mineral. Durante todo o século XIX e XX, só aumentaram e se diversificaram as tecnologias capazes de aproveitar a energia das diversas fontes; do carvão vegetal e mineral aos derivados de petróleo; do aproveitamento da água, da luz do sol e do vento, até o urânio para geração de eletricidade.
Jacques Attali, doutor em economia e assessor do governo da França, é famoso por seus livros discorrendo sobre o futuro da sociedade mundial. Em seu livro Uma breve história do futuro (Novo Século Editora, 2008) faz uma série de previsões sobre como o mundo evoluirá social, econômica e politicamente ao longo do século XXI. No que se refere ao tema da energia, Attali escreve entre outras coisas: “A energia solar, bem como a energia eólica,só serão fontes inesgotáveis quando se tornarem estocáveis. Será difícil desenvolver a biomassa em grande escala, exceto para alimentar carros particulares, o que é muito importante. As outras fontes de energia naturais (geotermia, ondas, maré) parecem incapazes de responder a uma demanda significativa. Enfim, a fusão termonuclear, que poderia, sozinha, representar uma fonte quase ilimitada, com certeza não será praticável antes do fim do século XXI, pelo menos. No total, a energia será cada vez mais custosa, o que incitará a economizar, substituindo os movimentos físicos pelas trocas imateriais.” (Attali, 2008).
Apesar de ser difícil ter-se uma antevisão a respeito das futuras aplicações das energias renováveis – já que é imprevisível a maneira como estas tecnologias se desenvolverão – é certo que a obtenção de energia se tornará cada vez mais difícil. Por diversas razões, desde a escassez das fontes energéticas até a limitação tecnológica e o forte impacto ambiental da geração, a energia se tornará um insumo caro e disputado. Com isso, todos os países, do mais ao menos desenvolvido, enfrentarão dificuldades em diversos graus para obterem a energia necessária ao seu crescimento – se é que na segunda metade deste século ainda se falará em crescimento econômico.
Outro estudioso do desenvolvimento do setor energético global, Daniel Yergin, enfatiza em seu livro The Quest (A Questão – The Penguin Press, 2012) a dificuldade em se fazer uma previsão a respeito do desenvolvimento futuro das fontes de energia. Certamente, afirma o autor, surgirão “fontes de energia que não identificamos até hoje”. Como exemplo disso, o especialista cita o fato de que no auge da Revolução Industrial, com larga utilização do carvão mineral, não se imaginava o imenso potencial energético (e industrial) de outra fonte, o petróleo.
Assim, segundo muitos especialistas europeus e americanos, a única maneira de enfrentar este impasse em relação ao futuro da energia – no que se refere às fontes e às tecnologias de geração – é investir em pesquisa (P&D) e tornar toda a economia, desde os processos de produção e distribuição aos produtos e equipamentos, mais eficiente, consumindo menos energia. Outra providência sugerida é investir na geração a partir de fontes baratas e não poluentes, como as energias renováveis.
Junto com a solar e a eólica, a energia de biomassa representa uma das maiores fontes de energia renovável em todo o mundo. No que concerne a esta fonte de energia, os países industrializados já estão antecipando o futuro. Segundo dados da Agência de Energia da Alemanha (DENA), em 2009 foram gerados em todo o mundo aproximadamente 125.600 gigawatt horas (GWh) a partir da queima de biomassa sólida. Deste total, cerca de 32% (40 mil GWh) foram gerados nos Estados Unidos e 10% (12.900 GWh) na Alemanha; os dois maiores produtores mundiais de eletricidade a partir da biomassa sólida. Na União Européia, entre 2001 e 2009, o volume de eletricidade gerada a partir da biomassa aumentou 14,7%, alcançando 62.186.000 GWh no ano de 2009.
No Brasil, apesar do grande potencial de exploração desta fonte energética, ainda não existem estatísticas sobre o volume de energia elétrica gerada a partir da biomassa. Especialistas, no entanto, estimam que em 2012 foram produzidos aproximadamente 2,5 mil GWh a partir desta fonte. Segundo estudo da União das Indústrias de Cana de Açúcar (UNICA), até 2020/2021 somente as usinas de cana-de-açúcar (sem contar as outras fontes geradoras) poderão produzir um total de 13.150 MW; cerca de uma Itaipu e meia.
Diante do fato de que o consumo de energia no Brasil aumenta a cada ano e da possibilidade de uma nova crise energética, é cada vez mais urgente o planejamento do setor energético brasileiro. Além de aumentar e diversificar a geração, é necessário investir em pesquisa de novas fontes e tecnologias e em medidas de eficiência energética.
(Imagens: fotografias de Alexei Bednij)

Precisamos de alimentos mais saudáveis

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013
"A cultura da cana, no Nordeste, aristocratizou o branco em senhor e degradou o índio e principalmente o negro, primeiro em escravo, depois em paria. Aristocratizou a casa de pedra-e-cal em casa-grande e degradou a choça de palha em mucambo. Valorizou o canavial e tornou desprezível a mata.  -  Gilberto Freyre  -  Nordeste 


A questão ambiental não diz somente respeito à maneira como nos relacionamos com a natureza, através de nossas atividades econômicas. Está presente também no meio ambiente humano, formado pelas relações econômicas e culturais entre os membros da sociedade. Sendo assim, a maneira como construímos nossas casas, nos vestimos ou nos alimentamos, além de ter um impacto sobre a natureza - já que todas as matérias primas para estas atividades são extraídas do meio ambiente natural - também têm influências no ambiente humano.
Um exemplo típico é a questão da alimentação. Por um lado, afetamos o meio ambiente natural ao derrubarmos a vegetação original para preparar o solo, ao construirmos canais de irrigação ou quando aplicarmos defensivos agrícolas às plantações. Por outro, influenciamos o meio ambiente humano quando preparamos os produtos agropecuários destinados à alimentação, da colheita até o cozimento. Sendo assim, a questão alimentar também é um tema ambiental. Afinal, também somos - com nossas sociedades complexas e altamente tecnológicas - parte do meio ambiente.
Por isso, chamaram a atenção os estudos elaborados pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que constataram diversas irregularidades em alimentos vendidos ao consumidor brasileiro. Em seus principais aspectos, foram encontradas quantidades excessivas de sódio, teores acima dos recomendados de gordura saturada e trans, e doses exageradas de açúcar. Todos estes componentes são causadores de doenças crônicas como hipertensão, diabetes tipo 2, problemas cardíacos, problemas renais, obesidade e várias outras enfermidades.
A pesquisa realizada pela ANVISA constatou, por exemplo, que o macarrão instantâneo, dentre 20 categorias de alimentos analisados, foi o produto com a maior quantidade de sódio; um pacote de salgadinho de milho ultrapassa a quantidade máxima de sódio recomendada para consumo em um dia. No caso da batata palha, 55% das nove marcas continham teores de gordura saturada bem acima do recomendado; o mesmo foi constatado em biscoitos feitos de polvilho. Muitos sucos produzidos a base de néctar, também apresentaram quantidades excessivas de açúcar; os refrigerantes de baixas calorias também continham altos níveis de sódio, segundo a ANVISA devido aos corantes.
A agência governamental declarou que não pretende aplicar punições às empresas infratoras já que, segundo ela, os fabricantes mostraram a intenção de melhorar a qualidade de seus produtos. A ANVISA não pode recomendar o consumo de um tipo ou uma marca de produto em detrimento de outros. No entanto, alerta a população de que existem alimentos iguais, mas menos saudáveis, sendo importante que o consumidor se informe a respeito do produto que está ingerindo.
A alimentação é a base do equilíbrio vital do organismo humano, da saúde. Uma alimentação balanceada e saudável, associada à atividade física regular, é a melhor profilaxia contra as doenças do coração e o câncer, enfermidades que mais matam no Brasil. Por outro lado, é obrigação das empresas colocarem no mercado somente produtos de qualidade, cujo consumo no longo prazo não prejudique a saúde da população – uma questão de honestidade e segurança. 
Cabe aqui o argumento de que se uma empresa conscientemente coloca no mercado produtos que podem causar danos à saúde, esta deverá ser corresposabilizada nos custos do posterior tratamento de saúde do consumidor.  
(Imagens: fotografias de Walker Evans)

da sére "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013
Agora e na hora de nossa morte

(Artigo do psiquiatra Christian Ingo Lenz Dunker publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo em 2/2/2013)

O incêndio na casa noturna Kiss, de Santa Maria, que resultou na morte de mais de 230 jovens, colocou o luto, a dor e o sofrimento na pauta de nossa atenção. Os fatos brutos e seus números se alternavam com histórias de pessoas em uma oscilação que não é acidental. Ela exprime o trabalho psicológico necessário para converter, coletivamente, a dor em sofrimento. No primeiro tempo a dor e os signos de sua realidade nos fazem acreditar e desacreditar no acontecido. No segundo tempo tentamos interpretar e compartilhar o sentido e a falta de sentido do evento. A primeira voz tenta dar nome e imagem ao real da perda, enquanto a segunda procura saber do que é feita a verdade desse sofrimento.

Uma tragédia mostra os dois processos acontecendo de forma quase independente. Enquanto alguns clamavam por responsáveis e rogavam para que isso jamais se repetisse, outros repetiam os fatos, os nomes e os números. É o paradoxo que liga sofrimento e repetição. Queremos ao mesmo tempo inserir a perda em uma série (a série das tragédias evitáveis, previsíveis, adiáveis) e extrair a perda da série (um evento sem par, fora de série, que não se repetirá). Para aqueles que perderam entes queridos trata-se de luto, mas para os vivem a tragédia indiretamente o que se pode esperar é uma verdadeira experiência de sofrimento.

Sofrer não é apenas ser afetado passivamente por um acontecimento, mas colocar-se também do outro lado. Viver o acontecimento de forma passiva e ativa é o que se exprime na alternância entre a voz que faz as contas e sussurra que "podia ter sido um de nós" e a voz que reza pela existência do incalculável, pois "foi um de nós". Toda tragédia tem uma dimensão psíquica, estética e política, pois nos convida a reconhecer no outro a exceção que somos, cada um de nós. O sofrimento se caracteriza por certa insuficiência desse trabalho de variação de perspectivas. Vivemos a situação do ponto de vista das vítimas, da família, de nós mesmos, da cidade, dos responsáveis, mas é como se mesmo assim estivesse faltando algo. Sentimos urgência de sentido diante de uma perda em vão, não queremos apenas desencontros de motivos e propósitos, mas supomos que existe alguma verdade em causa nessa perda.

Esse clamor de memória, essa recusa da irrelevância ocorrem porque o sofrimento é uma experiência que depende da forma como é reconhecida pelos outros. Sabemos que o sofrimento muda, em quantidade e qualidade, em função do modo como ele se insere na fala e na linguagem. As palavras modulam o sofrimento, sancionando ou vetando seus meios de expressão, seus fins, suas causas. Elas não mudam o fato, mas mudam como nos colocamos diante dele. É isso que torna o sofrimento digno ou indigno, valioso ou inútil, fazendo-o um capítulo essencial de nossas dinâmicas de reconhecimento. Decidir em nome do que vale a pena sofrer, assim como deixar-se afetar pelo sofrimento do outro, é um traço fundamental de nossa autonomia. Se nós aprendemos a sofrer, assim como aprendemos a amar, podemos perder a capacidade de sofrer, tal como a neurose nos tira a capacidade de amar.

Se queremos ajudar alguém a passar pelo luto devemos sustentar e partilhar a experiência de sofrimento. Mas isso não é nem simples, pois no mais das vezes estamos acostumados a substituir o sofrimento por alguma forma outra de ocupação, distração ou esquecimento. A forma mais óbvia de bloquear o percurso do sofrimento é negar que nele exista qualquer aspiração de verdade. Considerá-lo como mera acumulação inconveniente de dor e desconforto nos leva a enfrentá-lo por meio de anestésicos, morais, químicos ou ideológicos, que reduzem o sofrimento à sensação de desprazer. Assim ele se torna um conjunto de problemas que precisa ser resolvido ou administrado pela ação sobre suas causas. Ele não precisa de história ou narrativa para se concluir coletivamente, mas apenas de descrição e diagnóstico. Tal evitação patológica da experiência de sofrimento frequentemente retorna sob forma da chamada "culpa do sobrevivente", ou em compulsões, cujo traço clínico característico é justamente a repetição de pensamentos, de afetos indiscerníveis, de esquemas de ação.

Outra maneira de suspender a experiência de sofrimento é dissolvendo-se nela, como ocorre nas grandes manifestações de identificação em massa. O sinal característico aqui é que o eu, em vez de experimentar o apequenamento, gerado pela perda, sente-se grandioso por participar de uma experiência coletiva memorável. Passamos a sofrer "por procuração", criando uma causa comum, que nos identifica ao sofrimento do outro, o que nos poupa o trabalho de tomar aquele sofrimento como realmente próprio. Substitui-se assim a tragédia pelo drama. Os sintomas típicos nesse caso envolvem o prazer em se ver no lugar do que foi perdido e a paixão por ser reconhecido como vítima. Ora, o que se encontra negado, no caso, é a distância que nos separa daqueles que viveram a perda de forma real.

Também é comum que o sofrimento, enquanto experiência potencialmente transformadora, seja substituído por um tipo de fixação defensiva, que se compraz na crítica e no rebaixamento de si. Aqui ele se torna uma forma de gratificação e de apelo amoroso, por meio do qual o sujeito enaltece sua própria impotência como forma de satisfação masoquista. Como se o sofrimento, por si mesmo, justificasse a necessidade de ser amado e reconhecido. De novo é a tragédia que não pode ser reconhecida enquanto tal, mas cede lugar ao mito tão ao gosto dos que exploram o sofrimento como catarse purificadora, na qual afetos são mobilizados, mas justamente para não serem reconhecidos.

Experimentar o sofrimento em toda sua extensão e virulência é também uma das condições que nos tornam humanos. Muitos se colocam no lugar dos jovens presos na casa noturna de Santa Maria. Tentam saber se eles sofreram ou se apenas desmaiaram rapidamente, de modo indolor. Outros não conseguem evitar pensar nas famílias, nos amigos e na própria cidade, que precisa seguir em frente, mesmo que isso agora pareça impossível. Estejamos do lado dos que querem fazer algo para não pensar, ou dos que querem pensar para não fazer, lembremos que nosso sofrimento, quando nos toca em seu teor de real e de verdade, é uma forma de estar com eles.

Não há nada de essencialmente libertador no sofrimento, e ele não melhora, necessariamente, as pessoas. Mas sabemos que uma vida na qual o sofrimento é apenas espetáculo ocasional ou obstáculo pessoal é uma vida pobre quanto a suas próprias aspirações de realização. Para além da potência ou da impotência que o drama nos causa, há a tragédia. E por meio da tragédia supomos que há um grão de verdade em jogo no sofrimento. Nem que seja a verdade de nossa mortalidade e do reconhecimento do valor simbólico da presença do outro neste momento, como na oração "rogai por nós, agora e na hora de nossa morte".

CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER É PSICANALISTA, PROFESSOR DO INSTITUTO DE PSICOLOGIA DA USP E AUTOR DE ESTRUTURA E CONSTITUIÇÃO DA CLÍNICA PSICANALÍTICA (ANNABLUME)

Apagão? Que apagão?

domingo, 3 de fevereiro de 2013
"Não há, entre os seres humanos, banalidade maior do que a morte; em segundo lugar vem o nascimento, pois nem todos os que morrem chegaram a nascer, depois vem o matrimônio."  -  Friedrich Nietzsche  -  100 aforismos sobre a morte e o amor

O grande tema para o governo nos primeiros dias de 2013 é a crise de energia que se esboça no horizonte e que poderá se tornar mais nítida em algumas semanas. O assunto, tratado como “ridículo” pela presidente Dilma Roussef nos últimos dias de 2012, parece cada vez mais sério e preocupante. Com o constante aumento do consumo de eletricidade e a gradual queda do nível dos reservatórios – apesar das chuvas de verão – o governo não pode mais ignorar os fatos e será obrigado a apresentar soluções de médio e longo prazo.
O consumo de eletricidade vem crescendo a cada ano, principalmente durante os últimos dez anos, quando aumentou o poder de consumo da população e novos compradores de eletroeletrônicos – cerca de 30 milhões – foram incluídos no mercado. Somente em novembro de 2012, o uso de eletricidade aumentou 6,3% no país, comparado ao mesmo período em 2011. No cômputo geral, todas as regiões brasileiras apresentaram um aumento considerável no consumo de energia, comparando o mês de novembro em 2011 com 2012: Norte 14,4%; Centro-Oeste 13,6%; Sul 11,7%; Sudeste 9,9%; e Nordeste 5,6%.
Enquanto o consumo de eletricidade aumenta, o nível de água dos reservatórios das hidrelétricas – o combustível para geração de energia – despenca. As represas do subsistema Sudeste/Centro-Oeste, responsáveis por 70% de toda a capacidade de armazenagem do país, dispõem de apenas 28,83% de água (dados de início de janeiro de 2013), quase no limite de sua situação de segurança. No Nordeste o volume dos reservatórios está em 31,61%, já abaixo do nível de limite de segurança para a região. No Norte (41,24%) e no Sul (38,95%) os níveis da água ainda não entraram na faixa de perigo.
Um dos fatores preocupantes neste verão 2012-2013 é que as chuvas não estão sendo suficientes para repor os estoques de água dos reservatórios. “O que ocorrer em janeiro em termos de hidrologia definirá a condição do sistema”, disse ao jornal O Estado de São Paulo o presidente da Associação Brasileira de Empresas Geradoras de Energia Elétrica (Abrage), Flávio Neiva. Ele afirma que se as chuvas não voltarem aos seus níveis históricos para o período, acende-se um “sinal amarelo” e o governo terá que tomar providências.
Especialistas não sabem ainda quais as conseqüências da crise, se esta efetivamente se instalar, mas descartam em sua maioria o racionamento de eletricidade. O que poderá ocorrer é um aumento no custo da geração de eletricidade, já que para suprir a demanda o Operador Nacional do Sistema Elétrico deverá colocar em funcionamento um número maior de termelétricas a gás natural e óleo combustível. Esta providência poderá colocar em risco parte do desconto prometido pela presidente Dilma, a ser dado a partir de 2013 nas contas de energia elétrica.
O quadro lembra muito 2001, o “ano do apagão”; mas não é o mesmo. Se por um lado o governo pode lançar mão das termelétricas, por outro o volume de eletricidade consumida é muito maior. Se também existem mais hidrelétricas, estas são a fio de água, isto é, sem reservatórios – diminuindo o volume de água disponível no rio, cai a geração.
O governo precisa investir mais na prevenção de problemas; neste caso em políticas de eficiência energética, valorizando a energia gerada. O que não pode ser mantido é este quadro de improvisação, ligando e desligando termelétricas altamente custosas e poluentes.      
(Imagens: fotografias de Arnold Genthe do terremoto de São Francisco em 1906)