"A ordem do discurso" de Foucault

sábado, 27 de fevereiro de 2016
"Tal como para a humanidade em seu todo, também para o indivíduo a vida é difícil de suportar. Uma cota de privações lhe é imposta pela cultura de que faz parte; outra porção de sofrimento lhe é causada pelas demais pessoas, seja a despeito dos preceitos da cultura, seja em consequência de imperfeições dela. A isso se acrescentam os danos que a natureza indomada - ele a chama 'destino' - lhe provoca.  -  Sigmund Freud  -  O futuro de uma ilusão

Foucault inicia seu discurso (trata-se de sua aula inaugural no Collége de France, dada no dia 2 de dezembro de 1970). Diante da plateia, Foucault parece querer incluir seu discurso dentro de um maior que já há (ou queria que houvesse). Menciona a dificuldade de iniciar um discurso, de todo o ritual que reveste o início de um discurso, situação da qual muitos querem se furtar. Foucault afirma que a validação do discurso, do “ritual do discurso”, é feito pela instituição tradicional. Descreve sua inquietação perante o discurso e a vida e por fim pergunta sobre o que há de mal no discurso, o que há de perigoso nele?
Para Foucault a sociedade exerce certo tipo de controle sobre o discurso e afirma que há alguns temas que são tabus, como a sexualidade e a política. Comenta que o discurso não simplesmente expressa o desejo; que também há o desejo em se poder ter o discurso.
Referindo-se a exclusividade do discurso, Foucault comenta que a palavra louco era no passado sinônimo de “não-discurso”, de nulidade. O louco só parece ser escutado pela medicina a partir do século XVIII, antes disso sua palavra não tinha valor, a palavra só lhe era dada simbolicamente. Hoje imagina-se que esta separação não existe, que o louco foi incorporado. No entanto, ao mesmo tempo em que o “médico de loucos” escuta a palavra deste, exerce uma censura.
Se nos situamos no nível de uma proposta, de um discurso, a separação entre o verdadeiro e o falso não é arbitrária, nem modificável. Até o século VI a.C., o discurso respeitado era aquele pronunciado por quem de direito e conforme ritual. Um século depois, na antiga Grécia, o discurso valorizado não era mais o discurso em si, seu efeito, mas seu conteúdo. O discurso então não é mais valorizado pela maneira como é dito ou por quem disse, mas pelo seu conteúdo. Esta virada histórica deu forma a nossa vontade de saber, que por sua vez também variou de acordo com os séculos. Todavia, esta vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional e práticas pedagógicas, fundamentadoras desta verdade. Na literatura, nas ciências, no direito, em todo o lugar, há necessidade de fundamentar o discurso com um discurso verdadeiro.
Estes são os três grandes sistemas de exclusão no discurso: proíbe-se o discurso, desqualifica-se o discurso louco e exige-se o discurso verdadeiro. Existe, portanto, a verdade universal e forte. Por outro lado, ignora-se a verdade como sistema de exclusão de todos aqueles que procuram contornar esta verdade; que exclui a loucura por ela definida.
Foucault ressalta a importância do autor como validador do texto. Cita o exemplo de que na Idade Média a citação de um autor sempre era sinônimo de verdade do texto. O texto científico não precisava necessariamente de um autor, enquanto que o texto literário requeria autoria. 
Outra forma de cercear o acesso ao discurso é a rarefação dos sujeitos que falam: ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. A forma mais visível desta forma de restrição é o ritual, que define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam e que devem formular determinado tipo de enunciado.
Foucault menciona que o sistema de ensino também é um estabelecimento de papéis e de ensinamentos, assim como os sistemas médico e judiciário também são sistemas de estabelecimento de discurso. Nossa civilização valoriza o discurso porque precisa controlá-lo, dirigi-lo e ordená-lo.

O discurso da ciência, principalmente das ciências físicas, que até há pouco era absoluto e indiscutível, também já está sendo colocado em questão.  A especificidade do estudo da história mudou. Hoje não se procura mais estabelecer exatamente como ocorreu determinado evento, mas circunscrever-lhe as condições de aparecimento (ocorrências). Por isso, segundo Foucault, deve-se fazer história da ciência coo um conjunto ao mesmo tempo coerente e transformável de modelos teóricos e de instrumentos conceituais (pag. 72).
Por fim, Foucault rende homenagem a seu mestre Jean Hyppolite e a influência que este recebeu da filosofia de Hegel. 
(Imagens: pintura japonesa dos séculos XIX e XX)

Eficiência energética é sinônimo de modernização

sábado, 20 de fevereiro de 2016
"Nietzsche não quer redenção. A alegria do devir é a alegria da aniquilação. Mas só o indivíduo é destroçado. O movimento de revolta, no qual o homem reivindica seu próprio ser, desaparece na submissão absoluta do indivíduo ao devir. O amor fati substitui o que era um odium fati."  -  Albert Camus  -  O Homem revoltado

O suprimento de energia é um tema de preocupação constante no Brasil. Toda vez que o crescimento da economia coincide com um período em que os reservatórios das hidrelétricas estão com seus níveis baixos, fala-se do perigo de um apagão de energia. De fato, recentemente quase ficaríamos sem eletricidade, se nos últimos três anos o governo não tivesse colocado em funcionamento as termelétricas a óleo e carvão, que passaram a suprir cerca de 20% da eletricidade consumida pelo país. A falta de investimentos em eletricidade, principalmente na geração e transmissão, foi compensada pela queda no consumo, que caiu 2,1% entre 2014 e 2015.
Como sempre repetem os especialistas do setor de energia, “a melhor energia é aquela que não precisou ser gerada”. Países altamente industrializados, como o Japão, a Alemanha e os Estados Unidos, já vem implantando políticas nacionais de eficiência energética há muitos anos e continuam a estabelecer objetivos cada vez mais ambiciosos. A Alemanha, por exemplo, planeja reduzir o consumo de energia primária em 20% até 2020 e em 50% até 2050, tendo por base o consumo de 2008 (energia primária é toda forma de energia disponível na natureza antes de ser transformada, como a energia dos combustíveis, do sol, da água, do vento). O Japão, apesar de ter constantemente aumentado sua produção industrial, conseguiu reduzir seu consumo de energia primária em 43% entre 1973 e 2009.
No Brasil ainda estamos muito longe disso e alguns fatores contribuem para que o país ainda não tenha implantado uma política de eficiência energética. De um lado, o desenvolvimento tecnológico da indústria e do setor de construção ainda não é suficientemente avançado, como nos países altamente industrializados (ainda se dá pouco valor à inovação tecnológica). Por outro lado dispomos de grande oferta de energias primárias (rios para a construção de hidrelétricas, irradiação solar, ventos, biomassa, petróleo, etc.), de exploração relativamente simples – o que muitas vezes nos falta são os recursos financeiros. Outro aspecto é que ainda não chegamos a desenvolver um conjunto de normas técnicas e leis, que favoreçam a prática do uso eficiente de energia.

 Em economia fala-se na “síndrome holandesa” quando um país, rico em recursos naturais, se especializa na exploração destas riquezas, abandonando a produção industrial. É o que aconteceu, por exemplo, com a Venezuela em relação ao petróleo. No Brasil, de certo modo, sofremos de uma síndrome holandesa em relação às fontes primárias de energia. Enquanto que aumentamos a oferta interna de energia em 3,1% entre 2013 e 2014, pouco nos preocupamos em implantar medidas efetivas de economia de consumo – iniciativas como o Selo Procel, criado em 1985, precisam ser estendidas a outros setores.
O uso eficiente de energia passa necessariamente pela questão econômica. Quando o menor consumo de energia (em muitos casos menor emissão de gases) se transformar em efetiva vantagem, seja para o consumidor ou produtor, o país passará a encarar a eficiência energética de outra forma. Na disputa por novos mercados, nossa indústria terá que desenvolver produtos mais eficientes, cuja produção também ocorreu de maneira mais econômica e ambientalmente segura. A energia é recurso cuja geração é cara; por isso precisamos preservá-la.
(Imagens: pinturas de Dr. Ziad Jundi)

Aspectos do saneamento no Brasil

sábado, 13 de fevereiro de 2016
"O que é característico na democracia é a incerteza. O povo decide, cria para si mesmo leis, respeita-as e aplica-as, mas também pode mudá-las, anular leis atuais, redigir novas. Como nenhuma norma divina, revelada, válida por si mesma, impõe-se à polis, a democracia começa quando o céu se esvazia. Cornelius Castoriadis, em especial, salientou isso: a dúvida, a corrosão dos dogmas conduzem à autonomia dos povos."  -  Roger-Pol Droit  -  Um passeio pela Antiguidade

A prática do tratamento e coleta de esgotos não faz parte da história do Brasil. Durante o processo de colonização e até o início da industrialização no final do século XIX, a maior parte das cidades mais populosas situava-se à beira mar (São Luiz, Recife, Salvador, Rio de Janeiro) ou rio (Belém, Manaus). Providencialmente, as administrações construíam apenas sistemas de canalização, e os esgotos corriam tranquilamente para algum canto afastado de uma praia ou para uma curva afastada do rio. Esta prática era geral até quase meados do século XX e em muitos lugares ainda ocorre hoje.
Com o início da industrialização e a movimentação de grandes contingentes populacionais para os grandes centros urbanos, a partir dos anos 1940, surgiu a real necessidade de implantar sistemas de tratamento de esgoto. O imenso volume de resíduos gerados por milhões de pessoas não podiam mais permanecer nas imediações da cidade, provocando mau cheiro e servindo de criadouros de todo tipo de animais transmissores de doenças. Ou até abrigando jacarés, como ainda acontece hoje em bairros da região Sul do Rio de Janeiro, onde em lagoas poluídas pelo esgoto e atulhadas de lixo, os répteis sobrevivem bravamente.
Obras de saneamento requerem prazos longos. Por isso, geralmente quando se falava em saneamento, pensava-se somente no tratamento de água. É impossível abrir novos bairros ou loteamentos sem disponibilidade de água. Para o esgoto, no entanto, havia as fossas céticas e a antiga prática da descarga dos efluentes em rios e no mar. Outro aspecto é que obras de saneamento, principalmente o tratamento de esgoto, têm custo elevado e não têm impacto político alto. Ficou famoso o bordão de gerações de políticos brasileiros: "Obra enterrada não traz votos!".
É fato que a política e a condução da administração pública no Brasil sempre tiveram objetivos imediatistas, nem sempre eram do interesse dos eleitores. Por isso, dava-se prioridade a projetos de alto impacto midiático, de curta duração e, se possível, de baixo custo. Obra que pudessem ser implantadas durante uma única administração, seja municipal ou estadual. O importante era (e ainda é) impressionar o cidadão e abocanhar mais um mandato.
Apesar dos grandes projetos de modernização do país implantados no governo de Juscelino Kubitschek (1956-1961), grande parte das obras de saneamento só foi iniciada durante os anos 1970. Os governos militares, seguindo metas de planejamento, deram início a projetos de longa duração - construção de rodovias, hidrelétricas e estações de tratamento de esgoto - alocando grandes recursos, principalmente nas regiões metropolitanas.
Nas médias e pequenas cidades, no entanto, os recursos sempre foram parcos – ou direcionados para outras obras e outros fins – e a situação na maior parte do país permaneceu empacada. Mesmo a Lei de Concessões (1995), que permitia aos investidores privados investirem e atuarem em serviços públicos, não ajudou muito a resolver os problemas do setor. O Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado no governo Lula, trouxe um alento para o setor, mas está quase se acabando, anêmico, desde o final do primeiro governo Dilma.
Assim, por algum tempo, ainda teremos outras coisas se deslocando nas águas da Baía de Guanabara e do rio Tietê, além de peixes. Espécie que no Tietê não existem mais – pelo menos no trecho paulistano.
(Imagens: pinturas de Willem de Kooning)

"Caso Mariana" desperta nova mentalidade ambiental

sábado, 6 de fevereiro de 2016
"Não há necessidade de considerar o cinema como uma arte totalmente nova. Em sua forma ficcional, ele tem a mesma finalidade do romance, tal como o romance tem a mesma finalidade do drama."  -  Graham Greene  -  Reflexões

O desastre ambiental de Mariana, que lançou milhões de toneladas de lama de mineração no vale do rio Doce, deve funcionar como um marco na história da proteção ao meio ambiente no Brasil. O maior acidente do tipo ocorrido no Brasil, afetou a vida de milhões de pessoas de Minas Gerais e Espírito Santo, além de destruir centenas de espécies de animais e seus habitat. Tudo isto faz - ou pelo menos deveria fazer - com que autoridades acompanhem o caso com a devida atenção, fazendo com que a empresa Samarco e seu proprietários, causadores do acidente, arquem com todos os custos de reparação da destruição causada.
É de se esperar que o "caso Mariana" forme uma nova mentalidade ambiental no Brasil. Assim, setores econômicos cujas atividades podem causar dano ao meio ambiente onde atuam, deverão tomar providências para minorar o risco. O Ministério do Meio Ambiente, secretarias e agências ambientais não poderão mais aprovar projetos com alto risco ambiental, sem que medidas concretas de prevenção, baseadas na melhor tecnologia disponível, estejam previstas nas obras - e sejam efetivamente aplicadas.
Exemplo disso é o estudo feito pelo Instituto Brasileiro de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (IBP) que representa as empresas exploradoras de petróleo. O trabalho, realizado com o apoio técnico do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) mapeou o litoral brasileiro do Amapá ao Rio Grande do Norte. Adicionalmente também foram estudadas outras 78 áreas do litoral brasileiros - como a Lagoa dos Patos (RS), a Baía de Paranaguá (PR), Praia Grande (SP), Baía da Guanabara (RJ), Lagoa de Araruama (RJ), Ilha de Boipeba (BA), Delta do Parnaíba (MA), Baía de Marajó (PA) e a Ilha de Itamaracá (PE). Neste estudo foi constatado que a atividade petrolífera entre o Amapá e o Rio Grande do Norte ameaça em maior ou menor grau, dependendo do tipo de atividade na região, cerca de 120 espécies de animais, dentre os quais 56 espécies de aves, 46 de mamíferos e 18 de répteis e anfíbios. O impacto da atividade às espécies no restante do litoral brasileiro será acrescido ao estudo em 2016.  
Os organizadores do estudo afirmam que a pesquisa poderá dar mais agilidade na emissão de licenças para atividades petrolíferas e dar subsídios para a elaboração de um Plano Nacional de Contingência, que é acionado em caso de acidentes. Este plano até hoje ainda está em fase de estudos. Apesar do acidente com vazamento de petróleo ocorrido em novembro de 2011, envolvendo a empresa Chevron, pouco foi efetivamente colocado em prática. Agora, o "caso Mariana" deve ter despertado atenção e preocupação no setor.
O controle das atividades econômicas e de seus impactos deve aumentar ao longo dos próximos anos. Emissões de gases, destruição de ecossistemas, preservação de vegetação original e de espécies marinhas, são temas que cada vez mais tomarão importância. O recente impasse surgido entre o Ministério do Meio Ambiente e pescadores de diversas regiões brasileiras já é um indício do que deverá ocorrer no futuro próximo. Com uma portaria, o ministério proibia a pesca de diversos tipos de peixes, crustáceos e moluscos, ameaçados de extinção. A portaria foi suspensa e as espécies voltaram a ser pescadas, mas o impasse permanece. As atividades econômicas não podem mais ignorar seus impactos ambientais.
(Imagens: fotografias de Weegee)