Fatos contraditórios do século XX?

sábado, 17 de novembro de 2018
"Não está nos planos deste estudo tomar posição quanto ao valor de verdade das doutrinas religiosas. Basta que as tenhamos reconhecido em sua natureza psicológica como ilusões."   -   Sigmund Freud   -   O futuro de uma ilusão


Sempre parece fácil analisar a história e apontar-lhe os aspectos que nos interessam. Os fatos já ocorreram, estão registrados, e nós os juntamos, associamos, tentando justificar, provar ou refutar algo. Assim a história se torna um vasto campo de idéias, formadas por fatos, matéria prima para que possamos construir nossa teoria sobre o que ocorreu e o significado que damos a isso.

A contradição ocorre quando uma afirmação é falsa e a outra verdadeira. Todavia, fatos são fatos, e o que os torna verdadeiros ou falsos é a sua interpretação – e aí também se incluem os fatos históricos. A contradição não está, portanto, na história, naquilo que ocorreu – exatamente porque aconteceu – mas na nossa maneira de usar as palavras.

O século XX foi aquele no qual se deram os maiores desenvolvimentos científicos de toda a história humana. Basta pensar na invenção do avião, na descoberta dos antibióticos, o chip, o foguete e a moderna biotecnologia. Por um lado, o avanço científico e tecnológico foi imenso, em comparação com períodos anteriores da história. Por outro, o ser humano continua a ser o mesmo em seus impulsos básicos – seja a cobiça, o orgulho, e a raiva; ou a compaixão, o respeito e a solidariedade.

Foi por influências dos filósofos iluministas e seu entusiasmo pelo desenvolvimento das ciências e da humanidade que surgiu a ideologia do progresso. D`Alembert, Condillac, Voltaire, Diderot e muitos outros, acreditavam que a expansão do conhecimento – educação e cultura – junto com o desenvolvimento científico, conduziriam a humanidade para um futuro de menos obscurantismo e fanatismo religioso (ou político) e mais tolerância. O século XVIII trazia grandes promessas à humanidade: a independência dos Estados Unidos e todos os ideais de igualdade a ela relacionados; a Revolução Francesa, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão; e o início do capitalismo, só para citar os principais aspectos. Para grande parte da intelectualidade do início do século XIX, estaríamos em processo de constante desenvolvimento, a caminho da perfeição (de acordo com as teorias de Hegel). No decorrer do século XIX ocorrem maiores desenvolvimentos nas ciências (química, física, matemática, biologia) e, cada vez mais, tudo parecia estar caminhando em direção ao progresso constante.

E é esta a visão ingênua que ainda em parte temos hoje, apesar de tudo que se passou no século XX. Freud, escrevendo ainda antes da 1ª Guerra Mundial e depois dela, chamava nossa atenção para a agressividade inerente no homem, apesar de todos os vernizes culturais. Em O Mal Estar na Civilização Freud teoriza que a sociedade só é possível, porque o homem abre mão de impulsos e desejos que gostaria de realizar, mas vivendo em sociedade não pode. Assim, para que a sociedade humana pudesse persistir, os indivíduos foram obrigados a reprimir parte de suas pulsões, o que por outro lado trouxe descontentamento e, por vezes, agressividade. De certo modo, enveredando por outros caminhos, Freud chegara às mesmas conclusões que o filósofo inglês do século XVII, Thomas Hobbes. Por baixo da aparente civilidade e cultura, o homem ainda é o lobo do homem. Treblinla, Dachau, os diversos gulags, Ivo Jima, Dresden, Hiroshima, A Grande Marcha, Mi Lai, Pol Pot, e muitos outros nomes lembram que os filósofos iluministas e os entusiastas do progresso no século XIX fizeram interpretações limitadas na história.    

Sendo assim, temos os “aspectos contraditórios” ao qual se refere o texto. A Alemanha como o país educacional e culturalmente mais desenvolvido no início do século XX, mas ao mesmo tempo fechando os olhos à perseguição de seus vizinhos e amigos, só porque eram judeus. A pesquisa da energia nuclear, com grande potencial de aplicação energética e médica, recebendo imensos volumes de investimento (Projeto Manhattan, nos EUA) para construir uma bomba com poder destrutivo como nunca houve igual.

Regimes políticos que prometiam liberdade, prosperidade e paz para os povos, transformaram-se em organizações criminosas, perseguindo, encarcerando e matando milhões de pessoas em nome de ideais – práticas que seriam consideradas puro fanatismo por Voltaire ou Diderot, se estes pudessem presenciá-los – como a causa da pátria e da raça, a causa do operariado e do socialismo, a causa da Revolução, e outros delírios.


Por outro lado, depois da guerra surgiu um tipo de capitalismo novo, mais dinâmico. Espalhado por todo o globo, extrai de todos os rincões sua matéria prima e mão de obra barata, para ganhar bilhões de dólares com especulação. O constante aumento dos níveis de produção – para vender mais – demandam cada vez mais matéria prima (recursos naturais transformados) e geram imensos volumes de resíduos: poluição do ar, do solo e das águas.

A produção de alimentos, apesar de ser suficiente para alimentar toda a humanidade, é objeto de especulação e altos lucros. Países com pouca produção agrícola, como todos os países do Oriente Médio, sofrem a cada vez que aumenta o preço de certos produtos agrícolas, por força da especulação de grandes grupos econômicos.

Se tivesse que resumir as “contradições” do século XX usaria uma frase do filósofo Blaise Pascal (1623-1662):
“Quando, às vezes, me pus a considerar as diversas agitações dos homens, e os perigos e os castigos a que eles se expõem, na corte, na guerra, originando tantas contendas, tantas paixões, tantos cometimentos audazes, e muitas vezes funestos, descobri que toda a infelicidade dos homens vem de uma só coisa, que é não saberem ficar quietos dentro de um quarto. O homem que tem suficientes bens para viver, se soubesse ficar em casa com prazer, não sairia dela para ir ao mar ou ao cerco de uma praça. Não se pagaria tão caro um posto no exército, se não se achasse insuportável não sair da cidade; e só se procuram as conversas e os passatempos dos jogos porque não se sabe ficar em casa com prazer.” (Pascal, 1973, p. 75)

Bibliografia:
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo. Abril Cultura: 1973, 280 p.

(Imagens: pinturas de Joseph Beuys)

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