Ainda não o iluminismo?

sábado, 2 de janeiro de 2021

 

"A necessidade de uma metafísica impõe-se irresistivelmente a todo homem e, nos pontos essenciais, as religiões fazem justamente as vezes de metafísica para a grande massa que é incapaz de pensar."   -   Arthur Schopenhauer   -   O mundo como vontade e representação


Georges Minois, historiador contemporâneo francês, relata em seu História do Ateísmo a surpresa de certas autoridades eclesiásticas medievais, ao constatarem que os camponeses de regiões remotas não estavam totalmente cristianizados; ainda mantinham muitas crenças e práticas religiosas ligadas ao paganismo. Depois de mais de mil anos de hegemonia da igreja católica no continente europeu, o cristianismo ainda não havia conseguido suplantar totalmente concepções religiosas mais antigas. Escreve Minois: “Algumas dezenas de milhares de pessoas que vivem ao longo de anos fora do enquadramento religioso provam que é preciso seriamente rever a imagem de uma Idade Média unanimemente cristã e crente. Jean Delumeau demonstrou já amplamente a parte de lenda que se prende com a expressão ‘Idade Média cristã’: esta religião, cheia de superstições, magia, astrologia, restos de crenças pagãs, que tem realmente a ver com a ‘mensagem evangélica?’”

Não são poucos os autores que colocam em dúvida esta generalização, praticada principalmente pelos potentados religiosos da época medieval – com o provável objetivo de afirmarem a hegemonia da Igreja – e mais tarde tida como fato pelos historiadores a partir do século XVIII; a de que o cristianismo estava firmado como crença religiosa entre o povo medieval. Hoje, estudos mais acurados demonstram que isto efetivamente não foi o caso.

O mesmo ocorre, na interpretação de muitos pensadores, com a ideia do Iluminismo e de todas as ideias e ideais que o envolvem. Surgido e desenvolvido em países como a Inglaterra, Holanda e França entre os séculos XVII e XVIII, para então se difundir pelo restante da Europa e nas Américas – principalmente os Estados Unidos – o Iluminismo representava uma nova maneira de enxergar o mundo. Valorização da liberdade individual (Revolução Francesa e Americana), da ciência (Galileu e Newton), do pensamento racional (Descartes, Spinoza, Kant) e da crítica, principalmente à religião e aos governantes autoritários (os Enciclopedistas, Voltaire, Rousseau, D´Holbach, Hume e muitos outros). No início do século XIX Napoleão, em seu movimento de ocupação de parte da Europa, ajudou a divulgar os ideais do Iluminismo através de reformas na Educação, na organização e administração dos Estados e em várias outras instituições. Para Portugal e, consequentemente, para o Brasil, o marco do iluminismo foi a atuação do diplomata e estadista Marquês de Pombal (1699-1782). Como Secretário de Estado do Reino, Pombal implantou uma série de reformas administrativas, econômicas e sociais e reduziu o poder da Igreja Católica sobre o Estado português.

No decorrer do século XIX, apesar da derrota militar de Napoleão (1815), os paradigmas do Iluminismo foram gradualmente incorporados pelas nações ocidentais – o próprio conceito moderno de Estado é fruto de princípios gestados durante este período. O desenvolvimento do capitalismo mercantil (sécs. XVI – XVIII) e, mais tarde, do capitalismo industrial (séc. XIX) – este último baseado nos fortes avanços da tecnologia no final do século XVIII – ajudaram a difundir ainda mais o espírito iluminista, caracterizado por uma visão de mundo baseada na ciência. A religião perde sua forte influência sobre as massas, sendo suplantada pela atividade política, com o surgimento de partidos, das ideologias políticas e dos nacionalismos.  

Da mesma forma que o cristianismo católico não conseguiu hegemonia na Europa medieval, o iluminismo também não foi capaz de predominar completamente no mundo moderno – nem mesmo nas regiões que mais sofreram a influência da cultura europeia, sejam a própria Europa e as Américas. Apesar de estarem na origem dos avanços da ciência, dos direitos que se tornaram o fundamento da maioria das constituições ocidentais, da educação, da cultura e da prática política, os ideais do iluminismo ainda não impregnaram totalmente as sociedades modernas ocidentais.

Como explicar a predominância de crenças religiosas anacrônicas, preconceitos de todos os tipos, práticas sociais autoritárias e excludentes; tudo isso em sociedades altamente desenvolvidas sob aspecto tecnológico e econômico, contando com boas escolas e intensa atividade cultural? Como explicar as invencionices veiculadas nos grupos das redes sociais sobre todo tipo de assunto, mais recentemente sobre temas políticos, sobre a sindemia da Covid-19, sobre prováveis (ou improváveis) medicamentos e curas?

No Brasil tais reações podem em grande parte ser explicadas pela fraca instrução básica, ausência de cultura científica, falta de raciocínio lógico e senso crítico – itens básicos de uma educação alicerçada nos conceitos do iluminismo. Já é comum que nas redes sociais alguém critique o “exagero das notícias sobre os mortos com a Covid”. Lê-se frases como: “A imprensa só fala nos quase 200 mil mortos, mas nada comenta sobre os mais de 6,8 milhões de doentes recuperados.” Dado o absurdo de tal afirmação, caberia responder no mesmo tom de non sense: “Realmente, também com relação à Segunda Grande Guerra, só falam dos cerca 70 milhões de mortos, sem mencionar que quase 2,3 bilhões de pessoas em todo o mundo sobreviveram ao conflito!”

 

(Imagens: Ilustrações de J. Carlos)

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