A educação e o método cartesiano

sábado, 22 de maio de 2010

Introdução
A prática da educação formal, com o estabelecimento de escolas e professores, teve sua origem na antiga Suméria, onde nas cidades-Estado do IV milênio a.C. os rudimentos do ensino tiveram início nos templos. A escrita utilizada era a cuneiforme, assim chamada porque tinha letras em forma de cunha, sendo mais tarde utilizada como “língua sagrada” – a exemplo do sânscrito e do latim – pelas civilizações sucessoras (assírios, caldeus e babilônios). O conhecimento desta escrita era quase exclusividade dos escribas reais e dos sacerdotes dos templos, que mantinham registros sobre a religião, a produção agrícola, o comércio e a astrologia. Ainda na Antigüidade, o Egito foi o país do Oriente Próximo que mais deu importância à educação. Desde as dinastias mais antigas, atestam documentos, já existiam as “casas de instrução”, destinadas a transmitir o ensino elementar. Nestas casas, os alunos aprendiam a reproduzir trechos dos livros sagrados, tarefas que eram revisadas pelos mestres. Assim como na Babilônia, a educação formal era transmitida e mantida pelas instituições religiosas, diretamente ligadas às classes dominantes e ao governo.
O papel da educação era principalmente reproduzir a ordem social e as relações econômicas vigentes nas sociedades. Durkheim, também pesquisador das civilizações, deve ter levado estes fatos históricos em consideração, quando se referia ao processo de educação da seguinte maneira:
“Observe o modo como são educadas as crianças. Quando reparamos nos fatos tais como são, e como sempre foram, salta aos olhos que toda educação consiste num esforço contínuo para impor à criança maneiras de ver, de sentir e de agir às quais ela não teria chegado espontaneamente.” (Émile Durkheim, 2002, pág.35).
Mais adiante, referindo-se especificamente à educação formal, o sociólogo comenta que:
“Esta pressão permanente exercida sobre a criança é a própria pressão do meio social que tende a moldá-la à sua imagem, e do qual os pais e os professores são meros representantes e intermediários.” (Durkheim, 2002, pág. 35).
O principal papel da educação sempre foi o de socializar o indivíduo, capacitando-o a participar da sociedade e exercer certo tipo de atividade para seu sustento. Eventualmente, de acordo com suas aptidões e suas origens – já que o meio social de onde provêm terá forte influência em sua vida – poderá, eventualmente, participar da condução das instituições, sejam religiosas ou civis. O conceito grego de paidéia surgiu em tal contexto. Segundo o historiador Werner Jaeger, foram os sofistas que pela primeira vez empregaram esta palavra com o sentido que hoje conhecemos, significando “educação”. A sociedade grega do século V a.C. criou uma estrutura educacional, capaz de satisfazer aos ideais da polis, estendendo os princípios educacionais da elite a todos os cidadãos. Deste modo, os privilégios que no passado pertenciam a apenas uma pequena classe – a aristocracia – passam a ser oferecidos a todos os cidadãos livres da Atenas de Péricles. Esta iniciativa, no entanto, não foi baseada em um despertar do sentimento democrático ou valorização da meritocracia. A sociedade grega, voltada para o comércio ultramarino e com pretensões expansionistas no Mediterrâneo, necessitava de cidadãos mais instruídos, capazes de participar nas instituições. Jaeger afirma:
“O nascimento da paidéia grega é o exemplo e o modelo deste axioma capital de toda a educação humana.” (W. Jaeger, 2003, pág. 337).
O próprio Platão coloca como um dos objetivos da educação – o principal – a tarefa de formar cidadãos que possam participar na administração da polis, ao escrever:
“Então, quando tiverem vislumbrado o bem em si mesmo, usá-lo-ão como um modelo para organizar a cidade, os particulares e a sua própria pessoa, cada um por sua vez, pelo resto da sua vida.” (Platão, 2004, pág.255).
O grande avanço sucedido no campo da educação na Grécia Antiga – talvez pela primeira vez na história humana até então – foi a secularização do ensino. A transmissão do conhecimento e o seu desenvolvimento não estavam mais exclusivamente sob controle das religiões e de seus funcionários. A educação passa então a ser transmitida por leigos, conhecidos como pedagogos (do grego paidós, significando criança e agogé, condução) que a título de remuneração ou não, ensinavam aos seus alunos todos os conhecimentos que tinham acumulado. Esta nova maneira de sistematicamente acumular, produzir e transmitir conhecimento ficou caracterizada em instituições como a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles, estendendo-se no espaço e no tempo, até alcançar o Império Romano.
A disseminação das escolas perdeu seu impulso no final da Antiguidade, entre outros motivos principalmente devido à desestruturação política e social do decadente Império Romano. A partir do século V, o conhecimento e a educação refugiam-se nos primeiros mosteiros, tornando-se monopólio da instituição religiosa; a Igreja Católica. Assim, depois de um hiato de apenas mil anos (do século V a.C. em Atenas, ao século V d.C. no Império Romano) o círculo se fecha e a educação volta a ser monopólio da instituição religiosa.
Fatores sociais e econômicos durante o período carolíngio (século IX) fazem com que a organização do ensino seja reestruturada na Europa. A expansão política e econômica do Sacro Império Romano-Germânico, fundado por Carlos Magno, provoca uma necessidade crescente de formação de quadros mais capacitados, preparados para ajudarem na administração do nascente império. Convocada a retribuir o apoio político que sempre recebera do poder temporal – principalmente de Carlos Magno, que provocou verdadeiras chacinas para converter os povos germânicos ao cristianismo – a Igreja inicia um movimento de expansão das atividades de ensino, já que era à época a única instituição que detinha o conhecimento.
Começando com escolas anexas aos mosteiros, a dinâmica econômica e social exige a expansão e a sofisticação do ensino, o que culmina com a criação das primeiras universidades no século XII. Inicia-se novamente um processo de laicização do conhecimento, que tendo começado no século IX só se concretizará no final do século XVIII, com a Revolução Francesa, e no início do século XIX, quando se institui o ensino público leigo.
Descartes: a crítica filosófica e a filosofia da educação
Descartes está inserido neste contexto histórico acima descrito. Filho do período das guerras religiosas, refletindo a rivalidade entre as igrejas reformadas e a católica, o filósofo vive na época em que se inicia o desenvolvimento das ciências físicas, médicas, da astronomia e da matemática. Na economia e na política, a burguesia mercantilista passa a dominar as finanças mundiais, enquanto países como a Inglaterra, França e Holanda disputam o comércio e as colônias com as potências do passado – Espanha e Portugal. Este é também o período em que o tomismo – a filosofia que depois de dominar o universo filosófico da cristandade durante 400 anos – está em decadência, sem que nenhuma outra corrente de pensamento representativa, capaz de incorporar todos estas mudanças sociais e culturais, tivesse surgido.
Descartes não era alheio a todas estas mudanças. Ao contrário, estava profundamente imerso na cultura de seu tempo, e é por isso que seu desenvolvimento intelectual e filosófico é emblemático para a filosofia e a educação. Descartes conseguiu integrar todas estas contradições em seu pensamento, desenvolvendo uma nova síntese, que dará início ao período moderno da filosofia e assentará as bases da moderna ciência.
A primeira parte da mais famosa e importante obra do pensador, o “Discurso do Método”, analisada neste trabalho, representa o prelúdio de um processo intelectual através do qual Descartes irá reestruturar seu pensamento e a maneira de fazer filosofia no ocidente. O processo parte do conhecimento adquirido de diversas maneiras, em diversas fontes. Em várias etapas, o filósofo faz a crítica e a relativização de seus pressupostos, de suas idéias. Ao final, sem as certezas iniciais, conclui que é necessário ir além e analisar a si mesmo mais detidamente. Vejamos como:
1. Os pressupostos (É necessário partir de um conhecimento mínimo)
Descartes afirma que todos os seres humanos são dotados de bom senso e razão, tendo capacidade de aprender. Descreve os vários tipos de assuntos que aprendeu na infância e juventude: línguas, matemática, história, artes, ciências; enfim, grande parte do conhecimento disponível à sua época.
2. A relativização do conhecimento adquirido (O aumento do conhecimento começa a gerar dúvidas)
Em outra fase o filósofo percebe que, apesar do conhecimento, aumenta sua ignorância. Compara seus costumes com os de outros, observa as incongruências das diferentes filosofias, religiões e ciências. Tudo isto convence Descartes que suas idéias não são necessariamente verdadeiras. Todavia, sabe (ou assume) que existe uma verdade.
3. A procura da prática (Testar o aprendizado na prática)
O pensador resolve afastar-se de todo o pensamento teórico (que em seu tempo em grande parte era baseado em pressuposições não testadas na prática, como a física aristotélica e a astronomia ptolomaica) e dedica-se a viajar pelo mundo, escutando as pessoas e observando seus costumes.
“E decidido não buscar mais outra ciência senão a que se poderia achar em mim mesmo, ou no grande livro do mundo, empreguei o resto de minha juventude em viajar, em ver cortes e exércitos, em freqüentar pessoas de diversos humores e condições, em recolher diversas experiências...” (Descartes, 2004, pág.44).
4. Aprofundar o questionamento (Necessidade de reavaliar o conhecimento)
Descartes questiona cada vez mais suas idéias adquiridas no passado. Constata que existem diversas opiniões, filosofias, ciências e costumes; todos diferentes. Aos poucos vai se desfazendo “dos erros que ofuscavam seu raciocínio” (o senso comum). Finalmente depois de viajar, ver e ler muito, Descartes toma a decisão de estudar-se a si mesmo.
Ao terminar este trabalho cabe ressaltar a semelhança entre o processo empreendido por Descartes na crítica do conhecimento (que em outra parte de sua obra citada será aprofundada mais ainda, resultando em uma nova estruturação do conhecimento; em outras bases) e aquela empreendida por Sócrates. A filosofia – que começou oficialmente com Sócrates – iniciou-se com a crítica do conhecimento (os métodos da ironia e da maiêutica). Todavia, tornou-se moderna com Descartes, também através de um novo questionamento de toda a estrutura do pensamento ocidental. A filosofia da educação tem este mesmo papel em relação à educação: crítica do existente e proposição de novos parâmetros.
BIBLIOGRAFIA
Descartes, Discurso do Método, Porto Alegre: L&PM Editores, 2004, 123 p.
Durkheim, Émile, As Regras do Método Sociológico, São Paulo: Editora Martins, 2002, 155p.
Enciclopédia Mirador, Volume VII, verbete “educação”, São Paulo: Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações, 1982
Jaeger, Wener, Paidéia – A formação do homem grego, São Paulo: Martins Fontes, 2003, 1.413 p.
Kohan, Walter Omar, Três Lições de Filosofia da Educação, Revista Educação Social, Vol. 24 n.82, pág. 221-228, abril 2003, disponível em: – acesso em 05/09/2007
Platão, A República, São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004, 352 p.
Reale, Antiseri, História da Filosofia, Vol. I e Vol. II, São Paulo: Paulus, 1999, 683 p.
Stirner, Max, O falso princípio de nossa educação, São Paulo: Editora Imaginário, 2001, 87 p.

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