Sobre assassinatos e monstros

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011
"O temor, o desejo, a esperança jogam-nos sempre para o futuro, sonegando-nos o sentimento e o exame do que é, para distrair-nos com o que será, embora então já não sejamos mais."  -  Michel de Montaigne  -  Ensaios

Estranho título para um artigo publicado na época das festas de final de ano, sem dúvida. No entanto, há fatos que ocorrem nesse país sobre os quais não podemos deixar de escrever. Especialmente nesta época, quando a maioria das pessoas procura fazer um balanço sobre a vida, o ano que passou, fazendo promessas e planos para o futuro.
O primeiro assunto é um estudo recente apresentado pelo Instituto Sangari, uma ONG de São Paulo, tratando sobre a violência homicida no Brasil, o “Mapa da violência 2012 – Os novos padrões da violência homicida no Brasil” (disponível para consulta em http://www.sangari.com/mapadaviolencia/). Para quem ainda tinha algum tipo de ilusão, o estudo desfaz definitivamente a imagem de que a sociedade brasileira é pacífica e cordial. O estudo revela que nos últimos 30 anos – entre 1980 e 2010 – foram assassinados mais de 1,1 milhão de pessoas no país, número que só vem crescendo nos últimos anos. A tragédia do fato também pode ser medida por algumas comparações. Enquanto em 30 anos foram assassinadas 1,1 milhão de pessoas no Brasil, em 36 anos de guerra civil na Colômbia morreram 36 mil e 550 mil na guerra civil de Angola, que durou 27 anos. Na guerra do Timor Leste, ao longo de 26 anos, foram mortos 100 mil pessoas e na disputa territorial-religiosa entre Israel e Palestina faleceram 125 mil pessoas em 53 anos. Trata-se de uma imagem vergonhosa de nossa sociedade, que não consegue resolver seus conflitos através dos meios legais.
O tema seguinte trata das monstruosidades que ainda são praticadas com os animais, principalmente os de estimação. Apesar de existirem leis desde 1934 proibindo o abuso e a crueldade com qualquer animal, são cada vez mais frequentes acontecimentos envolvendo a tortura e morte destas criaturas. O mais recente, e que gerou justificado furor popular, foi o caso da enfermeira Camilla Correa Alves de Moura Araujo; enfermeira de classe média de Formosa, em Goiás, filmada agredindo seu pequeno cão, observada por sua filha de dois anos. Indiferente à agonia do cãozinho e ao terror da criança, a enfermeira torturou o animal durante dias, até que morresse. Quando as escabrosas cenas foram parar no youtube, Camilla cinicamente escreveu em seu twitter: “Podem falar à vontade, não dá nada...” e “De nada vai adiantar, acorda gente!”, “Podem xingar, denunciar, nada vai acontecer. Meus advogados já estão cuidando de tudo”. Camilla, típica representante de uma arrogante elite, está certa da impunidade, já que tem recursos para pagar bons advogados.
Ambos os casos refletem aspectos patológicos da sociedade brasileira. Apesar de terem inúmeras causas, o mais importante é o aspecto jurídico: ambos demonstram a imobilidade do sistema judiciário. No primeiro caso, há algo de muito errado na Justiça de um país, no qual mais de um milhão de pessoas são assassinadas. No outro caso, fica patente a maneira como grande parcela da população vê a justiça: ela não atua e quando atua é de maneira parcial, podendo ser influenciada em suas decisões por eficientes advogados.
A inoperância da Justiça com certeza é tema que todos os brasileiros devem considerar em seus balanços de fim de ano e projetos para o futuro; um dia pode ser que venhamos a precisar dela.
(imagens: Michelangelo Merisi da Caravaggio)

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