Direitos humanos: origens e fundamentos

sábado, 27 de julho de 2013
"O homem literalmente se entrega a um esquecimento cego utilizando -se de jogos sociais, truques psicológicos, preocupações pessoais tão distantes da realidade de sua situação que se constituem em formas de loucura - loucura admitida, pelo consenso, loucura compartilhada, loucura disfarçada e digna, mas ainda assim loucura."  -  Ernest Becker  -  A negação da morte

Existem diversas interpretações sobre a origem e o desenvolvimento da idéia dos direitos humanos. No entanto, dada a complexidade do assunto e por ser difícil se traçar uma gênese das idéias e conceitos filosóficos, apresentaremos a seguir um resumo do desenvolvimento mais provável do conceito, de acordo com nossa visão.
Não resta duvida que o conceito dos direitos humanos muito deve ao cristianismo. A religião cristã foi a primeira que em sua doutrina estabelecia um relacionamento direto entre a criatura e o Criador; idéia esta que fortalecia a noção da responsabilidade individual da criatura perante o Criador. Tanto assim, que – segundo o que estabeleceu a tradição cristã no Concílio de Nicéia em 325 – o próprio Deus fez-se homem e como este viveu, sofreu e morreu. A idéia era revolucionária no universo religioso da época: não mais os deuses egípcios ou da Babilônia, os gregos e romanos, que afastados dos homens raramente se preocupavam com o indivíduo e desconheciam a realidade humana sob ponto de vista do homem concreto e individual; homem “de carne, sangue e ossos”, como escrevia o filósofo Miguel de Unamuno.
O cristianismo trouxe a noção de ser humano para um patamar mais alto. Deus se (pre)ocupava com o fiel individualmente e a Igreja era união de todos os fiéis, membros da comunidade de crentes. Muito diferente da impassibilidade dos deuses antigos, que através de seus sacerdotes tratavam com uma massa de servidores e cujo contato se baseava principalmente em sacrifícios e oferendas, para aplacar a ira ou obter a simpatia de uma divindade instável.

No entanto, esta relação que existia entre o crente e a divindade no início do movimento cristão foi sendo deturpada ao longo da história da igreja católica. Esta se considerava a única detentora da verdade cristã, da mensagem oficial do Cristo, e como toda instituição hegemônica criou verdadeiras cadeias de comando entre o fiel e Deus, formada por sacerdotes, bispos, arcebispos, cardeais e o pelo papa. A hierarquia católica era responsável exclusiva pela manutenção e o ensino da doutrina, pela distribuição dos sacramentos e, principalmente, pelo contato da Igreja (a totalidade de seus membros; o “corpo dos fiéis”) com Deus.
No século XVI, eclodem mudanças que há muito tempo estavam em gestação na sociedade medieval européia. Na economia, o sistema de produção feudal entra em decadência, sendo gradualmente substituído por uma economia baseada no mercantilismo. A consequência política dessa mudança é que os senhores feudais perdem sua força, passando a ser comandados por um único rei, que se torna o chefe da nação. No aspecto cultural o Renascimento, surgido na Itália com a revalorização da cultura clássica grega e romana, difunde-se por grande parte da Europa, formando uma nova classe de intelectuais, críticos de muitos aspectos do cristianismo católico. Erasmo de Rotterdam, chamado de "Príncipe dos Humanistas", foi o maior representante deste novo tipo de intelectual, bastante crítico ao catolicismo. Um de seus textos diz, por exemplo: "O cristianismo hoje, em lugar de pregar Jesus Cristo, deixam no esquecimento o seu nome e o põem de lado com leis lucrativas, alteram a sua doutrina com interpretações forçadas e, finalmente, o destroem com exemplos pestilentos."
No aspecto religioso ocorre a Reforma protestante; concretização de varias mudanças no cristianismo, tanto na doutrina quanto na instituição, que já vinham sendo fomentadas desde o século XIV por toda a Europa. Martinho Lutero, um monge agostiniano, que colocou em discussão aspectos da doutrina católica e se rebelou contra uma hierarquia corrompida por práticas desonestas, foi o líder desta verdadeira revolução. Em sua interpretação do cristianismo, Lutero dizia que o aspecto mais importante da vida do crente era a fé – sola fide. Somente por esta o homem poderia se salvar e não através das obras - como enfatizava a doutrina católica, depois de ter incorporado muitos aspectos da filosofia de Tomás de Aquino. A fé, no entanto, era algo concedido por Deus ao homem; este só poderia aceitá-la e passar a viver inspirado por ela.
A nova interpretação de Lutero colocava em cheque toda a estrutura católica, baseada na hierarquia, nos sacramentos e na exclusividade de interpretação das escrituras (e consequente desenvolvimento da doutrina). O novo fiel não precisaria e não poderia mais usar de intermediários para contatar a divindade; ele sozinho deveria colocar-se perante Deus, tornando-se mais responsável e autônomo.
A Reforma Protestante influenciou profundamente o pensamento da civilização ocidental; sua filosofia e a maneira desta encarar a dignidade e a liberdade do ser humano. Grandes filósofos, principalmente da escola alemã como Leibniz, Kant, Schelling, Hegel, Feuerbach e Nietzsche levaram a interpretação cristã do homem aos extremos. Nos anos 1960 a escola teológica da "morte de Deus", fortemente influenciada pelos teólogos e filósofos alemães do início do século XX, teorizava que o cristianismo necessariamente levaria a uma completa imanência de Deus e à total secularização da sociedade. Em relação a isto o filósofo Giuseppe Cantarano, pesquisador da Universidade da Calábria, escreve em artigo no jornal L`Unità:
"Do céu do cristianismo, o sagrado - aquela dimensão do divino inacessível e indiferenciada, temível e ao mesmo tempo atraente - teria saído em êxodo. Emigrado para a terra. Já que, fazendo-se homem, Deus não perde apenas a transcendência. Com ela, Ele também perde irremediavelmente a sua sacralidade." (Cantarano, 2013)
No aspecto político, a gênese dos Direitos Humanos remonta ao filósofo inglês, John Locke (1602-1704), considerado o precursor do liberalismo político. Ponto importante de sua doutrina política é que:
a) Todos os homens ao nascerem têm direitos naturais; direito à vida, à liberdade e à propriedade;
b) Para garantir estes direitos, os homens acordaram entre si formarem governos, que garantiriam seus direitos naturais;
c) Esquecidos estes direitos inatos e este contrato social originário, surgiram os reis por direito divino - situação que, segundo o filósofo, absolutamente não existe e deve ser combatida.
O liberalismo de Locke influenciou a Revolução Gloriosa, ocorrida na Inglaterra em 1688, abolindo o absolutismo e introduzindo a monarquia parlamentarista. O pensamento político do inglês também foi parcialmente absorvido por filósofos franceses, que colocaram as bases ideológicas da Revolução Francesa (1789) como Voltaire, Rousseau, Diderot, D`Alembert e muitos outros. Críticos dos reis absolutistas da França e de outras nações, estes pensadores foram autores de obras que analisaram e procuravam identificar as origens das monarquias autocráticas, apontando-lhes os erros.
As ideias liberais inglesas também exerceram forte influência sobre a elite econômica da mais importante colônia britânica, as "Treze Colônias" da América do Norte.
Depois de uma guerra revolucionária que se estendeu de 1775 a 1783, na qual a nascente nação também recebeu apoio da França, Espanha e dos Países Baixos - inimigos históricos da Inglaterra - os Estados Unidos se tornaram o primeiro país do mundo a dispor de uma constituição embasada por princípios democráticos. A Declaração da Independência, documento votado e ratificado pelo Congresso em 4 de julho de 1776, contêm uma das mais famosas frases da língua inglesa, que exerceria muita influência sobre movimentos sociais ao longo da história desde então: "Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade."    
Em 14 de julho de 1789, com um sistema monárquico odiado pelo povo e passando por uma crise econômica que faz parte do povo passar fome, ocorre a Revolução Francesa, iniciada com a tomada da prisão da Bastilha, ocupada por muitos opositores do regime e desafetos pessoais do rei Luiz XVI. A revolta passa por diversas fases, alternando períodos de relativa calmaria social com outros de extremo terror, com milhares de execuções públicas. A comoção social termina definitivamente em 9 de novembro de 1799, quando ocorreu o chamado de "golpe de 18 de Brumário" (extensamente analisado por Karl Marx), durante o qual as forças conservadoras voltam a tomar o poder, para logo depois instituírem uma ditadura. Foi, no entanto, em 2 de outubro de 1789 que a Assembleia Nacional Constituinte da França revolucionária aprovou os 17 artigos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento completamente inovador para a época, ultrapassando inclusive a Declaração americana.
Em 1948, passados os horrores da 2ª Guerra Mundial (1938-1945) e criada a Organização das Nações Unidas - ONU (1945), os países membro resolvem promulgar a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). A declaração começa em seu primeiro artigo com a seguinte declaração: "Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade".
Passados 65 anos desde sua promulgação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos exerceu muita influência na história. Seus princípios foram incorporados às constituições de países, às instituições e, consequentemente, à consciência dos cidadãos. A questão de que se estes princípios são de inspiração divina, ou o simples coroamento de um processo evolutivo da cultura que tem suas origens na biologia, pouco importa. O importante é de que os princípios dos direitos humanos são considerados por grande parcela da humanidade como conceitos fundamentais para a convivência e para a condução de uma vida digna.
Ainda com relação à questão da validade universal dos direitos humanos não é possível transigir, penso. É evidente que esta é uma posição filosófica pessoal sem validade universal, assim como o relativismo cultural. Se existem argumentos suficientes para condenar certas práticas consideradas degradantes – a opressão da mulher, a homofobia, os castigos brutais e a tortura, entre outros - por outro lado também há sociedades onde estas práticas são fundamentadas na religião, tradição e na prática política.
Nossa sociedade, no entanto, optou pelos direitos humanos, seguindo a tradição deixada pelo cristianismo, pela filosofia liberal, pelas lutas dos povos por liberdade e dignidade. Milhões de seres humanos que nos antecederam na história, sacrificaram bens, saúde e a própria vida em nome destes direitos. 
É neste contexto que toma significado a frase de Sartre: "O importante não é o que fizeram de nós, mas o que nós próprios faremos com aquilo que fizeram de nós”. Para este filósofo a liberdade humana tem valor absoluto. O ser humano, segundo Sartre, está "condenado a ser livre", sendo responsável pela construção de sua vida e da sociedade em que vive.
"Em sua consciência, o homem está direcionado para algo que não é ele próprio, ou seja, em sua consciência está sempre fora de si; voltado para fora de si mesmo. Disso resulta que na concepção de Sartre a consciência do homem, o 'ser-para-si', é vazia, baseado no nada (melhor seria dizer no 'vazio'). Com isso, Sartre deduz que o homem não é determinado por uma essência anterior, algum tipo de 'natureza humana', seja do tipo que for. Ao contrário, como a consciência do 'ser-para-si' é vazia, e direcionada para o mundo, para um 'ser que não é o que ele é', o homem é determinado por sua existência e só cria uma essência a partir de seus projetos e de suas ações, de sua relação com o mundo – o 'ser-no-mundo'.
É a partir desta estrutura, segundo Sartre, que o homem pode ser efetivamente livre. Para Sartre, como para outros existencialistas, existir é para o homem fixar alvos, persegui-los, projetar-se a si próprio em direção ao futuro. É ultrapassando os obstáculos que impedem a consecução destes objetivos, que o homem é livre. É através do transcender dos obstáculos que o “ser-para-si”, com base no nada (vazio) de sua existência, é livre a cada momento – já que Sartre nega o efeito de condicionamentos passados sobre a consciência. Desta forma Sartre afirma que 'o homem é condicionado a ser livre'; por sua própria condição ontológica. Mas a liberdade só se forma através do confronto, do embate; daquilo que Sartre chama de 'situação', obstáculo. Por isso o filósofo afirma que 'só existe liberdade em situação e só há situação por meio da liberdade'”. (Rose, 2011)
Assim, o homem é completamente livre para fazer de si o que quiser, seguindo os ditames de sua consciência. Possa a sociedade brasileira, neste importante momento histórico, ter discernimento para realizar as reformas necessárias e tornar os princípios dos direitos humanos cada vez mais presentes. 
Referências:
Declaração da independência dos Estados Unidos. Disponível em:


Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Disponível em:
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
Erasmo de Rotterdam. Disponível em:
Galimberti e a religião do céu vazio. Disponível em:
John Locke. Disponível em:
< http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Locke>. Acesso em 21/06/2012
Sartre e a liberdade. Disponível em:
(Imagens: fotografias de Humphrey Spender)

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