História e generalização

sábado, 24 de fevereiro de 2018
"A história não é o palco da felicidade; nela, os períodos de felicidade são páginas em branco"   -   G. F. Hegel, citado por Eduardo Gianetti em "O Livro das Citações"

"Para onde caminha o nosso país?", perguntamos.

Será que faz algum sentido dizer que uma sociedade, um movimento cultural, a economia, ou o desenvolvimento de uma espécie estavam "ali" (ou "assim") - significando isso determinada condição, com características específicas em um tempo passado -, e agora está "aqui" (ou "dessa nova forma"), representando isso uma nova situação sob diversos pontos de vista, em um tempo posterior?

Esta é uma forma bastante comum de encarar um fato ou um acontecimento, que se estende por certo tempo (a queda de um meteorito, uma revolução, um movimento literário, a construção de uma hidrelétrica). É a tentativa de ressaltar certos aspectos de um acontecimento e através deles caracterizar o fato em determinado instante no tempo. Por exemplo, a divisão da escola impressionista de pintura em impressionismo, pós-impressionismo e neo-impressionismo. Em cada uma dessas fases, o movimento apresenta certas características pictóricas expressas por determinados pintores.

No entanto, a delimitação de períodos históricos e situações servem apenas para facilitar seu entendimento, através da generalização. Reunimos certo numero de fatos - muitas vezes pouco numerosos - a respeito de determinado tema ou período de tempo, e disso tiramos conclusões. Geralmente generalizações, baseadas em informações, amalgamadas por pressupostos ideológicos. É desta maneira que, conscientemente ou não, com maior ou menor profundidade de análise e quantidade de dados, se formam as teorias históricas.

Os diversos fatos históricos são, assim, como que "instantes congelados" de um longo processo, que a nosso ver é limitado, por considerar o fluxo histórico (a própria expressão "fluxo" já transmite a ideia) como um processo linear. Não considera a complexa inter-relação entre fatos desconhecidos, que antecedem ou são contemporâneos ao fato histórico em consideração, mas exercem sobre ele uma influência.

O ponto fulcral da questão é que não há como exatamente caracterizar cada fase de processos deste tipo; são fatos naturais (que incluem fatores humanos) onde um número imenso de fatores exerce sua influência no processo que se observa. São o que modernamente se denomina sistemas complexos. O clima, a bolsa de valores, revoluções, períodos econômicos, desenvolvimento de tendências culturais, etc. Falaremos disso mais adiante.



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A delimitação de períodos e fatos históricos serve apenas para facilitar seu entendimento, por meio de generalizações. Apontamos certos fatos de um determinado período histórico, dos quais temos conhecimento, e tentamos formar um quadro do período, identificando tendências - que, já o sabemos de antemão porque para nós são passado, depois se confirmaram.

Mesmo assim, a pergunta quanto à direção para onde caminhavam reinos, impérios e repúblicas sempre existiu, em todos os lugares, ao longo da história humana. Profetas do antigo reino de Israel perguntavam-se qual seria o destino reservado ao seu povo, afastado da prática da Lei. Cônsules romanos condenavam a lassidão de uma sucessão de imperadores, enquanto se preocupavam com o futuro do Estado. Paladas de Alexandria, poeta do século IV, lamentavam o gradual esquecimento da cultura grega, suplantada pela expansão de um culto popular, o cristianismo, e se indagava sobre o que seria da fenecente tradição helênica.

A resposta a estas perguntas que os antigos se faziam, ou seja, o que ocorreria ao reino de Israel, ao império romano e à cultura da Grécia Antiga no período cristão, hoje nos é clara. Causada por acontecimentos, ações de indivíduos, fenômenos naturais e outros fatores, a história tomou determinado rumo. E as sociedades que existiram posteriormente interpretaram os fatos antigos de determinada maneira - à sua maneira.  

A esta interpretação, esta "leitura" dos fatos antigos (ditos históricos) - baseada em condições culturais, econômicas e sociais atuais, já que o "ambiente" do reino de Israel ou da Antiga Roma não existiam mais -, convencionamos chamar de história. Ou História, como preferem alguns que acreditam na história como uma coisa única possível; como se esta sucessão de fatos aceitos batizados de "história" fosse a única maneira de olhar este vasto universo de acontecimentos ocorridos em determinado período; como se fosse a verdade (esta, outra palavra sempre dada a interpretações).  
   

Chamamos de história aquela quase infinita sucessão de fatos que ocorrem em um tempo e espaço definidos, dos quais, por diversas razões culturais, políticas e econômicas, escolhemos alguns em uma sucessão e interligação, e lhe damos o nome de "história". A história sob o ponto de vista de determinado grupo étnico, nação ou cultura. É dessa forma que se contam e escrevem as "histórias" das nações, por exemplo - preponderantemente sob o ponto de vista da ótica cultural de grupos que detêm o domínio da cultura - os que dominam direta ou indiretamente a produção e reprodução da cultura nessa sociedade. O mesmo ocorreu com o cristianismo em seus alvores. A Bacia do Mediterrâneo pululava de seitas cristãs entre o século II e IV. Foi somente através dos concílios eclesiásticos, que grupos (política e econômica) dominantes puderam impor sua maneira de interpretar a nascente religião ao restante das comunidades cristãs. Assim, foi aos poucos sendo estabelecida a ortodoxia e a ortopraxia, sob o comando de um grupo que se tornou hegemônico, que se denominou Igreja Católica (do grego katholikos, universal). 

Se nos aprofundarmos na análise do assunto, podemos também chegar a concluir de que não existe uma só História, mas histórias. Histórias do Brasil, histórias da religião cristã, histórias da ciência, histórias (ou biografias) da vida de Thomas Edison e Pelé, histórias da rede de lanches McDonald, histórias do hospital das Clínicas, histórias do conceito de crime político... Diversas maneiras de interpretar uma sucessão de fatos biológicos, culturais, econômicos, políticos religiosos, etc. (eu prefiro usar o termo "teia de fatos" ao invés de "sucessão de fatos", já que "sucessão" me parece por demais linear e, assim, unidimensional).

Estas histórias particulares sobre cada assunto (Brasil, cristianismo, Pelé, McDonalds, crimes, etc.) são incorporadas a um "relato maior"; a história universal. Vários aspectos em comum são encontrados entre as duas narrativas e, assim, minha história pessoal e a da minha dor de dente se inserem perfeitamente na história da humanidade. Mas, todas as "histórias", não esqueçamos, são elaboradas sob determinada ótica; o relato da minha biografia junto com minha dor dentária é narrado de acordo com aquilo que penso seja a "minha" visão de minha situação no mundo - visão ideológica que reúne os fatos num todo. 

As interpretações da "grande história" são baseadas em certos pressupostos, muitas vezes sob uma perspectiva teleológica, isto é, com a intenção de dar um objetivo ou sentido àquela "história" que se interpreta. Este é, aliás, mais um aspecto implícito e pouco percebido por trás da história. A grande maioria das pessoas sempre tem em mente que a história, seja qual for, sempre teve ou tem um sentido, um objetivo. Como se o sentido implícito da Revolução Francesa fosse disseminar os ideais do Iluminismo por toda a civilização ocidental. Como se a história tivesse alguma meta, objetivo, a "realização do Espírito", segundo o filósofo G.F. Hegel ou o conceito de Parusia do cristianismo. A noção de que a história humana tem algum sentido - uma história linear, muitas vezes conduzida por e em direção a uma divindade ou seu domínio - é comum a diversas religiões, que tomaram este conceito por variadas rotas culturais do Zoroastrismo, religião persa fundada pelo mítico taumaturgo Zoroastro, que supostamente floresceu no XI século AEC na Pérsia.

O que defendo aqui, junto com muitos outros autores modernos, é que não existe um conceito único de história. Aquilo que assim denominamos é apenas uma generalização para facilitar o entendimento de certos fatos e estabelecer um parâmetro comum, uma "linguagem", que possa ser compreendida e usada por todos. Algo comparável ao Sistema Métrico Decimal, sistema de medidas criado durante a Revolução Francesa, que foi adotado como padrão na maior parte do mundo. É assim que, por exemplo, países orientais como a China ou a Arábia, em negociações com governos ocidentais, aceitam certos parâmetros da nossa maneira ocidental de ver a história - mas isto somente nestas ocasiões, já que países com longa herança cultural (e histórica) são muito zelosos de suas tradições (leia-se de suas visões culturalmente específicas de interpretar a história).
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Para concluir, gostaria de agregar e sintetizar os pontos que tentei expor neste curto ensaio:
- A chamada história, História ou "Grande história" reúne relatos os quais, devido a inúmeros aspectos culturais, políticos, econômicos, técnicos, religiosos e históricos formam a maneira comum, universal e mais simples de disseminar conhecimentos relevantes sobre períodos de tempo na história da humanidade, de um povo, de ideias ou de outra coisa qualquer. Esta maneira de "contar" o que supostamente ocorreu em detalhes no passado é uma interpretação. Os reais acontecimentos e seus encadeamentos (se é que os houve) nunca poderão ser recuperados; talvez com um Túnel do Tempo, como imagina a ficção científica;


- Não existe a história sob o ponto de vista do "Olho que tudo vê"; um ponto de vista absoluto, divino. Essencialmente há quase infinitas "histórias". Cada diferente maneira de associar os fatos, agregados por variadas ideologias, forma uma diferente visão da história. A visão que os índios têm do processo de colonização das terras brasileiras é bem diferente daquela do civilizado. A visão que membros de um partido têm de um período histórico é bem diferente da de indivíduos de outra agremiação partidária;

- Outro aspecto é que existem histórias ignoradas, se desenrolado paralelamente à história oficial. Sob o aspecto político, será que a história do império no Brasil terminou? Descendentes da Casa Real brasileira ainda estão vivos - os Orleãs e Bragança - e seguramente existem dezenas, se não centenas de milhares de brasileiros que se colocam a favor da volta da monarquia, e muitos de uma forma ou outra lutam por isso. Assim, podemos considerar que existe uma história da monarquia no Brasil, que ainda se desenrola. Paralelamente a história da monarquia, existe a história da padaria da esquina, a história do grão de areia da praia e a história da árvore da floresta amazônica; aquela que nunca ninguém viu cair;

- A história não é linear. O conceito hegeliano de "tese-antítese-sítese" é linear (pelo menos em sua ideia original) e tem influencia na maneira como a maior parte dos estudiosos encara o estudo da matéria. Para teóricos de história influenciados por correntes políticas - marxistas, socialistas, fascistas, liberais, etc. -, o devir histórico tem uma meta, que coincide com os anseios políticos do próprio intelectual - o caso de Marx e do comunismo é o mais famoso;

- O conceito de "teia de acontecimentos", que tomamos da moderna ecologia (Odum, Capra) e do budismo, dá uma dimensão mais rica à interrelação que existe entre os fatos; qualquer fato que ocorra. O devir histórico não é assim linear, mas um nó em uma extensa rede (que poderíamos representar mentalmente como uma estrutura tridimensional onde nos nós se juntam as linhas e cada nó representasse aquilo que chamamos de fato histórico - vide: (https://thumbs.dreamstime.com/b/estrutura-de-rede-tridimensional-abstrata-do-wireframe-do-pol%C3%ADgono-70049972.jpg). Nessa rede, interpretamos apenas alguns nós (os maiores?) como sendo os fatos que consideramos na elaboração do relato histórico "oficial";



- Assim como todas as "histórias" a "Grande história" não tem sentido algum fora dela. Não há algo ou algum ente externo a ela - seja um Deus barbudo, um Princípio Último, um Controlador Alienígena ou uma Ordem Oculta. Nada do que ocorre - do "Big-Bang e anterior a ele, até a morte térmica deste universo, sem contar os outros multiversos", está fora do âmbito da história;

Mas, sob que ponto de vista? 

(Imagens: pinturas do Antigo Egito)




2 comments:

Jorge Braga da Silva disse...

A ideia de "teia de acontecimentos", de fato, torna o conceito de história muito mais rico. Porém a torna tremendamente mais complexa. Talvez de uma complexidade inútil. Posso imaginar uma linha unindo o nó "Invenção da internet" ao nó "queda do império romano". Essa uma ligação possível. Mas de qual utilidade? Ajudaria pelo menos a compreender melhor a história? Uma coisa importante em ciência é discernir corretamente o principal do acessório. Há o risco da história toda emaranhada em 3D acabar se perdendo numa infinidade descomunal da teia de acessórios. Não significa, para mim, que a representação linear da história seja o melhor modelo, contudo o modelo tridimensional me parece problemático. Talvez, para um observador "no infinito" ou quase, a nossa história acabe sendo algo próximo de uma linha tortuosa percorrendo o espaço tridimensional, com alguns fatos se repetindo de tempos em tempos, mas nunca exatamente iguais. Acho que a ideia de ligação tridimensional, por meio de linhas, de um nó a outro, entre todos os nós, algo um tanto quanto esotérico, no sentido que os fatos, por mais que se assemelhem, que se influenciem, nunca ocorrem nas mesmas condições. Sempre há fatores diferenciados, no mínimo o tempo que nunca para. A história poderia estar mais pra uma corda, meio solta no espaço, com cerdas pendentes, muitas ligando realmente dois pontos distintos e a maior parte, no núcleo, entrelaçadas, do que para uma linha fina interligando uma sequência singular de nós ao longo do tempo, ou do que uma esfera de nós todos eles interligados.

Ricardo Ernesto Rose disse...

A ideia de uma "história tridimensional" é uma teorização e, evidentemente, não funcionaria muito bem na prática. Então ficamos com a simplificação, assim como nossa visão e reação ao mundo é uma simplificação.

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