Lévi-Straus, a etnologia e a ecologia

sábado, 8 de janeiro de 2022

 

"A sociedade do cansaço, enquanto uma sociedade ativa, desdobra-se lentamente numa sociedade do doping. Nesse meio tempo, também a expressão negativa "doping cerebral" é substituída por "neuro-enhancemente" (melhoramento cognitivo)."   -   Byung-Chul Han   -   A sociedade do cansaço  


Claude Lévi-Strauss (1908-2009), foi um antropólogo, etnólogo e filósofo francês (nascido na Bélgica), fundador da disciplina da antropologia estruturalista e um dos maiores intelectuais do século XX. Em 1955 lançou seu livro Tristes Trópicos, talvez a menos acadêmica de suas obras, mas que logo se tornou sucesso mundial. A publicação, entre outras coisas, relata as atividades do cientista e professor na então recém-inaugurada Universidade de São Paulo (1934), onde lecionou de 1935 a 1939, e suas incursões ao interior do país, estudando os costumes de diversas tribos indígenas. É deste livro a frase de Lévi-Strauss que ficou mundialmente famosa e que reflete seu pessimismo em relação ao futuro da humanidade: “O mundo começou sem o homem e se concluirá sem ele.”

Em 1984, durante entrevista a Bernard Pivot, jornalista do ina (institut national de l’audiovisuel), Lévi Strauss recorda as viagens através destas regiões então intocadas do interior do Brasil, e que então, já na época da entrevista, deveriam agora estar “cheias de estradas e veículos”. (https://www.youtube.com/watch?v=s7fANFEdf0Q). Ao longo da longa entrevista, foram abordados vários temas. Desde a sua formação como filósofo e posteriormente como antropólogo e etnólogo, seus alunos e as viagens pelo Brasil, sua veneração pelo escritor francês François-René de Chateaubriand e pelo filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau, e seu pessimismo em relação à sociedade industrial do século XX – Leví-Strauss dizia que gostaria de ter nascido no final do século XVIII ou começo do século XIX, o período em que viviam seus “heróis intelectuais”.   

O cientista também falou sobre a relação de sua disciplina, a etnologia, com a ecologia; ciência que à época da entrevista (1984) era estudada somente por especialistas e restrita aos atores especificamente envolvidos com a temática ambiental. A etnologia, dizia Lévi-Strauss, estuda os mitos e a cultura dos povos originários (Lévi-Strauss não os considerava primitivos), como seus costumes, cerimônias e regras sociais. Em pesquisando as culturas destas populações em todo o mundo, a etnologia também tomou conhecimento de diversas narrativas, lendas e mitos, sobre entidades sobrenaturais, que atuam protegendo as florestas, plantas e os animais. Assim, maus-tratos de animais, caça em demasia, derrubada de árvores consideradas sagradas, o uso indevido ou inoportuno de vegetais venerados, podiam ser punidos por estas entidades sobrenaturais, através de doenças, perseguições na mata, morte por animais, inimigos ou doenças.

Segundo a tradição dos indígenas do grupo Tupi-Guarani, a primeira divindade a ser criada pela força cósmica chamada Nhaderu foi Tupã, que povoou a Terra com diversas criaturas semidivinas, entre elas o Curupira, ser mítico que depois foi incorporado ao folclore brasileiro. Guardião da floresta, Curupira pune todos aqueles que entram na mata para caçar animais ou derrubar as árvores. Já o padre Anchieta (1534-1597), que participou da fundação de São Paulo, e que escreveu a Arte de Gramática da Língua Mais Usada na Costa do Brasil, gramática sobre o tupi, faz o mais antigo relato do personagem em carta datada de 30 de maio de 1560:

É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios e que os brasis chamam Corupira, que acometem os índios muitas vezes no mato, dão-lhe de açoites, machucam-nos e matam-nos (...)” (Câmara Cascudo, pág. 332)

Outra personagem mítica era a Caipora, chamada de caiçara pelos índios e jesuítas, e conhecida como a mãe da mata, protetora da floresta e dos animais. Era vista montada em porcos do mato, e assim como seu assemelhado, o Curupira, costumava atrair as pessoas com gritos que imitavam a voz humana, para agredir aqueles que matavam animais por prazer ou que os caçavam, apesar de terem alimentos em casa.

A relação da etnologia com a ecologia, no entanto, não fica só por ai. Muitas destas lendas, segundo Strauss, remetem a um tempo quando, segundo a tradição destes povos, ainda não havia uma distinção clara entre os humanos e os animais. Em diversas narrativas os animais podiam se transformar em humanos ou humanos poderiam se transformar em animais. Uma das lendas brasileiras mais famosas com estas características é a do Boto; o golfinho vermelho da Amazônia. Segundo Câmara Cascudo,

O boto seduz as moças ribeirinhas aos principais afluentes do rio Amazonas e é pai de todos os filhos de responsabilidade desconhecida. Nas primeiras horas da noite transforma-se num bonito rapaz, alto, branco, forte, grande dançador e bebedor, e aparece nos bailes, namora, conversa, frequenta reuniões e comparece fielmente aos encontros femininos.” (Câmara Cascudo, pág. 181).

A lenda do Boto, já com muitas características do universo cultural português, é baseada no relato indígena do Uauiará, que atuava de maneira semelhante em suas conquistas amorosas entre as mulheres indígenas.

Ainda em sua entrevista, Lévi-Strauss explica que segundo pesquisas realizadas por etnólogos em várias partes do globo, foram identificadas várias lendas relatando sobre o tempo em que os homens podiam entender a língua dos animais e vice-versa, chegando a se casar entre si, segundo crenças da cultura totêmica dos indígenas da região Noroeste dos Estados Unidos. Sobre isso Lévi-Strauss faz referência ao relato de um membro desta tribo:

Sabemos o que fazem os animais, quais as necessidade do castor, do urso, do Salmão e de outras criaturas, porque antigamente, os homens se casavam com eles e adquiriram este saber de suas esposas animais [...]. Os brancos viveram pouco tempo neste planeta e não sabem muita coisa a respeito dos animais; nós estamos aqui há milhares de anos e há muito tempo que os próprios animais nos instruíram. Os brancos anotam tudo num livro, para não esquecer, mas nossos ancestrais casaram com animais, aprenderam todos os seus costumes e fizeram passar estes conhecimentos de geração em geração. (Jennes apud Lévi-Strauss p. 58-59)

Os povos originários, ditos primitivos, através de sua estreita convivência com o mundo natural, criaram relatos, mitos, costumes e regras sociais, através das quais estas culturas se inseriram e sobreviveram no ambiente em que viviam, contribuindo para conservá-lo, na maioria dos casos.  Com a complexificação das relações sociais, da tecnologia e da cultura imaterial, os diversos grupos humanos foram gradativamente abandonando certas crenças e mitos, que passaram a ser substituídos por outros, mais condizentes ao ambiente cultural que aquelas comunidades estavam formando. Certas sabedorias, no entanto, permaneceram e foram transmitidas ao longo das gerações, desde o período Neolítico até a época Moderna, notadamente nas culturas campesinas de várias regiões. Conceitos e práticas centenárias ou milenares do cuidado com a preservação dos solos, das sementes, dos recursos hídricos e da preocupação com os poucos animais selvagens ainda restantes nestes ambientes, foram perpetuados ao longo das eras naquelas sociedades.

Aqui quero prestar uma homenagem póstuma a meu pai, que durante uma parte de sua vida, no final dos anos 1940, viveu na pequena fazenda de seu tio, não muito longe da cidade de Colônia, na Alemanha. Uma das que me ensinou quando era criança, e da qual me lembro muito bem, é que não se deve tirar todos os frutos das árvores; deve-se deixar sempre uma pequena quantidade deles para o alimento das outras criaturas; aves, insetos, pequenos mamíferos. Tínhamos uma casa no litoral de São Paulo, na época uma região relativamente isolada, com grande terreno cheio de ameixeiras, mamoeiros, pitangueiras, goiabeiras e alguns abacateiros. Quando os frutos ficavam maduros, colhíamos a maior parte, mas deixávamos ainda alguns para que pássaros e outros animais pudessem aproveitar as sobras.

Há centenas de gerações nossos antepassados acreditavam em entidades protetoras da fauna, flora e da agricultura. Hoje estas crenças não existem mais, mas, mesmo assim, ainda guardamos certo sentimento de veneração à natureza e ao universo, o que talvez Lévi-Strauss e a etnologia pudessem explicar.

Referências:

1984: Claude Lévi-Strauss invité d’Apostrophes I Archive ina. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=s7fANFEdf0Q&t=1791s>. Acesso em 12/12/2021

 Dicionário do folclore brasileiro. Câmara Cascudo. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, s/d. 930 p.

Literatura amazônica: seus mitos e suas lendas. Disponível em <https://monografias.brasilescola.uol.com.br/educacao/literatura-amazonica-seus-mitos-suas-lendas.htm>. Acesso em 13/12/2021

Claude Levi-Strauss (Jenne apud Lévi-Strauss) em Lévi-Strauss e as três lições de uma ciência primeira. Disponível em <https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/1782>. Acesso em 12/12/2021


(Imagens: pinturas de Nguyễn Tư Nghiêm)

0 comments:

Postar um comentário