"Quem tem fome, tem pressa" (Herbert de Souza)

sábado, 31 de agosto de 2013
"A tripla convergência não afetará apenas o modo de os indivíduos se prepararem para o trabalho, de as empresas competirem, de os países organizarem suas economias e geopolíticas. A longo prazo, na esfera política, também vai remodelar identidades, reformular partidos e redefinir quem tem voz ativa. Em suma, o resultado dessa convergência tripla que acabamos de examinar é que assistiremos àquilo que chamo de 'grande reestruturação'".  -  Thomas L. Friedman  - O mundo é plano - Uma breve história do século XXI

A luta pela sobrevivência representa, em grande parte, a luta por alimentos. Todas as espécies vivas, desde as bactérias, às plantas, passando pelos artrópodes, pelos peixes até os mamíferos e o ser humano, passam grande parte de sua existência à procura de alimento. A atividade humana mais importante, o trabalho, nada mais é do que um esforço coletivo para assegurar alimentação e abrigo para os membros das sociedades.
A disponibilidade de alimento, no entanto, não é ilimitada nem nunca o foi. A bela imagem da abundância de alimentos no Jardim do Éden, se é que alguma vez existiu, ficou para sempre no passado da humanidade. Escavações realizadas por paleontólogos e arqueólogos, dão conta de que nossos antepassados do paleolítico, neolítico ou das primeiras culturas humanas, sempre tiveram que lutar contra a escassez de alimentos. São raros os períodos na história humana em que as diversas populações tiveram acesso constante à comida. Esqueletos encontrados em diferentes regiões do planeta mostram pessoas sofrendo de raquitismo, má formação óssea e outras doenças causadas por falta de alimentação regular.
Mudanças climáticas ocorridas no final do último período glacial (cerca de 10.000 anos A.C.) fizeram com que os animais caçados pelo homem se tornassem menos numerosos, seja pelo fato de terem sido extintos (o desaparecimento dos grandes mamíferos da fauna do Pleistoceno) ou se deslocado para regiões mais setentrionais, onde as temperaturas ainda eram mais frias. Com isso, a falta de caça forçou as populações humanas a fazerem a primeira grande revolução tecnológica. Já tendo observado e conhecendo a capacidade de grãos brotarem durante o período mais quente do ano, grupos humanos passaram a praticar o plantio sistemático de certas espécies (trigo, cevada, aveia, tubérculos), em escala crescente. Associado a esta atividade praticavam a coleta e a criação de algumas espécies de ruminantes, como a cabra, o carneiro e a vaca. A agricultura teve início na atual região da Anatólia (Turquia), tendo-se estendido rapidamente a todo o crescente fértil. Por volta de seis mil A.C. já era praticada no vale do Yang-Tsê, na atual China e por volta de 3.000 A.C. já era encontrada em todas as regiões onde existiam culturas humanas tecnologicamente mais desenvolvidas (Egito, Babilônia, Vale do Indo, China, Mesoamérica, Peru, entre outros).
No decorrer da história as técnicas agrícolas foram se desenvolvendo. Já os romanos utilizavam técnicas de rotação de culturas, fertilizantes e pesticidas biológicos. Na Idade Média, a partir do século XI foram introduzidas outras inovações técnicas, como o arado de rodas, o jugo frontal (canga) e as ferraduras, que permitiram substituir o boi pelo cavalo, aumentando a velocidade do trabalho.  Mesmo assim, a fome continuava a acompanhar a humanidade. Períodos de seca, excesso de chuva, nevascas, pragas de insetos, guerras, epidemias, eram males que contribuíam para quebra das colheitas, provocando fome, doença e morte. A produtividade da agricultura só aumentou de maneira rápida a partir do início do século XIX quando a nascente indústria passou a produzir fertilizantes, herbicidas e fungicidas sintéticos, disponíveis em grandes quantidades e a preços relativamente baratos. Neste período, principalmente nos Estados Unidos, é introduzida uma série de melhorias nos arados, nas ceifadeiras e nas debulhadeiras, que aumentaram a velocidade da operação agrícola e das áreas de plantio. Já na segunda metade do século XIX começa a mecanização da agricultura; inicialmente com máquinas a vapor e depois com motores a explosão.
A modernização da agricultura ocorreu em paralelo com o desenvolvimento da industrialização. Criavam-se melhores condições de vida para as pessoas e aumentava o volume de alimento disponível. Com isso ocorreu um aumento da população mundial. Em 1750, a população mundial era de 791 milhões; em 1800, 978 milhões; 1850, 1,2 bilhões; 1900, 1,6 bilhões; 1950, 2,5 bilhões; 1960, 3,02 bilhões; 1970, 3,6 bilhões; 1980, 4,4 bilhões; 1990, 5,2 bilhões; 2000, 6,07 bilhões; e em 2012 já alcançamos a marca dos sete bilhões de habitantes na Terra. A previsão é de que a população alcance os 9,7 bilhões até 2050, quando gradualmente deverá decrescer, estabilizando-se e torno dos seis bilhões de habitantes em torno de 2130.
No entanto, mesmo com os avanços tecnológicos a partir da Revolução Industrial, a carência de alimentos sempre continuou preocupando a humanidade. Até a algumas décadas ainda era comum ver em algumas casas a imagem de Nossa Senhora, encimada pelas palavras “Livrai-nos da fome, da peste e da guerra” – os três maiores flagelos da humanidade. Thomas Robert Malthus (1766-1834), sacerdote e economista inglês, publicou um estudo no qual afirmava que a população mundial cresceria em escala geométrica, ao passo que a produção de alimentos aumentaria em escala aritmética. A conseqüência desta situação seria que no futuro não haveria mais alimentos para toda humanidade, o que provocaria todo tipo de comoção social. Esta preocupação acompanhou os cientistas até meados dos anos 1960, transformando o tema da escassez de alimentos em um dos primeiros a ser discutido pelo Clube de Roma (1968).

No entanto, durante a década de 1960, surge nos Estados Unidos uma nova técnica de praticar a agricultura: a revolução verde. Criada pelo agrônomo Norman Borlaugh, a revolução verde é a agricultura praticada em grandes áreas, com uso maciço das novas tecnologias: defensivos e fertilizantes agrícolas, irrigação, mecanização do plantio e da colheita, assistência técnica ao agricultor e estrutura de armazenagem e escoamento da produção. Através destas providências a produção agrícola cresceu em todo o mundo – principalmente nos países menos desenvolvidos – o que fez com que a técnica da revolução verde evitasse grandes ondas de carestia na China, na Índia e no Paquistão. Por esta razão Borlaugh ganhou o prêmio Nobel da Paz em 1970.
Hoje temos no mundo e no Brasil aproximadamente a seguinte situação em relação aos alimentos:
- A taxa de natalidade da população na maior parte do mundo está declinando. A melhoria das condições de vida e o processo crescente de urbanização (no Brasil cerca de 85% da população vive em cidades) estão fazendo com que os casais tenham cada vez menos filhos. Na Europa, China, Japão e parte da América Latina, as taxas de natalidade já estão abaixo do índice de reposição (2% ao ano);
- A produção mundial de alimentos é suficiente para alimentar toda a população do planeta. O problema maior é o da distribuição: governos da África subsaariana, por exemplo, não têm recursos para comprar alimentos no mercado internacional, já que estes muitas vezes são desviados para compra de armas e para a corrupção. Em outras situações, faltam alimentos porque a atividade agrícola é interrompida por guerras entre milícias adversárias. Outro aspecto é a carência de recursos humanos e equipamentos voltados para a pesquisa e o desenvolvimento das atividades agrícolas;
- No aspecto internacional ocorre também a especulação financeira – especialmente com grãos como o trigo, o arroz, o milho, a cevada e o sorgo – que constituem a base da alimentação de cerca de 70% da população mundial. Previsão de mudanças climáticas (mais ou menos chuva, frio, etc.); aumento do preço do petróleo (matéria prima básica dos fertilizantes e agrotóxicos); guerras localizadas; são fatores que fazem com a oferta futura destes produtos (chamados de commodities agrícolas) seja colocada em risco, provocando o aumento de sua cotação nas bolsas internacionais. Com isso, sobe o preço dos alimentos, o que dificulta seu acesso por parte de países importadores (já que não têm produção própria suficiente), como o Egito, a Etiópia, a Líbia, entre outros. As revoltas da “Primavera Árabe”, ocorridas em 2010, foram em parte causadas pelo alto custo dos alimentos, em grande parte importados.
No Brasil temos uma situação confortável em relação à oferta de insumos (terra, equipamento, capital e mão-de-obra). Grande parte de nossa agricultura é baseada na monocultura, praticada em grandes propriedades e voltada primordialmente para o mercado internacional. O maior volume dos alimentos consumidos pelos brasileiros – legumes, verduras, hortaliças, frutas; grãos, como o feijão e o arroz – é em grande parte produzido em propriedades familiares; a agricultura familiar. Formada por unidades de produção rural de pequena extensão, a agricultura familiar tem sido historicamente relegada a um segundo plano pelo governo, que tem carreado grande parte dos incentivos e empréstimos ao setor dos agronegócios; as grandes fazendas produtoras.
Este é ainda um dos grandes problemas da agricultura brasileira. Por diversas razões – uma delas é que os grandes latifundiários sempre tiveram forte influência na política do país – os governos não têm dado a devida atenção à situação do campo. Mesmo governos mais democráticos, como o de FHC e até administrações ditas de esquerda e voltadas para os trabalhadores, como os dois governos do PT, só fizeram jogo de cena, mas efetivamente não atacaram o problema da situação fundiária no Brasil: 
A concentração de terra no Brasil é uma das maiores do mundo. Menos de 50 mil proprietários rurais possuem áreas superiores a mil hectares e controlam 50% das terras cadastradas. Cerca de 1% dos proprietários rurais detêm em torno de 46% de todas as terras. Dos aproximadamente 400 milhões de hectares titulados como propriedade privada, apenas 60 milhões de hectares são utilizados como lavoura. O restante das terras está ociosas, subutilizadas, ou destinam-se à pecuária. Segundo dados do INCRA, existem cerca de 100 milhões de hectares de terras ociosas no Brasil.” (Rede Social de Justiça e Direitos Humanos).
A grade concentração de terra nas mãos de poucos ainda é um empecilho para uma agricultura efetivamente voltada para a produção de alimentos e não para geração de divisas (que agora estão caindo com a diminuição do ritmo da economia chinesa). Os números comprovam que quanto maior a propriedade, menos produz para o mercado interno brasileiro, conforme publicado pela Rede Social de Justiça e Direitos Humanos:
 - os estabelecimentos inferiores a 100 ha (hectares) respondem por 47% do valor total da produção agropecuária;
- os estabelecimentos de 100 ha a menos de 1.000 ha respondem por 32% desse valor;
- os estabelecimentos entre 1.000 ha e 10.000 ha participam com 17% do valor total;
- os estabelecimentos acima de 10.000 ha respondem por 4% do valor total.
Quando o assunto é geração de empregos, a pequena propriedade também contribui mais para a economia:
- os estabelecimentos com menos de 10 ha absorvem 40,7% da mão-de-obra;
- os de 100 ha a 1000 ha absorvem 39,9% da mão-de-obra;
- os acima de 1.000 ha absorvem 4,2% da mão-de-obra.
Na região Norte, principalmente nos estados do Pará e Amazonas e Acre, são constantes os conflitos causados pela posse da Terra. Chico Mendes, Irmã Dorothy Stang, Irmã Maristela, Ivair Higino, João Canuto, Irmã Cleusa, Padre Zózimo, José Claudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo, são alguns dos mártires que já tombaram assassinados, defendendo os interesses dos pequenos agricultores contra os latifundiários e grileiros de terra. Falta ao Brasil uma efetiva reforma agrária, que possibilitaria o acesso à terra a um maior número de agricultores, o que aumentaria a produção de alimentos, tornando-os mais baratos.
Outro aspecto na questão alimentar no Brasil é o grande volume de perdas, entre a colheita e a chegada ao consumidor. Segundo estatísticas recentes, cerca de 30% do que se produz no campo perde-se ao longo da cadeia de distribuição. As principais razões apontadas para tal prejuízo são a falta de estrutura de armazenagem e a incipiente rede de distribuição, baseada quase que exclusivamente no caminhão, transitando por estradas em péssimas condições. Além disso, outra parte dos alimentos também é perdida no manuseio, antes de chegar ao consumidor. Isto sem contar o quanto de alimento é jogado fora pelos próprios consumidores, como sobras do preparo e do consumo das refeições.
Concluindo:
- Os direitos humanos garantem, entre outros, também o direito à alimentação. Guardião deste direito é o Estado, na figura de seus gestores. É responsabilidade destes, zelar para que todo cidadão também tenha alimentos suficientes para o seu bem estar;
- Ações como o programa da Bolsa Família, da Cesta Básica, entre outros, resolvem o problema de imediato, mas não no longo prazo. Os beneficiários deste tipo de iniciativa, caso não sejam criadas condições para que possam sair de sua situação de pobreza, permanecerão na condição de dependentes do Estado;
- Facilitar o acesso à terra, apoiada em uma estrutura de incentivos e financiamentos – assim como ocorre para o grande latifúndio – seria uma maneira de aumentar a produção de produtos agrícolas, barateando seu preço e aumentando assim o acesso a eles;
- Implantar políticas de melhoria da infraestrutura de armazenagem e transporte de produtos agrícolas, além de um melhor aproveitamento das sobras de alimentos; seriam ações adicionais poderiam facilitar o acesso a uma maior variedade de alimentos.
No Brasil a política de direitos humanos, com relação ao Direito Humano à Alimentação Adequada, passa necessariamente por uma série de reformas e medidas que até o momento nenhum governo teve capacidade efetiva de implantar, seja por incapacidade de gestão ou devido à força política de grupos contrários a tais ações. Na verdade, penso que é uma mistura de ambas.
Fontes Consultadas:
Caminhada homenageia mártires da Amazônia. Disponível em:
História da mecanização da agricultura. Disponível em:
MAZOYER, Marcel, ROUDART, Laurence. História das agriculturas no mundo. São Paulo. Editora UNESP: 2008, 567 p.
A Concentração Fundiária no Brasil e a Ociosidade do Latifúndio. Disponível em:
Revolução verde. Disponível em:
(Imagens: fotografias de Alfred Stieglitz)

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