Crise ambiental e crise de valores

sábado, 7 de março de 2020
"Naquelas paragens longínquas e ingratas o meio-dia é mais silencioso e lúgubre do que as mais tardias horas da noite."   -   Euclides da Cunha   -   Canudos e inéditos 


Recentemente, em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia, o economista Prêmio Nobel Joseph Stiglitz classificou a crise climática como uma das três principais crises do mundo atual. As outras duas seriam a crise do próprio sistema econômico, o capitalismo, e a crise dos valores.

Uma crise, seja qual for, não ocorre por motivos simples. Desde a relação dos indivíduos entre si e com o meio ambiente, às relações econômicas, aos sistemas de crença de uma sociedade; as crises são sempre mais abrangentes do que se avalia e têm causas diversas. É por isso que são tão difíceis de serem estudadas; tentar determinar-lhes as origens e as consequência exige muita informação, processamento de dados e capacidade de síntese.

Antes do aparecimento da espécie humana, existia no planeta apenas o complexo sistema da natureza, composto pelas inter-relações entre os indivíduos de cada espécie, entre as espécies, e destes com seu ecossistema. Em outro nível, havia a relação dos diversos ecossistemas entre si e com o ambiente físico e as condições climáticas. O planeta, por acomodar milhões de espécies vivas – microrganismos, plantas e animais – dispunha de uma complexidade de relações muito grande. Imagine-se um ambiente composto por plantas e animais, influenciado pelo clima e pelas condições geológicas, no qual todas as espécies estejam competindo por alimento e espaço vital para procriar.   

Com o aparecimento dos ancestrais dos humanos as relações no planeta se tornaram ainda mais complexas. Se no início de seu desenvolvimento a espécie homo era apenas mais uma a predar e a ser predada, o homo sapiens, com o desenvolvimento de artefatos e técnicas de caça mais eficientes, começava a influir no equilíbrio dos ecossistemas do planeta. Estudos recentes mostram que parte da antiga fauna australiana e americana foi dizimada por grupos humanos que atingiram estas regiões há 50 mil e 15 mil anos, respectivamente.  

O processo se tornou mais intrincado ainda, quando nossos antepassados inventaram a agricultura, há aproximadamente 10 mil anos. A partir deste ponto da história do planeta, nossa espécie passou a ter uma relação cada vez mais intensiva com o já existente sistema da natureza. Derrubamos florestas, aterramos pântanos, domesticamos plantas e animais para nosso uso. Criamos as cidades, os estados, novas tecnologias, descobrimos novos continentes, inventamos a indústria. Com todas estas atividades nossa espécie criou novas relações e sistemas que não existiam na natureza; criação das mentes de milhões, bilhões de indivíduos que nos antecederam – processo que nós continuamos até hoje no nosso dia a dia.

As incontáveis atividades que empresas, governos e indivíduos exercem diariamente também podem ser resumidas em sistemas de relações. São as relações econômicas, políticas e sociais, entre outras, que permeiam todas as atividades humanas, baseadas em nossas relações com a natureza, com o meio ambiente. Imagine-se o impacto sobre o meio ambiente natural quando da expansão da área agrícola, da abertura de uma mina, da exploração de um poço de petróleo, da abertura de um novo loteamento. No entanto, para que estas atividades de inegável impacto sobre o ambiente tenham início, há necessidade de leis, normas técnicas, contratos comerciais, de produção de máquinas, treinamento de profissionais, previsões econômicas, etc.

A crise climática tem direta relação com as outras crises; a do capitalismo e a dos valores. Não há como separar estas áreas em compartimentos estanques. A crise climática, ou seja, a gradual destruição dos recursos naturais, é resultado da maneira como atuamos sobre a natureza em nossas atividades econômicas – ou seja, nossa relação com a natureza. Esta atuação é baseada em valores, que justificam, validam e foram gestados por um sistema de relações econômicas: o capitalismo.


As crises, portanto, às quais se refere o economista Stiglitz, citado no início deste artigo, podem ser resumidas a uma: a do capitalismo.   

(imagens: pinturas Alfred Sisley)     

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